Em 1966, Mirthes dos Santos Pinto era desenhista da Secretaria de Obras da Prefeitura de São Paulo. O prefeito Faria Lima, famoso por seu dinamismo, lançou um concurso para escolher um padrão de piso para a cidade. Mirthes arriscou-se a estudar algumas alternativas, e acabou inscrevendo uma delas. Ficou feliz em saber que estava entre os finalistas. Amostras de quatro projetos foram implantadas num trecho da rua da Consolação e, após nova votação, a alegria maior: sua proposta foi a vencedora.
O piso ganhou as calçadas da cidade. Nos primeiros anos, por iniciativa do poder público, as avenidas passaram a ser ladeadas pelo desenho geometrizado do estado de São Paulo. Aos poucos, os ladrilhos foram sendo produzidos por diversos fabricantes, e começaram a conquistar as calçadas das lojas e das casas. Em uma década, ele já era onipresente na paisagem urbana. Havia se tornado um ícone paulista.
Quem pensa que piso só serve para revestir o chão está muito enganado. O projeto de Mirthes não parou de expandir os seus domínios. Ele deixou de ser só um piso e transformou-se em um padrão gráfico, que passou a ser aplicado nos suportes mais diversos. Até solado de sandália, fachada de loja, estampa de tecido e rótulo de cerveja ele virou. Um sucesso!
No entanto, quase quarenta anos depois, Mirthes — agora Bernardes, seu nome de casada — não é só alegria: nunca recebeu um tostão pelo projeto. É verdade que a satisfação de quem projeta é ver sua criação ganhar o mundo, mas... nem um tostão também já é demais. É um notável caso de projeto que caiu em domínio público logo ao sair da maternidade.
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Até 2004, a história contada acima era pouco conhecida. Foram consultados arquitetos e engenheiros, todos com longas trajetórias ligadas ao setor público, e nenhum sabia dizer qual a origem desse desenho. Mirthes só apareceu depois da publicação de um artigo na revista Projeto/Design sobre o design no ambiente urbano, no qual o desconhecimento da autoria do projeto era citado explicitamente.
Resposta paulista ao brilhante projeto da calçada de Copacabana, seu desenho austero é fruto de uma solução engenhosa. Com apenas três peças quadradas — uma branca, uma preta e uma branca & preta, dividida na diagonal — cria-se um padrão de repetição infinito. Fabricado em ladrilho hidráulico, é de fácil produção e instalação, e acabou afirmando-se como uma identidade reconhecível e reconhecida pelo cidadão.
O desenho é um bom retrato do pragmatismo paulista: em contraste com as curvas do mar e das montanhas da calçada de Copacabana, a geometria rigorosa do mapa do estado de São Paulo. É difícil não entendê-lo como eco do movimento concreto, de raízes tão marcadamente paulistas. A partir das possibilidades da oposição positivo/negativo é criado um jogo de figura/fundo, no qual ora só se vêem as formas brancas, ora só se vêem as formas pretas. Essa construção geométrica migrou para símbolos de sucessivos governos estaduais, além da já citada transformação em padrão gráfico, aplicável nos mais diversos suportes.
Seu maior trunfo é a simplicidade compositiva, que se impõe pela clareza e legibilidade. Piso é informação subliminar. Esse desenho superou essa condição e foi assumido como um ícone paulista.
notas
[artigo publicado originalmente em MELO, Chico Homem de. Signofobia. Coleção Textos de Design. São Paulo, Rosari, 2005, p. 52-54.]
sobre o autor Chico Homem de Melo é designer, arquiteto, mestre e doutor pela FAUUSP, professor de programação visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diretor da Homem de Melo & Troia Design e um dos fundadores da ADG – Associação dos Designers Gráficos.