“A criação não é uma compreensão, é um novo mistério”
Clarice Lispector
Lúcio Costa entendia haver uma diferença fundamental entre o arquiteto moderno e o modernista. Segundo ele, o modernista era aquele que se limitava a usar os cânones estéticos sem a capacidade de manipulá-los em consonância com os contextos histórico e social – desprovidos da noção de temporalidade social. O moderno seria então, o que aquele que, entre outras coisas, considera como base fundamental do conhecimento na arquitetura os ensinamentos do passado.
Lúcio Costa admitia haver em sua criação para o projeto do plano-piloto um uso deliberado de suas referências urbanas criadas através de estudos ou de sua própria vivência em determinadas cidades – o que pode ser entendido como o vínculo do sujeito-criador com uma temporalidade individual imanente no processo de produção da arquitetura. Brasília, portanto, não é apenas uma tradução de conceitos do que se imaginava para uma cidade moderna. Ela é também uma simbiose feita entre o passado e o presente. O projeto para as superquadras carrega tanto quanto os conceitos da cidade-jardim as imagens das cidades antigas do Brasil, como explicou Maria Elisa Costa:
“nas cidades mineiras antigas, também a receita básica de moradia era uma só: casas geminadas, mesmo tipo de telhado, de janelas, de portas – as variações decorriam. da topografia, de sutilezas de proporção, dos detalhes, do acabamento, .da cor nas esquadrias, mas tudo claramente limitado pelo padrão comum da receita única. Talvez, seja este o parentesco entre dois resultados urbanos tão diferentes” (1).
A superquadra [figura 1] é um conjunto de edifícios residenciais sobre pilotis cercados por renques de árvores, formando um espaço finito configurado em um quadrado de 280 x 280 metros, cuja previsão de uma densidade populacional variava entre 2.500 e 3.000 pessoas. No item 16 do relatório para o plano-piloto de Brasília, Lúcio Costa explicitou a solução para o problema do setor residencial:
“Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de grandes quadras dispostas, em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem” (2).
Nos anos 40, Lúcio Costa utiliza no projeto para os edifícios do Parque Guinle, no Rio de Janeiro, pela primeira vez, a proposta Corbusiana de deixar o edifício sustentado por pilares, com o objetivo permitir o rés-do-chão aberto – o pilotis. Este fato tornou-se um marco da arquitetura na época e que, mais tarde, foi utilizado nas superquadras em Brasília [figura 2].
Os edifícios das superquadras, diferentemente do que hoje entendemos como condomínio, não ocupam lotes e sim, projeções. O chão passa, por conseguinte, a ser de uso comum, onde a liberdade de ir e vir dentro do espaço formado pela superquadra é público. Em outras palavras, os moradores não são mais donos de um terreno. Eles passam a deter, apenas, a concessão de uso de um espaço “aéreo” sobre uma área que é pública. O pilotis foi utilizado como intenção não apenas de proporcionar visibilidade, mas o da permeabilidade, viabilizando a passagem dos transeuntes eventuais – sem inibição ou distinção. O seu uso, portanto, deixa explícita a pretensão de que a cidade pertenceria a todos.
A superquadra comparece no projeto para o plano-piloto como elemento que, de forma contínua, configura uma tessitura de um dos dois eixos estruturadores da área urbanizada: o eixo do homem no nível de sua existência individual – o outro viria a representar a afirmação do sentido coletivo, traduzido por Lúcio Costa através do que ele denominou como escala monumental. No item 23 do relatório do plano-piloto ele explica da seguinte maneira a diferença entre os dois eixos:
“é assim que, sendo monumental, é também cômoda, eficiente, acolhedora, íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional [....] Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade-parque. Sonho arqui-secular do Patriarca” (3).
Na confluência de quatro quadras Lúcio Costa propôs a localização de equipamentos comuns com o intuito de proporcionar integração entre os seus moradores. O protótipo que representa esse conceito encontra-se na asa sul de Brasília, entre as superquadras 107, 108, 307, 308. Os equipamentos escolhidos para o protótipo foram: igreja, escola, clube, cinema [figura 1] – tal conjunto passou a ser chamado, a posteriori, de Unidade de Vizinhança. Da obra de Kevin Lynch: “A imagem da Cidade”, extrai:
“uma cidade legível seria aquela cujos bairros, marcos ou vias fossem facilmente reconhecíveis e agrupados num modelo geral [....] um cenário físico vivo e integrado, capaz de produzir uma imagem bem definida, desempenha também um papel social. Pode fornecer a matéria-prima para os símbolos e as reminiscências coletivas da comunicação de grupo” (4).
A permeabilidade proporcionada pelo pilotis assumiu um papel primordial na ligação entre as superquadras. Por seu intermédio, eixos reais e virtuais proporcionam possibilidades de articulação para o trânsito de pedestres. Sendo assim, o pilotis participa, de forma fundamental, na consolidação da integração, principalmente, do conjunto de cada quatro quadras. A implantação dos edifícios construídos na área residencial das setecentos (5) [figura 3] – da 702 a 716 –, na asa sul (714 e 715), são um exemplo de que é necessária a harmonia entre o edifício e a topografia para que a função plena do uso do pilotis seja atingida [figuras 4 e 5].
A comparação entre o croqui feito por Lúcio Costa para demonstrar a ocupação de uma superquadra [figura 6] com a implantação do projeto feita pelo Estado, demonstra que a realidade é uma interpretação e não, uma reprodução fiel da proposta. O modelo padrão [figura 7] utiliza projeções nas fronteiras da superquadra, cujo conceito se desfez em algumas superquadras, tanto na asa sul quanto na asa norte [figura 8]. Fica então, a hipótese a ser investigada de que se em cada caso fossem considerados os fatores como a insolação e a topografia, um melhor resultado na implantação dos edifícios seria alcançado, além de uma sintaxe espacial com mais possibilidades.
O uso do pilotis, em especial na superquadras mais novas, demonstra a subversão mais grave relativa ao conceito imaginado por Lúcio Costa. Ocorreu o que pode ser entendido como a inversão do protótipo para um estereótipo. A desarmonia entre a implantação do edifício e topografia aliada ao fenômeno da privatização parcial do pavimento térreo – que passou a ser usado, não penas para os acessos, mas também para espaços como o salão de festas – limitou o pilotis, do ponto de vista formal, à leitura como um elemento, cujo sentido da existência encontra-se praticamente limitado ao cumprimento de uma exigência do código de obras. Com efeito, o resultado do conjunto em uma superquadra ficou sujeito ao nível de comprometimento dos arquitetos e das incorporadoras com o conceito original. Preservou-se a visibilidade, mas não o mais importante, a permeabilidade. Os edifícios, aos poucos, transformaram-se em barreiras arquitetônicas que dificultam inelutavelmente o deslocamento de transeuntes e privam a população de usufruir os ensinamentos de grandes mestres da arquitetura [figura 9 e 10].
notas1
COSTA, Maria Elisa. Brasília 57-85: do plano-piloto ao “Plano Piloto”, p. 326. In: COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das artes, 1995.
2
COSTA, Lúcio. Plano-piloto de Brasília . Brasília, Módulo Arquitetura Ltda, s/d, p. 14
3
Idem, ibidem, p. 18.
4
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 8.
5
Área residencial projetada pela NOVACAP formada, primordialmente, por casas, contrariando a proposta de Lúcio Costa, que previa a localização de pomares e hortas.
sobre o autor Francisco Lauande é arquiteto. Formado pela Universidade de Brasília (1987). Tem curso de pós-graduação em Sistemas de Construção pela Universidade Metropolitana de Tóquio (1990-1991). Foi membro do Conselho Fiscal do IAB-DF (1996-1997) e Diretor Cultural do IAB-DF (2000-2001). Foi o responsável pela organização da III Bienal de Arquitetura de Brasília (2001). Aluno de mestrado da FAU-UnB. Orientado pelo professor Antônio Carlos Carpintero.