1º Ato
Em 1986, Lina Bo Bardi, convidada pelo então prefeito de Salvador, Mário Kertész, volta à Bahia para um novo período de realizações. Seria o segundo momento de Lina na Bahia. O primeiro foi entre 1958 e 1964, do qual se destacam as obras do Solar do Unhão, criado como Museu de Arte Popular, e o próprio Museu de Arte Moderna da Bahia.
Neste novo período, um grande desafio é colocado na pauta de trabalho: a recuperação do Centro Histórico, que estava fisicamente em ruínas, parecia um sitio bombardeado; “havia sofrido um terremoto voluntário”, dizia Lina. Mas era densamente habitado por uma gente que, à sua maneira e com os meios ao seu alcance, conservava ali a vida urbana.
Portanto, de cara, tínhamos que descartar o termo “revitalização”, uma vez que vida ali não faltava. E “com que força”, continuava Lina: “prostituição, bebida, drogas e crime, quer coisa mais viva?”
Piada à parte, um mundo “subáqueo” de numerosas famílias pobres, pequenos negócios e serviços, quebra-galhos e biscateiros, abandonados há muito pelo poder público e pelas classes mais abastadas, que se afastavam cada vez mais desse umbigo urbis pelas praias da orla, zelava e mantinha vivo aquele testemunho histórico urbano único e original. Sim, único em sua originalidade.
O lugar
O centro histórico de Salvador representa a cidade portuguesa no trópico, a “Nova Évora” à beira mar, e por isso foi classificado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. Não foi pelo valor individual desta ou daquela casa ou sobrado já tantas vezes reformados, mas pela força de seu conjunto. Seu traçado urbano é peculiar, pois resulta do modo livre e sábio com que o colonizador adaptou sua aldeia portuguesa à geografia da encosta sobre a Baia de Todos os Santos. A vegetação exuberante e indomável, a umidade implacável, a luz azul do sol, a beleza de doer da vista sobre o mar, o serpentear das cumeadas dos morros entremeados de grotas e pequenos vales, estes foram elementos determinantes no urbanismo da nova cidade portuguesa transplantada aos trópicos. Além da liberdade de fazer do brasileiro, ou “português à solta”, como bem definiu Agostinho da Silva.
O projeto
Mas, voltando ao nosso ponto de partida, de 1986 a 1990 experimentamos uma série de projetos-pilotos que deveriam direcionar uma recuperação rápida, econômica e de qualidade. Rápida pelo emprego da tecnologia do pré-fabricado de ponta, criado pelo arquiteto Lelé em sua “fábrica de cidades”; econômica pela fabricação seriada de uma dezena de peças a compor um vocabulário construtivo; e de qualidade pelo rigor projetual, de produção e execução das obras. Essas eram condições sine qua non para nosso plano, uma vez que o objetivo maior era manter aquela população que lá vivia – ou grande parte dela – em condições dignas de habitabilidade sem criar um êxodo natural, com o aumento do valor imobiliário, e nem forçado, como saneamento social deliberado. Nosso projeto, baseado em um levantamento sócio-econômico de todas as famílias, previa uma logística de efeito dominó. Ou seja, recuperávamos uma ruína abandonada transformando-a em moradia plurifamiliar – alguns apartamentos em cada casarão antigo recuperado –, transferindo para ali os moradores vizinhos das casas degradadas.
Em seguida partíamos para a recuperação dessas casas degradadas já desocupadas, para trazer outras famílias, e assim por adiante. Em todos os casos, o térreo dessas casas deveria conter um pequeno comércio ou serviço, a ser tocado pelos próprios moradores. Chegou-se ali a levantar, através de pesquisas, demandas de usos e capacidade de instalação de equipamentos comerciais e públicos para atender a estes usos. O cadastro de cada imóvel ou ruína era primoroso e, junto ao programa pré-estabelecido do futuro uso e definição das famílias que iriam ocupar cada imóvel, é que partíamos para o projeto arquitetônico.
Realizamos o primeiro piloto na Ladeira da Misericórdia, que estava totalmente abandonada. Era um ponto simbólico na encosta, para quem vê do mar ou da cidade baixa. Foi uma boa escolha, porque ali havia um mix de situações e problemas: ruínas dos séculos XVIII, XIX e XX, terrenos baldios, muralhas de contenção da encosta e vegetação exuberante.
Adotamos um programa variado: um restaurante, um bar, três casarões transformados em 8 ou 9 apartamentos com 3 pontos comerciais em seus térreos. Chegamos a desenhar todo o mobiliário e executar grande parte dele. A idéia dos contrafortes de concreto era a solução adotada como elemento de estabilização das ruínas e linguagem contemporânea para as novas construções.
Ao final da realização, tudo deveria aparecer como numa radiografia daquele momento, final dos anos 1980. Seria como dizer com a arquitetura: “aqui, o que sobrou de uma ruína do século XVIII, em alvenaria mista; aqui, um pedaço de casa do século dezenove; aqui, uma construção contemporânea, do século XX; todos em harmonia e prontos para uma vida nova”.
Adotando o princípio da honestidade de propósitos recomendado pela “Carta de Veneza”, com nossa intervenção estávamos advertindo: “este é o estado a que chegou a destruição e o abandono; e esta é também uma forma de recuperação que respeita e expõe o passado com dignidade de condições de uso na atualidade”.
Mas, como regra nesse país, com as mudanças na política e na administração publica, o abandono foi inevitável. “Aqui tudo parece que é ainda construção, mas já é ruína”, bem disse Caetano Veloso.
Tudo foi esquecido, parece que nem existiu.
2º Ato
No início dos anos 1990, o Governo do Estado da Bahia resolve encarar o problema de degradação do centro histórico e lança um amplo e ambicioso plano de recuperação. Fazendo justiça, um grande mérito deve ser reconhecido: foi interrompido o processo de ruína física do conjunto urbano. Mas, ao aproximarmos o olhar do resultado dessa intervenção, identificaremos uma série de erros e equívocos de toda ordem, em muitas áreas. Hoje, com a poeira assentada, uma revisão crítica faz-se necessária.
Miolos de Quadra
Em nosso projeto com Lina Bardi propusemos a utilização dos fundos de quadra – os maravilhosos quintais verdes das casas – como quintais coletivos, uma vez que cada casa passaria a ser de três ou quatro famílias. Seria como que reforçar a idéia de “oásis”, a descoberta de zonas verdes exuberantes no “seco casba baiano” da cidade de pedra e cal, ao penetrar e cruzar um casarão, ou uma arcada de portais. Um exemplar foi executado e com grande sucesso: a Casa e Restaurante do Benin. Do Largo do Pelourinho, de urbanismo “seco”, ninguém poderia imaginar que, cruzando poucos metros, atravessando uma portada, poderia encontrar coqueiros altos, trepadeiras e até uma cascata de água. E assim deveriam ser todos os miolos de quadra, de jardins “secretos”.
Pois, essa idéia que respeita e só reforça o traçado urbano de ruas – labirintos com surpresas de visadas e descobertas – foi banalizada com a implantação de certas praças mais moldadas a shopping centers do que a uma cidade antiga com forte personalidade. E, o que é pior, onde havia o vazio de uma casa já ruída – ou uma “banguela” – deixada por um ex-casarão, foi feita uma nova entrada, uma nova via de acesso a esse fundo de quadra. Assim foi criada uma verdadeira confusão, desvirtuando-se aquilo que é justamente a riqueza, a preciosidade do traçado urbano, motivo de seu tombamento.
O cidadão ou turista desavisado que circula pelas estreitas ruas, ao adentrar uma dessas praças por um desses acessos, não tem mais a noção do que é original do urbanismo medieval português no trópico, e do é que novo, isto é, um ‘falso antigo’.
Para reforçar a confusão, as fachadas frontais, que dão para as ruas, foram (mal) reproduzidas nas fachadas de fundo do casario. Assim, o visitante é induzido a pensar que aquela fachada de fundo pode ser a frente de uma casa, que se abre para uma praça... Enfim, onde está o rigor histórico e o respeito ao patrimônio?
Mas isso não é tudo.
O colorido
Uma paleta de cores pastéis variadas foi aplicada às casas, algo que nunca existiu ali, substituindo o branco ou ocre pardacentos da cidade antiga. Pintura à base de tinta acrílica ou látex e não a tradicional caiação, também conhecida como “leite de cal”. Nítida e deliberada intervenção cenográfica de aspecto limpo, infelizmente com poder contagiante. Com a publicidade e o sucesso de marketing da recuperação, o “efeito Pelourinho” se alastrou pelo país, por cidades históricas ou não, que começaram a pintar suas casas a la “sorveteria” multi-sabores.
Foram utilizados técnica e materiais tradicionais caros que elevaram o valor dos imóveis, tornando assim mais remota a possibilidade de retorno dos ex-moradores – cidadãos de baixa renda que, desde o início do processo, foram expulsos da região.
O uso
Uma expulsão em massa precedeu os trabalhos de intervenção. Os habitantes foram “convidados” a deixar suas moradias e ir morar nas franjas periféricas da metrópole, para que os imóveis fossem restaurados. Inúmeras casas foram recuperadas sem um programa de uso definido. Ou seja, uma antiga habitação teve como destino uma escola, sem os equipamentos de escola, e assim por diante. Faz-se uma espécie de manejo social ou saneamento social, “limpeza” para o turista. Este esvaziamento do centro histórico de seus autênticos protagonistas foi como um tiro na alma do Pelourinho, um abre-caminho para a entrada do folclore através de um turismo desqualificado. Em vez de habitação e atividades verdadeiramente necessárias à população de Salvador e, mais especificamente, do centro histórico, brotaram ali bares, restaurantes e lojinhas de artesanatos semelhantes às de rodoviárias de qualquer parte do país. Ou seja, uma realidade rica, com muitos problemas, é claro, mas frágil, que merecia toda atenção e delicadeza no trato sociológico/urbanístico da intervenção, recebeu o “trator” do turismo global e da limpeza social. Uma cidade-cenário se instalou sobre 400 anos de intensa vida urbana. Só se pensou no turismo. Mas se esqueceu de pensar que o turista, cada vez mais, quer conhecer a realidade de cada lugar. Quer uma experiência arquitetônico/antropológica diferenciada. Quer saber como vive, como se diverte e o que come a gente do lugar? Em Salvador, o desafio é manter a riqueza da vida contemporânea dentro de um casco urbano histórico, cheio de significados e memória, porém vivo, hoje. E o fracasso esta aí, uma espécie de falência diante da qual todos tentam correr atrás do prejuízo. Esqueceram o principal: entender que o Pelourinho só será bom para o turista se for, em primeiro lugar, bom, muito bom para a comunidade que nele habita. E não é criando “Disneylândias” do passado colonial que sairemos do estágio primário em que nos encontramos quando se trata de conservação de nossas cidades. Ou encaramos o desafio de encontrar soluções originais para nosso original patrimônio ou continuaremos criando simulacros.
O consolo é que, aos poucos, o povo volta e retoma espontaneamente o que dele foi tirado, e insere de novo sua marca, humanizando toda inumana intervenção. E, em se tratando de cidade, como organismo vivo que é, na Bahia já se sente este movimento... Salvador?
sobre o autor
Marcelo Ferraz é arquiteto formado pela FAU-USP em 1978, é sócio do escritório Brasil Arquitetura, onde tem realizado vários projetos com premiações no Brasil e exterior. É também sócio fundador da Marcenaria Baraúna, onde desenvolve projetos de mobiliário, desde 1986