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my city ISSN 1982-9922

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TABACHI SILVA, Letícia. Salve! Salve o carnaval de Salvador! Minha Cidade, São Paulo, ano 07, n. 080.02, Vitruvius, mar. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/07.080/1929>.


Vendedores ambulantes. Circuito Barra-Ondina
Foto Leonardo dos Santos, fev/2005


Acampamento improvisado por vendedores ambulantes. Circuito Barra-Ondina
Foto Leonardo dos Santos, fev/2005

Acampamento improvisado por vendedores ambulantes. Circuito Barra-Ondina
Foto Leonardo dos Santos, fev/2005

Cordeiros no momento de descanso. Circuito Barra-Ondina
Foto Leonardo dos Santos, fev/2005

Cordeiros encostados nos trios elétricos aguardando para entrar na avenida. Circuito Barra-Ondina
Foto Leonardo dos Santos, fev/2005

 

Salvador é a capital onde acontece uma das maiores festas carnavalescas do Brasil. O seu carnaval abrange três circuitos na cidade: um acontece na orla, chamado Circuito Barra-Ondina; outro no centro, o Circuito Campo Grande-Castro Alves; e o terceiro é o circuito Batatinha, que acontece no centro histórico do Pelourinho. Nos dois primeiros, o ritmo que prevalece é o Axé, estilo originado na Bahia há 20 anos e que detém um grande número de músicos e bandas. No Pelourinho se encontra o velho e tradicional carnaval com as conhecidas marchinhas carnavalescas, muito confete, serpentina e purpurina... crianças e adultos fantasiados... palhaços, pierrôs, super-heróis e negas-malucas... Poderia se dizer que nada de novo ou incomum se não fosse a mistura com a batucada dos tambores que remete às festas de terreiros locais.

Mas, o mais surpreendente é ver como o tradicional carnaval adquire novos rumos nos dois primeiros circuitos, que são os mais famosos. Não é uma mistura da cultura baiana com o carnaval tradicional, é um novo e espetacular carnaval que surge, que não se resume apenas ao novo ritmo do Axé, e sim a uma outra forma de se festejar. As bandas não seguem mais no meio das ruas, andando junto aos foliões, agora tocam sobre trios elétricos, os grandes palcos ambulantes. Não existe a surpresa das fantasias de carnaval, todos estão vestidos iguais, uniformizados com os padronizantes “abadás”. A rua, que é por excelência o lugar do encontro das diferenças, passa a ser privatizado pelos blocos que se aventuram a separar os foliões através das cordas e dos cordeiros que tentam a força evitar que a mistura de pessoas aconteça. Dentro das cordas apenas os uniformizados, aqueles que puderam pagar pra se vestir iguais e que querem talvez evitar a possibilidade de misturar-se.

Imensos trios elétricos, som eletrizante, blocos não mais “sujos”, mas sim com centenas de “arrumadinhos”, camarotes para os “vips”, que nem mesmo querem colocar os pés nas ruas. Um espetáculo que acentua as diferenças em uma festa onde antes prevalecia a mistura, onde todos estavam no mesmo patamar, pulavam, cantavam e festejavam juntos. Dentro dessa lógica do espetáculo carnavalesco de Salvador, novos personagens vão surgindo para sustentar a mega-estrutura de um carnaval para poucos. Aqueles que são excluídos de participar diretamente da festa tentam da melhor forma usufruir dela: são os vendedores ambulantes, os cordeiros e a galera da “pipoca”. Estes disputam as frestas que lhes sobram para aproveitar ou trabalhar no carnaval. O que se vê nas ruas próximas aos circuitos é um acampamento improvisado, pessoas que antes mesmo de começar o carnaval delimitam seu território nas calçadas e ruas e fazem delas sua casa durante os dias de folia. Guardas-sol e lonas plásticas viram telhados; muros e grades tornam-se varais de roupas; alguns levam seus colchões, outros dormem em cadeiras ou direto nas calçadas; homens, mulheres, crianças...todos acampados. A necessidade de guardar o território força essa situação, junto também com a dificuldade para utilizar o transporte coletivo que, nesse período, torna-se um verdadeiro caos: super lotados e com itinerários escassos devido às novas rotas viárias que assumem para liberar os circuitos carnavalescos.

A cidade se transforma e, dentro dos circuitos do Axé, o que se pode ver nem sempre é de agradar aos olhos. Vindos do circuito “Campo Grande-Castro Alves” para o “Barra-Ondina”, antes mesmo de entrar em ação, os trios elétricos se enfileiram desde a ladeira da Barra à avenida Oceânica, ocupando um lado inteiro da pista e dificultando o trânsito nessa região. Nas proximidades do Farol da Barra, onde se inicia a “passarela do Axé”, a confusão é ainda maior, junto aos foliões uniformizados ansiosos para entrar na avenida, existe uma enorme quantidade de cordeiros que se preparam para entrar em ação. Um pouco mais atrás, nos trios anteriores, outros tantos cordeiros, que ainda têm um tempinho antes de entrar na avenida, tentam descansar nas calçadas, deitados em chão, encostados nos muros “fazendo uma boquinha”, ou até mesmo encostados nos pneus dos trios como se fossem imensas almoçadas de recosto, recuperando de alguma forma as energias gastas no circuito anterior. A segregação é nítida e agressiva, os cordeiros nem sempre são homens fortes e musculosos, nos trios mais populares existem também mulheres, adolescentes e até mesmo senhoras, que à custo de muito esforço tentam lucrar com a festa carnavalesca.

Os bastidores de uma das maiores e mais lindas festas carnavalescas do Brasil, como anuncia a mídia, é composto de um cenário hierarquizado, preconceituoso e explorador. Mas, a imagem que nos é vendida mostra um espetáculo de muita gente bonita, sorridente e feliz, e como todo “espetáculo ele se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de ”o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que por principio ele exige é a da aceitação passiva que, de fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência” (1).

Esse espetáculo tendencioso e hipnótico tende a direcionar nosso olhar para aquilo que deve ser visto e, muitas vezes, nos desvia da realidade para a fantasia. Ele captura os movimentos de resistência que os ameaça, englobando-os e inserindo-os dentro de sua lógica. Até mesmo os tradicionais filhos de Gandhy, sobem no trio elétrico e entram na avenida como se fosse mais um bloco rodeado de cordas, e desfilam para mostrar um cenário branco e belo, na tentativa de exibir uma mistura cultural e racial dentro da lógica espetacular. Um verdadeiro aparelho de captura que disciplina até a rota dos foliões, marca e delimita o território, restringi seu acesso e dita as normas da festa, na tentativa de cultivar seu poder e manter o controle até mesmo da própria folia.

notas1
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 16. Ver também: DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo, Editora 34, 1997.

sobre o autorLetícia Tabachi Silva, arquiteta, mestranda em urbanismo pela UFBA.

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