Se o passado é simplesmente uma construção cerebral, que se forma coletivamente com as lembranças que a memória retém e pode descrever, felizmente ele também deixa rastros, registros e marcas do que foi. Graças a isso, a humanidade, através de pacienciosas comparações entre o que foi, o que era e o que poderia vir a ser, somou saberes e construiu civilizações. Nesse processo, a cidade sempre foi a grande receptora e difusora da memória, seja através da arquitetura de seus edifícios ou dos bens ali armazenados.
A civilização contemporânea, por sua vez, criou uma nova forma de acumular e difundir o saber que prescinde dessa tradição: o espaço cibernético e as redes dos computadores, não precisam de endereço ou representação física. A própria vida cotidiana está rapidamente se desplugando do mundo físico: quase tudo pode ser construído, transmitido e experimentado virtualmente. Cada vez mais, comércio e serviços são atendidos pela internet, desobrigando o cidadão de ir ao centro. À cidade do futuro caberá o papel de território sem memória, de simulacro, de cenário permanentemente refeito e atualizado como páginas da internet, ao sabor das tendências do mercado.
A cidade histórica, então, está morrendo? Infelizmente a resposta será sim, se aceitarmos pacificamente a forma como o capitalismo hegemônico vem sendo aplicado por aqui. O capital, que já não tinha pátria, agora só precisa estar plugado em redes de transportes e de comunicações de altas velocidades. Ele prescinde da cidade, que, se seguirem na inércia de sua própria sorte, confiando no poder auto-regulatório do mercado, estarão inexoravelmente abdicando de seu passado e de seu futuro. A alternativa possível é apostar na idéia da cidade permanente, como o fazem principalmente os europeus, que tratam suas cidades como bastiões da cultura em todas as suas dimensões, achando lugar, inclusive, para encaixar o mundo cibernético entre as pedras de sua história.
Não é a primeira vez que a continuidade histórica da cidade é ameaçada, a diferença é que agora está em jogo sua própria sorte. A Revolução Industrial, que tinha deixado as grandes aglomerações européias inabitáveis já na metade do século XIX, fomentou o surgimento de diversas teorias e propostas em busca da cidade perfeita, racionalmente organizada. O maior exemplo prático veio do Barão Hausmann que empreendeu, em 1852, uma operação de higienização e reconstrução de grande parte de Paris. Essa e outras reorganizações e expansões, entretanto, preservaram os valores da cidade histórica tradicional: a rua continuava sendo o palco privilegiado da vida urbana. Mas, de qualquer forma abriram caminho às teorias mais radicais de superação da cidade tal qual havia existido até então.
Coube ao século XX, ansioso em superar a própria condição humana – produtora de guerras e desigualdades – propor a substituição pura e simples da cidade histórica. Le Corbusier, através dos Congressos de Arquitetura Moderna e depois da Carta de Atenas, escrita no CIAM IV em 1933, foi o grande personagem do novo urbanismo. A nova cidade, de inspiração fordista, seria tão disciplinada e ordeira que cada atividade do dia-a-dia teria o seu lugar predeterminado. A rua corredor, considerada a maior responsável pelas mazelas urbanas, pela sua inevitável promiscuidade funcional, seria sepultada sem pompas. O pressuposto subliminar dessas idéias era a necessidade de um governo centralizador e forte, com poder de planejar e determinar os mínimos detalhes da vida social e econômica dos cidadãos. Paradoxalmente, não foram os regimes autoritários, de esquerda ou direita, que adotaram as idéias dos CIAM. Stalin e Hitler, por exemplo, preferiram o simbolismo aristocrático do neoclássico.
A ditadura Vargas se constituiu em uma das poucas exceções. Às vésperas do Estado Novo, um concurso público de arquitetura foi desprezado para que Lucio Costa (1) fosse o contratado para projetar a nova sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Este gesto, independentemente da excelência do resultado do projeto no contexto do centro do Rio, teve grande significado para o urbanismo brasileiro e mundial, pois se abandonava ali, pela primeira vez, a lógica da tradicional rua corredor. Também se demonstrava a viabilidade da cidade moderna ser construída sobre a cidade existente, fazendo nascer a idéia da cidade substituível. Idéia de alto potencial demolidor que infelizmente ainda permeia a maior parte dos planos diretores das cidades brasileiras.
Se não foram os regimes autoritários, foram as democracias capitalistas que viram, com o fim da guerra, as possibilidades do novo urbanismo. A reconstrução das cidades e a necessidade de reorganizar a acumulação do capital das empresas civis encontrou nas propostas do CIAM - economia de custos e de escala, simplificação de métodos e velocidade de execução – um aliado poderoso. Entretanto, a ausência de um planejamento centralizado e forte resultou em soluções parciais e precárias, misturando até mesmo em um mesmo quarteirão duas concepções de cidade que, por princípio, são excludentes. O curioso, é que os próprios mestres do movimento moderno mostraram, em seus projetos de arquitetura, uma sensibilidade para a cidade real que não pactuava com a radicalidade de seus discursos sobre o urbanismo, inaugurando, sem perceber, uma dicotomia entre a nova arquitetura e o novo urbanismo.
Outra vez o Brasil, com a inusitada construção de sua capital cem por cento modernista, tornou-se uma referência, ainda que tardia, das possibilidades concretas de construção de um mundo novo e melhor. Exemplo radiante de uma linha de montagem organizada sobre um jardim público pontuado por edifícios convenientemente distanciados, Brasília implantou definitivamente nos espíritos dos brasileiros a idéia de que modernidade é progresso e de que o país do futuro poderia viver seu futuro desde que ressetasse sua história. Isso explica porque ainda hoje achamos tão natural reconstruir nossas cidades o tempo todo e porque muitos arquitetos projetam edifícios sobre pilotis não apenas por suas qualidades espaciais, mas para facilitar uma futura realização do grande jardim.
O resultado do esforço pós-guerra de reconstrução das cidades foi uma grande proliferação de conjuntos inóspitos e monótonos, que, pelo seu despojamento, repetição e segregação acabaram gerando inimigos entre psicólogos, sociólogos e assistentes sociais. Os problemas desses conjuntos - aqui chamados de BNH – chegaram a tal ponto que em 1972 o conjunto Pruitt-Igoe (2) de St. Louis nos Estados Unidos foi implodido, dando início a uma série de implosões e reformas radicais para resolver os conflitos sociais que sua arquitetura gerava. Charles Jenks utilizou essa primeira implosão para marcar o dia e hora em que o urbanismo moderno teria morrido.
Na verdade, desde os anos 50, o combate à idéia de substituição da cidade histórica vinha se tornando cada vez mais forte. Dentro do próprio CIAM, em 1953, apareceram grupos questionando a hegemonia do pensamento de Le Corbusier. Na Itália, Aldo Rossi escreveu a Arquitetura da Cidade, reinterpretando e valorizando a cidade histórica; nos Estados Unidos, Venturi escreveu Complexidade e contradição na arquitetura, dando um basta ao menos é mais de Mies van der Rohe (3). Os olhos voltaram-se para a proteção do patrimônio construído, dando início, nos anos 80, a uma série de operações de reciclagens de edifícios e bairros inteiros, valorização dos centros das cidades, dos calçadões, etc. Em Porto Alegre, por exemplo, foi abortado um projeto que substituiria o Mercado Livre, Estação Santo Idelfonso, Mercado Público, Chalé e Abrigo da Praça XV por uma torre de escritórios construída sobre uma grande plataforma de estacionamentos ligada diretamente a uma via expressa elevada sobre a Av. Mauá. Os dois primeiros edifícios, infelizmente, não foram salvos a tempo.
Em Porto Alegre, entretanto, apesar dos novos ventos, não se pode dizer que o novo urbanismo tenha morrido (4). Sabemos do seu nascimento: 4 de fevereiro de 1944, quando o então prefeito Brochado da Rocha assinou o decreto 313, estabelecendo novos alinhamentos para dezenas de ruas e avenidas tradicionais da capital. Como desgraça não anda sozinha, no mesmo período, foram cassadas as licenças de grande parte dos construtores que tinham feito, e bem, a Porto Alegre de até então. Caso mais notório foi o de Theo Wiederspahn, proscrito dos círculos de trabalho da capital depois de ter projetado o Majestic, Margs, Brahma e muitos outros edifícios símbolos da pujança da província gaúcha. A cidade pré 45 só não desapareceu completamente porque não houve capital e tempo suficientes.
Vivemos, desde então, numa grande confusão. À inércia de um idealismo modernista que trata a cidade como se fosse um ente em busca do progresso ou desenvolvimento, somam-se atitudes esporádicas de proteção ao patrimônio arquitetônico e ambiental, sustentadas por um discurso que ninguém ousa refutar. O mundo contemporâneo, por outro lado, acabou com a ilusão da finalidade da cidade: nem o progresso, nem o desenvolvimento, se é que esses conceitos ainda fazem algum sentido, passam por ela. Sua sobrevivência depende unicamente da capacidade dos cidadãos descobrirem algum valor que não seja o econômico para justificar a vida em aglomeração. Se descobrirem, poderão buscar maneiras de proceder e construir que permitam costurar, pedaço a pedaço, os inevitáveis fragmentos resultantes de tantos messianismos. É possível, e necessário, sonhar com essa possibilidade, ou, de outro modo, não encontraremos saída para o fim já anunciado das cidades.
[artigo publicado originalmente na Revista Summa+ nº 81, de Buenos Aires, este texto serviu de base para o ensaio Cidade prescindível, publicado em AXT, Gunter; SCHÜLER, Fernando (org). Brasil contemporâneo: crônicas de um país incógnito. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 2006.]
notas1
Lucio Costa chamou a consultoria de Le Corbusier, já consagrado internacionalmente, e, para dividir a responsabilidade do projeto, a Oscar Niemeyer e todos os outros arquitetos modernos que participaram do referido concurso, mas não o venceram.
2
Uma das mais ambiciosas realizações do federal public-housing program americano do pós-guerra, projetado pelo arquiteto Minoru Yamasaki, autor mais tarde do WorldTradeCenter de Nova York.
3
Mies van der Rohe, arquiteto alemão, fundador da Bauhaus que depois de emigrar para os Estados Unidos projetou os primeiros edifícios de aço e vidro que se estereotiparam mundo afora como Estilo Internacional.
4
Alguns estudantes de arquitetura tentaram colocar um ponto final nesse assunto quando acompanharam o féretro de Le Corbusier desde a Faculdade de Arquitetura da UFRGS até a sede do IAB em 1979.
sobre o autorFlávio Kiefer, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura Ritter dos Reis.