Edifícios antigos – alguns testemunhos do esplendor de outros tempos – em ruínas; armazéns, lojas, prédios de escritórios ou de apartamentos vazios ou semi-habitados; praças e calçadas maltratadas: essa paisagem se repete em quase todas as grandes cidades brasileiras. Desvalorizados pela lógica do mercado e pelo imaginário de nossa cultura urbana, esses espaços semi-abandonados abrigam hoje o que “sobrou” de sua centralidade anterior – quem não teve renda para acompanhar os novos lugares “em voga”, quem sobrevive da própria condição de abandono. Dessa forma, antigos centros das classes abastadas, que em algum momento já foram “o” centro da cidade, são hoje territórios populares numa condição física precária.
Excepcionalmente localizados em tecidos urbanos onde a urbanidade é mercadoria de luxo, em geral esses velhos centros ocupam áreas dotadas de infra-estrutura básica, com ampla acessibilidade por transporte coletivo. Daí decorre um enorme paradoxo das nossas cidades: ao mesmo tempo em que temos uma vasta porção constituída por assentamentos precários, demandantes de urbanização e regularização, e considerando os assombrosos números do déficit habitacional (segundo os estudos da Fundação João Pinheiro a partir do censo IBGE, são 15 milhões de domicílios a urbanizar e um déficit de novas moradias da ordem de 7 milhões), ainda assim existem hoje quase 5 milhões de casas e apartamentos vagos. No Recife e no Rio de Janeiro, os imóveis vagos chegam a 18% do total de domicílios da área urbana. Só na cidade de São Paulo, são 400 mil os domicílios urbanos vagos, a maioria deles situada em áreas consolidadas e centrais.
O déficit habitacional atinge principalmente famílias de renda inferior a 5 salários mínimos. Ao promover a reforma de parte desses imóveis centrais, destinando-os a esta demanda, a política pública cuidaria de incluir esta parcela da população na cidade formal, levando-a a habitar uma região consolidada, provida de toda infra-estrutura e mais próxima de locais de trabalho. Além disso, diminuiria a pressão pela expansão das fronteiras urbanas, a expansão infinita da não-cidade.
Para a política urbana brasileira, a reabilitação dos centros tem um sentido totalmente diferente do sentido – e da agenda – que os processos de revitalização de frentes portuárias e áreas centrais tiveram em cidades de países do Norte. Lá, a reconquista dos centros para a ampliação de espaços públicos de qualidade, a implantação de projetos turísticos através do trinômio equipamentos culturais/ entretenimento/gastronomia e a atração de escritórios inteligentes para a gestão de negócios globalizados constituíram programas que reposicionam essas áreas no ranking da competição global entre cidades, buscando para elas um lugar na era pós-industrial. O efeito imediato – enobrecimento das áreas – superou, via valorização imobiliária, investimentos públicos feitos no processo de requalificação urbanística.
Entretanto, em nosso caso a agenda é bem mais complexa. Em primeiro lugar, se examinarmos o próprio movimento que esvaziou os centros da presença de classes mais abastadas, perceberemos que, toda vez que o diminuto mercado de classe média em nosso país abre uma nova frente de expansão, esvazia a anterior.
Significa que a produção de uma nova centralidade enobrecida decreta a morte de sua antecessora. Em segundo lugar, a expulsão das atividades e territórios populares que ocupam estes lugares – decorrência direta e imediata de seu enobrecimento – pressiona ainda mais a precarização da cidade. Cada porção do centro “enobrecida” é mais uma favela ou pedaço de periferia precária que se forma.
Aliás, a primeira favela do Brasil – que batizou para sempre esta forma de assentamento – formou-se exatamente a partir de uma operação deste tipo. Aos que não conhecem o episódio, voltemos ao Rio de Janeiro dos tempos da Revolta da Vacina (1904), reconstituída no belo e breve livro de um dos nossos grandes professores de história, Nicolau Sevcenko (1). Essa revolta teve pouco a ver com a vacina em si. Ocorria naquele momento um processo higienista de expulsão de famílias, a maioria pobres habitantes de cortiços, situados em área central do Rio a ser embelezada.
Reabilitar os centros, segundo a estratégia de ampliar o espaço de urbanidade para todos, é, como sabemos, desafio de enorme complexidade. Entre outros fatores, porque não há solução possível que não rompa com a cultura corporativista dos vários entes públicos envolvidos na região (o “porto”, o “patrimônio”, o Estado, o município, a empresa ferroviária, a União, entre outros), naquela eterna luta entre órgãos setoriais e entes da Federação pelo controle e gestão do “público”. Significa romper o paradigma de que requalificar é sinônimo de excluir qualquer traço da presença dos mais pobres – a não ser como garçons, porteiros ou artistas envolvidos em espetáculos que compõem o cenário, pessoas que evidentemente viverão bem longe dali, em alguma favela ou periferia precária.
O governo federal, ao implementar sem alarde o Programa de Apoio à Reabilitação de Áreas Centrais, está ousando romper esses paradigmas. Assim está sendo no Projeto Recife-Olinda, elaborado de forma conjunta entre governo do Estado de Pernambuco, as prefeituras do Recife e de Olinda e quatro ministérios do governo federal (Cidades, Cultura, Planejamento e Turismo). Nesse projeto, que pretende repovoar toda a frente marítima que vai da colina histórica de Olinda ao Parque dos Manguezais no Recife, a urbanização das favelas é parte de um projeto que integra dimensões turístico-culturais à expansão de outras atividades econômicas, bem como a atração de residentes de vários grupos de renda.
No mês passado, foi assinado no Rio de Janeiro, com a presença do presidente Lula, convênio semelhante com a prefeitura da cidade, envolvendo os Ministérios das Cidades, Cultura, Planejamento e Transportes, o porto (Docas) e dois bancos públicos (BNDES e Caixa) para reabilitar a área portuária e bairros adjacentes. É evidente a enorme quantidade de imóveis vazios ou ociosos pertencentes ao governo federal nessas áreas, o que faz da participação dele uma obrigação! Há ainda o esforço conjunto do Programa Monumenta (do Ministério da Cultura), do Ministério das Cidades e do governo do Estado da Bahia, conseguindo que a sétima etapa de recuperação do conjunto do Pelourinho em Salvador incluísse a permanência das 103 moradias populares que heroicamente resistiram ao processo. Esta semana, inclusive, foi assinada a obra de serviço para a reforma dos casarões que abrigarão estas moradias.
Exemplos concretos do programa em andamento no País – projetos semelhantes estão sendo apoiados em São Luís, Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte – permitemnos afirmar que a solução “arrasa-quarteirão” proposta pela Prefeitura de São Paulo para a área da Luz, além de simplista e excludente, despreza a capacidade de nossos arquitetos, engenheiros, sociólogos e empreendedores imobiliários de enfrentar uma agenda complexa com soluções criativas e inovadoras, como aquelas que acabam de premiar o arquiteto Paulo Mendes da Rocha com o Prêmio Pritzker.
Nossa experiência de debate e formulação conjunta com municípios, Estados, setor empresarial da indústria da construção, movimentos populares e setores técnicos no âmbito do Conselho Nacional das Cidades revela que todos esses setores estão mais do que prontos para participar de empreitadas desse tipo, como já vinha ocorrendo na própria cidade de São Paulo, sob a administração petista. É uma oportunidade única recosturar nossas cidades partidas, rompendo com o padrão de guetos, esse apartheid que impossibilita a construção de uma cidadania ampla, condição essencial, e mais do que urgente, para o aperfeiçoamento de nossa democracia.
notas 1
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mente insanas em corpos rebelde. São Paulo, Scipione, 1993.
[artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 16 abr. 2006 com o título “Decrete-se o fim do paradigma de que requalificar o espaço urbano significa limpá-lo da presença dos pobres”. Colaboraram Margareth Uemura, Renato Balbim e equipe de Reabilitação de Áreas Centrais do Ministério das Cidades]
sobre o autor
Raquel Rolnik, arquiteta, é secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e professora do Mestrado em Urbanismo da PUC-Campinas.