Albert Speer era o arquiteto de Hitler, e seu ministro do armamento. Ambos criaram uma “teoria do valor da ruína”, muito simples. O III Reich estava previsto para durar milênios. Suas arquiteturas também. Elas deviam, portanto, ser construídas com grandes blocos de pedra, inabaláveis. Os pilares e paredes seriam maiores do que preciso, pois num futuro tão longínquo quanto a eternidade, suas ruínas testemunhariam a grandeza nazista do passado. Essa projeção no futuro vem de uma persistente vibração romântica, que se compraz mais com o que foi do que com o que é. Ela guarda em si uma pulsão suicida, mesmo se projetada à distância vertiginosa e insondável das ficções visionárias.
O III Reich não durou milênios, durou pouco mais de abomináveis dez anos. Speer construiu o grande estádio de Nurembergue, que podia abrigar 400 mil pessoas. Leni Riefenstahl captou-lhe a grandiloqüência com câmera entusiasta. Agora é um trambolho, carregado de lembranças insustentáveis, abandonado, cortado por uma estradinha, dissolvendo-se em ruínas patéticas. Construiu também a Chancelaria em Berlim, que virou pó com os bombardeios. Projetou, sobretudo.
Hitler queria transformar Berlim em “nova Roma”, pensando na capital do antigo império. Speer imagina avenidas larguíssimas para a cidade, concebe colossais arcos de triunfo, e centra tudo num domo imenso, cuja grandeza tem a escala das arquiteturas utópicas desenhadas por Ledoux ou Boullée. Nada disso foi realizado.
No coração de Berlim, sobre o velho Parlamento, edificado no século 19, desabado em 1945, pousa hoje uma leve cúpula de cristal, criada pelo arquiteto inglês, Sir Norman Foster.
Utopia
Berlim tem uma superfície vasta, correspondendo a mais da metade de São Paulo, e apenas 3 milhões de habitantes. A cidade respira largamente, com bosques, parques, bicicletas numerosas, poucos carros. Seu passado recente foi sofrido. Primeiro, a opressão dos delírios nazistas, os massacres políticos e racistas. Depois, bombardeios arrasadores (no imediato pós-guerra, Rossellini mostrou, como nenhum outro cineasta, essa paisagem destroçada, em Alemanha, ano zero). Enfim, viu seus habitantes segregados de um lado e de outro do muro.
Hoje, a cidade se reconstrói, beneficiada pelos vastos espaços de que dispõe. Convoca os grandes nomes da arquitetura internacional que, ao inserirem nela os novos edifícios, renovam sua fisionomia levando em conta as marcas deixadas pelo passado dramático. Nada de tabula rasa, mas ramificações muito nuançadas. É difícil imaginar outro lugar que ofereça tal variedade, tal harmonia, e tal panorama da criação arquitetural contemporânea.
Tentos
Em Berlim, o admirável Sony Center, de Helmut Jahn, evoca uma enorme tenda de circo: efeitos transparentes provocam espanto maravilhado; a praça coberta é calorosa e sabe congregar. As Galleries Lafayette, de Jean Nouvel apresentam, em seu interior, dois enormes cones de vidro. Na embaixada da Holanda, de Rem Koolhaas, há transparências, opacidades, mistérios de enormes caixas que se projetam para fora do bloco central, suspensas no nada.
A lista de edifícios incomuns poderia continuar muito mais. Em sua maioria, possuem algo do que deve ter sido as primeiras grandes exposições universais no século 19. Luminosos, transparentes, exigem, sem dúvida, manutenção especializada e constante. Assumem, em seu aspecto, em sua estrutura, a fragilidade dos efêmeros.
Tempos
Incorporar uma velha ruína. Evocar formas que desapareceram. Dar sentido simbólico ao espaço. Uni-lo ao tempo. Pensar o edifício na trama da cidade que se refaz. Absorver nele o passado e inseri-lo na história: a arquitetura em Berlim, num grande número de soluções, deixou de lado as simplificações sumárias e o autoritarismo de tantos modernos. Encontra prazer na complexidade e dela se alimenta. É sutil nos materiais e nas formas. Atenta para o lugar e para a escala do homem. Opõe-se à temporalidade imutável. Esquece a eternidade com a qual sonhavam Speer e Hitler.
[artigo publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, caderno “Mais”, coluna “Ponto de fuga”, 02 out. 2005, p. 2.]
sobre o autor
Jorge Coli é historiador da arte e professor do IFCH Unicamp.