No momento em que este texto estiver sendo lido, talvez ele já tenha perdido a sua utilidade. Pois foi escrito com um propósito claro: somar-se a tantos outros manifestos, atos, pessoas, movimentos, que se unem à resistência de mais de 2 mil moradores do edifício Prestes Maia no centro de São Paulo. Enquanto o Prestes Maia estiver ocupado este texto se mantém como manifesto. Se transformará em texto acadêmico no instante exato em que a porta da frente do Edifício Prestes Maia for arrombada pelo capital imobiliário travestido de poder público. Não queremos nem esperamos que isso aconteça.
A reintegração de posse está marcada para o dia 25 de fevereiro.
O centro da cidade de São Paulo possui cerca de 40.000 imóveis abandonados só na região da Administração Regional da Sé (1). A grande maioria desses edifícios é formada de antigos escritórios vazios ou subutilizados, com um grau avançado de obsolescência. Em 2000, 18% dos domicílios da área central estavam vagos, e foram identificados 200 edifícios residenciais, constituintes dos primeiros e famosos antigos arranha-céus da cidade, totalmente vazios e abandonados. Segundo Váleria Bonfim Cusinato (2), a vacância encontrada no centro de São Paulo atualmente excede a vacância desenhada pelos modelos de equilíbrio, estabelecidos pela relação entre oferta e demanda.
Assim, no início dos anos 1990 os movimentos sociais e populares de luta por moradia adotaram como estratégia reivindicar programas habitacionais na área central da cidade de São Paulo, ocupando os edifícios vazios da região. Por meio dessa estratégia a luta por moradia se aliou conjuntamente à questão da reforma urbana, do direito à cidade, e à necessidade de viver em locais dotados de infra-estrutura, equipamentos sociais e empregos como os centros das grandes cidades. A FLM – Frente de Luta por Moradia congrega 12 movimentos urbanos da cidade de São Paulo, entre eles o MSTC – Movimento do Sem-Teto do Centro e o MMRC – Movimento de Moradia Região Centro, que lutam pelo acesso e posse da terra, pela regularização fundiária, pela auto-gestão e mutirões, por novos conjuntos habitacionais, por preços de financiamento habitacional mais justos, mas principalmente pela Reforma Urbana e pela moradia no centro da cidade, atuando através da ocupação de prédios vazios e abandonados (3).
Nos últimos 20 anos do século XX, metade da construção de moradias na cidade de São Paulo foi realizada na ilegalidade (4). Segundo João Sette Whitaker Ferreira, as grandes metrópoles brasileiras têm em média entre 40 e 50% de sua população vivendo na informalidade urbana, das quais de 15 a 20% em média moram em favelas (5). Trata-se de uma gigantesca produção improvisada da cidade, sem a participação dos governos e sem recursos técnicos e financeiros significativos. A obtenção ilegal de moradia é umas das poucas alternativas encontradas perante os problemas da questão habitacional brasileira, que atinge hoje cerca de 7.223.000 pessoas (6).
Na ausência de uma política habitacional autêntica, as ocupações se transformaram num instrumento de pressão junto ao poder público, colocando em pauta ao mesmo tempo a questão da habitação nas áreas centrais e a necessidade de combater a vacância no centro da cidade (7). No entanto esses movimentos sociais de luta por moradia ainda são “marginalizados” pelos meios de comunicação hegemônicos e repreendidos violentamente pela polícia.
Todas as reintegrações de posse que assistimos nos últimos anos foram violentas: violaram a privacidade, violaram o corpo; largado às intempéries do clima, às intempéries dos grupos de extermínio de moradores de rua, às intempéries de policiais opressores. As reintegrações de posse que ocorreram entre 2005 e 2007 se alinham à política atual de revitalização da área central da cidade de São Paulo, que se autodenomina como “Operação Limpa”. Por meio dela foram proibidas a circulação de carroças de catadores, a permanência de moradores de rua e camelôs no centro da cidade, e diversas ocupações e edifícios abandonados receberam suas reintegrações de posse a partir de 2005.
"E nas nossas cidades, a intervenção estatal foi capaz de produzir recorrentemente a diferenciação espacial desejada pelas elites, e a disputa pela apropriação dos importantes fundos públicos destinados à urbanização caracterizou – e caracteriza até hoje – a atuação das classes dominantes no ramo imobiliário” (8).
A ocupação do edifício Plínio Ramos (Rua Plínio Ramos, sem nº, Luz, São Paulo SP) foi habitada por 79 famílias durante 2 anos e oito meses. Os moradores se organizavam por meio do MMRC – Movimento de Moradia Região Centro: as pessoas moravam em quartos e salas criados pelos próprios moradores com divisórias de compensado e restos de madeira; os banheiros, a lavanderia e cozinha eram comunitários; existia um ateliê de costura coletivo; uma sala administrativa do movimento; uma sala de reuniões com cursos de reforço escolar para crianças, alfabetização de adultos, reuniões da comunidade e aulas de break. A “reintegração de posse” do edifício foi realizada em agosto de 2005. Houve confronto com a Força Tática da Polícia Militar, cujos "soldados" arrancaram suas identificações propositalmente fixadas com velcro. Cerca de 150 pessoas foram encurraladas durante a ação e mantidas por 2 horas em cárcere privado, submetidas a tortura física e psicológica. Dois militantes foram espancados. As famílias não tiveram direito à negociação ou contrapartida do Estado, e como protesto montaram acampamento na própria rua, em frente ao edifício, que permanece vazio até hoje, com um muro de concreto construído sobre a porta.
Na ocupação do edifício Paula Souza (Rua Paula Souza, Luz, São Paulo SP) viviam 70 famílias desde novembro de 2002, sem coordenação por meio de movimento social. Os moradores se organizavam de maneira auto-gestionária. No dia 6 de outubro foi executada a reintegração de posse do prédio e, como as famílias não puderam negociar com o governo, acamparam na própria rua Paula Souza, onde também se encontravam remanescentes da ocupação vizinha, o edifício Plínio Ramos.
A última delas é a ocupação do edifício Prestes Maia (Avenida Prestes Maia nº 911, Luz, São Paulo SP), organizada pelo MSTC – Movimento do Sem-Teto do Centro. Ela é considerada a maior ocupação vertical da América Latina, pois abriga cerca de 470 famílias, com quase 2000 moradores. São 23 andares inteiramente ocupados mesmo sem maquinário de elevador funcionando. O imóvel, ocupado em 2002, estava abandonado há quase 15 anos, sendo que o proprietário deve cerca de R$ 5 milhões de IPTU. Depois da ocupação os moradores retiraram cerca de 200 caminhões de lixo e entulho do prédio, e se organizaram coletivamente na manutenção da limpeza e segurança, inibindo o tráfico de drogas e a criminalidade; há uma biblioteca comunitária, programas de reciclagem, de educação, intervenções e oficinas culturais. Os banheiros também são de uso coletivo. A ocupação recebeu a ordem de reintegração de posse no mesmo período que suas vizinhas, porém devido ao seu tamanho e sua organização, demorou um pouco para acontecer. Agora o despejo está marcado para o dia 25 de fevereiro.
Tratar o direito à moradia com indiferença é o que podemos esperar de uma opinião pública domesticada por meios de comunicação monopolizados que insistem em cultivar consensos reacionários (desde aquele de Washington até outros piores). Mas como explicar a mesma indiferença das classes profissionais que diretamente lidam com a conformação do espaço urbano?
Nos últimos dois anos incontáveis reintegrações de posse, algumas muito violentas, passaram despercebidas pela OAB, IAB, Crea, Fenarj, entre tantos outros. Estes fecharam seus olhos e ataram suas próprias mãos enquanto movimentos sociais e artísticos, e alguns pouquíssimos representantes políticos e religiosos, ainda tentavam ingenuamente fazer frente a um poder esmagador, corporificado no capital imobiliário inumano. O resultado da equação desigual é inevitável: mais Capital, menos Teto. São Paulo, capital dos sem-teto.
O que estão fazendo os órgãos representantes desses profissionais que, por princípio, deveriam empenhar-se na construção de uma gestão urbana mais justa, de uma cidade mais democrática e de uma realidade social mais digna? Onde estão os arquitetos urbanistas, juristas e advogados, sociólogos e cientistas políticos, historiadores e jornalistas – sem eximir da responsabilidade cívica e da consciência política os demais setores da sociedade?
Se é verdade que a especulação imobiliária financia o prestígio e a ascensão de profissionais empenhados na defesa de seus interesses, manutenção de seus privilégios e aumento de suas margens de lucro, deveriam ser atividades obrigatórias das entidades supracitadas ações em defesa dos interesses públicos, dos ideais de justiça social e manifestações públicas de solidariedade e indignação quando temos, como agora, ataques desumanos às parcelas mais frágeis e desassistidas da sociedade através da negação a um dos mais básicos direitos garantidos ao cidadão brasileiro através da constituição federal, a moradia.
Esperamos que a omissão do passado possa ser amenizada em uma luta conjunta, ao redor da última e forte resistência dos sem-teto do centro de São Paulo: o edifício Prestes Maia.
Epílogo – Constituição da República Federativa do Brasil, 1988
Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º [...]
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º [...]
§ 4º É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – [...]
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – [...]
V – [...]
VI – [...]
VII – redução das desigualdades regionais e sociais.
notas
1
RECONSTRUIR O CENTRO – RECONSTRUIR A CIDADE E A CIDADANIA. São Paulo, Pró-Centro / Prefeitura Municipal de São Paulo, número único, set. 2001, p. 17.
2
CUSINATO, Váleria Bonfim. Os espaços edificados vazios na área central da cidade de São Paulo e dinâmica urbana. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Poli-USP, 2004, p. 69-76.
3
GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo, Edições Loyola, 1991.
4
CASTRO E SILVA. Apud MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades – alternativas para a crise urbana. Petrópolis, Vozes, 2001, p. 133.
5
FERREIRA, João Sette Whitaker. “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil”. Artigo para publicação no livro editado pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz, (no prelo), São Paulo, 2005. Retirado do website da FAUUSP, p. 1.
6
Cf. Ministério das Cidades, dez. 2004.
7
BONDUKI, Nabil. São Paulo na virada do século XXI: a luta contra a exclusão nas áreas centrais. Brasília, Ministério das Cidades, 2005 <www.cidades.gov.br>. Último acesso em 22 fev. 2007. Do mesmo autor, ver também: BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 1998; BONDUKI, Nabil. O Plano Diretor e o desafio da reabilitação da área central com inclusão social em São Paulo. In GUERRA, Abílio (Org.). Metrópole. Catálogo do Fórum de Debates da 5ª Bienal Internacional de Arquitetura e Design de São Paulo. São Paulo, Fundação Bienal / IAB / CCBB-SP / Romano Guerra Editora, 2003.
8
FERREIRA, João Sette Whitaker. Op. cit., p. 5.
referências complementares
ESTATUTO DA CIDADE. Guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília, Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001.
www.vivaocentro.org.br (último acesso: 22/02/2007).
www.mstc.org.br (último acesso: 22/02/2007).
www.gruporisco.org (último acesso: 22/02/2007).
http://integracaosemposse.zip.net (último acesso: 22/02/2007).
sobre os autores
Camilo Kolomi D'Angelis, Diana Helene Ramos e Flávio Higuchi Hirao são arquitetos; Ulisses Terra é estudante de arquitetura; Eduardo Costa é fotógrafo. Todos são membro do Grupo Risco.