Estância turística (1) localizada a 172 km da capital do Estado, a cidadezinha paulista São Luiz do Paraitinga está implantada em um pequeno vale, a 740 metros acima do nível do mar. Cidade serrana, de clima temperado com inverno seco, em qualquer lugar deste pequeno agrupamento humano de 10.417 habitantes (2) o plano de fundo é formado pelas montanhas da Serra do Mar que a circundam totalmente. O acesso se faz pela Rodovia Oswaldo Cruz – homenagem ao famoso médico sanitarista, “paraitinguense” de nascimento –, que liga a cidade de Taubaté, no Vale do Paraíba, à cidade de Ubatuba, localizada no litoral norte de São Paulo.
O nome da cidade remonta à segunda metade do século 18, quando o posto de tropeiros e bandeirantes acaba se transformando em vila e, posteriormente, cidade. A toponímia é resultante da somatória de “São Luís”, bispo espanhol nascido em Tolosa e padroeiro da cidade, e “parahytinga”, nome do rio que a atravessa, cujo significado traduzido do tupi-guarani equivale a "águas claras" (3), o que não deixa de ser engraçado, quando nos deparamos com o rio volumoso e barrento nesse período de chuvas de final de verão.
O núcleo histórico é constituído por um casario homogêneo, de pavimento único, quase sempre medianeiro, muitas construídas em taipa-de-pilão, com paredes internas de pau-a-pique, hoje ostentando cores vivas e contrastantes em suas fachadas. As aberturas para as ruas estreitas, calçadas de pedras lavradas ou lajotas de concreto, se resumem na maioria das vezes a uma ou duas janelas altas e estreitas, encimadas por algum adorno em baixo relevo, que muitas vezes se repete na platibanda.
Condicionadas por lotes muito estreitos e cumpridos, as casas são espichadas longitudinalmente, com entradas laterais em sua maioria. Algumas casas maiores e mais bem construídas se destacam como exceção, ostentando quatro ou mais janelas e porta diretamente voltada para a rua. Algumas delas chega ao luxo de dois pavimentos, marcando com sua presença urbana a relevância social de seus proprietários. O conjunto de edificações do século 19 tombado pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico – atesta a importância do patrimônio arquitetônico local (4).
Esta cidade, que ao primeiro olhar despreocupado se assemelha a um vilarejo perdido no tempo, é habitada por uma comunidade pacata e hospitaleira. Com uma inesperada sinceridade, um periódico local de distribuição gratuita assume com tranqüilidade uma hipotética cultura caipira local, que não teria qualquer resquício dos matutos pobres e ignorantes, sentados sobre os próprios calcanhares, versão monteirolobatiana do interiorano arredio:
“O cidadão de São Luiz do Paraitinga representa perfeitamente o modo de vida caipira, com todos os aspectos daquilo que Antonio Candido definiu com tanta propriedade como Cultura Caipira. Segundo o ilustre ensaísta e crítico literário emérito ‘a cultura caipira não é e nunca foi um reino separado, uma espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil, portanto veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português antigo...’ Os muitos anos de relativo isolamento fizeram que se conservasse muitos desses aspectos ‘... da difusão intensa da cultura portuguesa com a aborígine e conservando a fala, os usos, as técnicas, os cantos, as lendas...’, continua o Antonio Candido, confirmando a gênese da criação do arquétipo do caipira ‘...que a cultura da cidade ia destruindo, alterando essencialmente ou caricaturando...’ Nas palavras do ensaísta ‘... O caipira, um ser extraordinário, capaz de sentir e conhecer a fundo o mundo natural, usando o com uma sabedoria e eficácia que nenhum de nós possui’.” (5)
Nesse cenário e em meio a essa gente, crescente legiões de visitantes se reúnem, em diversas ocasiões durante o ano, para festividades diversas. Conforme salienta um website da cidade, São Luís do Paraitinga “oferece a imagem de um presépio ao viajante”, com “um vasto calendário de manifestações religiosas e profanas, que têm seus pontos altos na Festa do Divino Espírito Santo e no Carnaval, respectivamente” (6). Ao que tudo indica, as festas religiosas são para os mais velhos e as profanas para a juventude. Ao menos era o que parecia a quem chegasse no meio do carnaval recém terminado e se deparava com milhares de adolescentes de 16 a 25 anos que abarrotaram as ruas centrais, triplicando – quiçá quadruplicando ou quintuplicando – a população local.
Alunos do segundo grau e universidade, vindos da capital e de diversas cidades do interior do Estado, garotos e garotas se misturavam aos poucos jovens locais e dançavam, de dia e de noite, atrás dos blocos carnavalescos ou na praça central, frente à Igreja Matriz. Esta, de forma prudente, ficou fechada praticamente o tempo todo, abrindo uma breve exceção para a encomenda do corpo de um falecido. Mesmo no carnaval as pessoas insistem em morrer, abrindo de forma forçada uma fresta melancólica na euforia predominante.
Os blocos constituem um assunto à parte. Com nomes pitorescos ou engraçados – Pé na Cova, Bicho de Pé, Urubu, Troço, Maricota, Bebebum, Barbosa, Balacobaco, Juca Teles, Maria Gasolina, Cruis Credo, Corvo, Saci e outros mais ou menos cotados –, os blocos se apresentam ladeados bonecos gigantes e tocam suas próprias marchinhas, uma por grupo, cujas letras primam pela irreverência, deboche ou saudosismo. Como não poderia deixar de ser diante de um público tão jovem e com os hormônios explodindo, quase todas com algum tipo de apelo sexual, mais ou menos chulo, mais ou menos gozado (sem qualquer tipo de malícia no trocadilho inesperado).
A chita impera como material preferencial das decorações e adereços. Está presente nas cortinas das casas e na simulação destas, encimando mastros de madeira da decoração oficial das ruas centrais; está presente nas fantasias, para alegria dos comerciantes locais, que vendem roupas descartáveis para um público ávido pela integração ao meio local; está presente no revestimento do caminhão convertido em palco ambulante, que leva todos os grupos musicais pelo trajeto curto de menos de um quilômetro. Os músicos das bandas são muito jovens e o som é muito ruim (o das caixas eletrônicas, que impediam uma verificação mais detida do eventual talento musical dos protagonistas – não que isso tivesse alguma importância, afinal o barulho era suficiente para todos dançarem até se cansar).
O calor escaldante durante o dia não impedia que a festa recomeçasse religiosamente todos os dias, logo após o almoço um pouco tardio. Mangueiras atarraxadas nas torneiras de casas e lojas comerciais espirravam água nos foliões suados e nos desavisados observadores mais pacatos. Contraste maior não poderia haver com a crônica falta de água nas casas dos bairros anexos ao centro histórico. O desperdício de um lado, o racionamento compulsório de outro, acabou por gerar o mais evidente desconforto diante da felicidade reinante. E foi parar nos meios de comunicação: “antes do desfile, os responsáveis pelo bloco improvisaram um palanque ao lado do trio elétrico. [...] Bastou o microfone ser entregue ao público para que políticos, mulheres e até mesmo a falta de estrutura da cidade fossem o motivo de diversão. A falta de água em bairros mais altos da cidade no período do carnaval foi a reclamação geral, bronca das mais aplaudidas” (7).
Na falta de infra-estrutura hoteleira para abrigar um contingente tão numeroso (e “duro”), coube às moradias da população mais pobre fazer as vezes de albergues improvisados. Uma rica atividade econômica vai de vento em popa na cidade, com alguns poucos “agentes imobiliários” convencendo as famílias a alugar suas casas para grupos de estudantes. Onde mora quatro ou cinco pessoas se amontoam nos quatro dias governados por Momo não menos de 10 pessoas, número que pode chegar, sem muito esforço, ao dobro. Perdem os moradores, que vão se amontoar na casa de parentes e ficam com menos da metade do valor pago; perdem os locatários, que alugam gato por lebre (sedenta!). Bem, não é difícil imaginar quem ganha – os comerciantes da área central, onde nunca falta água e conta com um público cativo de consumidores; os já mencionados “agentes imobiliários”, que pouco precisam trabalhar devido a avalanche de pessoas que ocorre para a localidade; os políticos locais, que se projetam para fora do âmbito regional com a festa que ano a ano ganha fama de ser o carnaval mais “tradicional” do Estado de São Paulo.
Contudo, os blocos mais antigos de São Luiz do Paraitinga não ultrapassam duas décadas de existência, conforme se constata nos letreiros dos estandartes que carregam. São, portanto, relativamente jovens e nos deparamos mais com uma situação de resgate histórico do carnaval tradicional baseado na marchinha do que propriamente uma sobrevivência cultural. Com grande senso de oportunidade e marketing, a política-cultural da cidade forjou uma imagem de cidade festeira, que mescla as imagens difusas do carnaval de antigamente, a figura do “caipira” interiorano e um cenário urbano que transpira reminiscências de um passado quase esquecido no tempo.
Mas com o passar dos dias, o encanto vai aos poucos se desfazendo – ao menos para aqueles que contam com alguma sobriedade em meio a tanta cerveja e outros aditivos – e uma nova percepção, mais inquiridora, divisa na paisagem índices diversos que divergem da cena oficial: fiação elétrica excessiva, antenas parabólicas encimando dezenas de residências, torres de celular no morro mais alto, dezenas de estacionamentos acomodando centenas de automóveis de todo tipo, abastecimento e serviços precários, desabastecimento seletivo de água, sujeira e imundície em todos os cantos e recantos (e a situação só não chegou ao caos graças a uma providencial chuvarada, na tarde de segunda-feira, que amenizou o cheiro já insuportável). Surge diante dos olhos o inevitável: a total integração tecnológica ao mundo contemporâneo, a incompetência gerencial do município, o abismo entre a dimensão da festa e a capacidade da cidade em abrigá-la com um mínimo de conforto.
Pode ser uma percepção equivocada, por demais crítica e pouco tolerante, sem qualquer reverberação entre os mais jovens, mais (des)preocupados em se divertir ao máximo no pouco tempo disponível. Mas é possível arriscar que não há sustentabilidade no evento, em qualquer um dos aspectos que possamos focar –cultural, urbano, econômico ou ecológico (ao lado de uma das cachoeiras da região aconteceu um “carnarock”, com centenas de jovens destruindo um lugar maravilhoso, graças à exploração econômica descabida por parte do proprietário do local). Verdadeira “cidade temática” contemporânea, São Luiz do Paraitinga se apóia em um marketing agressivo para abrigar uma festa cada vez maior, mas ao que tudo indica sem uma política com estofo necessário para contemplar necessidades locais a médio e longo prazo. Uma festa rápida e que traz muitos recursos para a cidade, mas que traz igualmente problemas sérios e de difícil equação.
Cabe como epílogo mencionar que o ponto alto é a felicidade e a tolerância reinantes, provavelmente pela presença da “turma do bem”, público hegemônico até o momento. Não se viu brigas ou conflitos maiores e os inúmeros soldados deslocados da capital pouco trabalho tiveram diante do clima de confraternização. Mas os jovens forasteiros estavam muito mais preocupados em se conhecer e “ficar” do que ter qualquer envolvimento com a comunidade local. É até possível imaginar que uma cidade-cenário montada em algum município da Grande São Paulo seria capaz de criar uma situação análoga: casario antigo, fantasias de chita, música tradicional e bebida à vontade. Entretanto, o imponderável sempre pode surgir em cena. Todos os dias, no início da noite – horário quando ninguém estava dormindo ou dançando –, legiões de jovens sentavam-se em rodas nas calçadas, trocando impressões e experiências. De forma involuntária e absolutamente casual, acabaram por experimentar uma verdadeira tradição da vida caipira: tomar a fresca depois do jantar. Sem televisão, sem pressa, sem angústia.
notas1
Estatuto aprovado pela Lei Estadual nº 11.197, de 5 de julho de 2002.
2
Cf. Censo 2.000, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
3
Cf. website oficial da Prefeitura Municipal de Paraitinga <www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br>.
4
”O município de São Luiz do Paraitinga é uma estância turística que possui 90 prédios tombados pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de São Paulo) desde 1977”. Amigo Real restaura patrimônio histórico. In Banco ABN AMRO Real S.A. <www.bancoreal.com.br>. Recursos do “Amigo Real”, programa dos funcionários do BANCO REAL, foram aplicados em programas voltados para o restauro do patrimônio arquitetônico local. Para maiores informações sobre o patrimônio arquitetônico da cidade, ver CARRANZA, Edite Galote R. “São Luiz do Paraitinga” <www.arquitetonica.com>.
5
COSTA, Sérgio. “A cultura caipira”. Nosso feriado, nº 5, São Luiz do Paraitinga, 2007, p. 4. Foram mantidos os erros de grafia e de coordenação das citações presentes na publicação original.
6
Paraitinga.net <www.paraitinga.com.br>.
7
MOREIRA, Ardilhes. “Foliões protestam em São Luiz do Paraitinga”. Site G1, 19 fev. 2007 <http://g1.globo.com>.
sobre o autor Abilio Guerra, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius.