Ao elaborar o plano piloto para Brasília, Lúcio Costa, inovou ao traçar vias, avenidas e eixos sem cruzamentos. Por isso, nos primórdios e até inicio de 1970, não havia semáforos. Um dos primeiros foi no contorno ao norte da rodoviária urbana, para conter o tráfego proveniente da rodoferroviária até a Esplanada dos Ministérios. Em fins de 1960, o trânsito era tranqüilo, havia poucos automóveis e muitos funcionários públicos faziam o trajeto casa-trabalho e vice-versa em ônibus fretados. Estacionar em ministérios, no Congresso e no Palácio do Planalto era acessível. O tráfego do Eixo Monumental e do Eixo Rodoviário assemelhava-se ao de cidade do interior. Ir ao recém inaugurado Conjunto Nacional e ao Setor Comercial Sul não preocupava porque havia vagas suficientes nos estacionamentos. Outra época, por certo sem retorno.
A urbanização, o incremento populacional e a falta de planejamento urbano acabaram com a regularidade do fluxo, a fluidez e a paz no trânsito. O passar dos anos, a entrada de novos automóveis, a falta de frotas de ônibus e a diminuição das linhas e equipamento da TCB (Transporte Coletivo de Brasília) agravaram o ir e vir. As avenidas W-3, Norte e Sul ganharam sinais de trânsito; as vias receberam placas indicativas de limite de velocidade. A frota de veículos, o aumento do número de motoristas (alguns pouco preparados para dirigir) e a falta de respeito às leis de trânsito, começaram a deixar vítimas fatais nas pistas: acidentes aumentam exponencialmente. Contam-se centenas de mortos no trânsito, anualmente; os feridos lotam hospitais, as clínicas ortopédicas prosperaram, assim como as clinicas de Raios-X. Proliferam as agências funerárias e comércio paralelo, por vezes provocando escândalos como o da administração de cemitérios, ora sob CPI na Câmara Legislativa. Aumenta a dor dos que perdem familiares em atropelamentos e acidentes com carros, motocicletas e ônibus. A Justiça Itinerante, bem como a Polícia Militar e bombeiros são chamados para atender acidentes ou mesmo para indiciar responsáveis por atropelamentos, mortes e danos materiais. O caos e a violência no trânsito elevam o temor de sair à rua ou de atravessar na “faixa de pedestre”, antes muito respeitada por todos, verdadeiro símbolo da educação e cidadania no trânsito de Brasília. Advogados especializam-se em assuntos jurídicos de trânsito e aumenta o numero dos que defendem e tornam impunes os causadores de acidentes com vítimas. Consolida-se a prática de pagar fiança e ganhar as ruas novamente, mesmo quanto os atropelamentos causam mortes.
O Detran parece surgir como um vigilante do asfalto. Mas, suas primeiras medidas se ligam ao rendoso trabalho de multar. Tem instalado centenas de radares (pardais) em todas as vias do DF. Estabelece um confuso elenco de velocidades conforme as vias: no Eixo Monumental com várias pistas em cada sentido, a velocidade máxima é de 60 km/h. No Eixo Rodoviário (verdadeira auto-estrada), o limite é de 80 km/h. Nas L-2 Norte e Sul, 60 km/h. No setor de embaixadas e em outros pontos, 70 km/h; as vias paralelas do Setor de Embaixadas demarcam 80 km/h; 50 km/h é a velocidade máxima de vias W-4, Sul e Norte (1). Nessas, repletas de pardais, a velocidade é de 50 km/h. As vias que possuem barreiras eletrônicas têm velocidade máxima de 50 km/h, mas alteram a velocidade de 60 km da mesma via. Como os motoristas não se dão conta desse cipoal nem se preocupam em observar as placas de advertência, o volume de multas é enorme. Sabe-se, vagamente, que esses recursos destinam-se à “melhoria das condições de tráfego”, entre elas a “educação para o trânsito seguro”. Mas, ainda é nebulosa a destinação do que se arrecada em multas. Quando são realizadas campanhas de educação nas escolas o investimento é bem aceito, mas seus efeitos somente surgirão em 10 ou 15 anos...
Por isso, a agenda do trânsito para o futuro próximo envolve:
1. A presença educativa e constante de agentes de trânsito nas ruas;
2. Aumentar o valor das multas para os que dirigem embriagados;
3. Substituir, paulatinamente, o asfalto por pistas cimentadas, menos vulneráveis à erosão no período das chuvas. Com a mudança, as pistas apresentarão menos buracos, queda no número de acidentes e de danos nos veículos;
4. Construir ciclovias em todos os núcleos urbanos do DF em que a topografia favoreça os que circulam em duas rodas;
5. Instalar a “onda verde”, a partir de semáforos sincronizados eletronicamente. Com essa medida, o percurso de diversas avenidas se fará sem interrupção, mantida a velocidade sinalizada. Nesse caso, por exemplo, se poderá percorrer as avenidas W-3 Sul e Norte sem interrupções, a 60 km/h. No esquema atual, passa-se um semáforo aberto, encontrando-se o sinal seguinte fechado, rodando à velocidade estabelecida. Eleva-se o tempo perdido e, sobretudo, aumenta-se o gasto com combustíveis, tornando o deslocamento lento e enervante. Além disso, acontecem congestionamentos em qualquer das vias e a qualquer hora do dia, por não ter sido instalada a onda verde. No período chuvoso é comum a ocorrência de engarrafamentos em diversos pontos da cidade por motivo de alagamentos das pistas. Os alagamentos se devem ao fato de que a rede de captação das águas da chuva ter sido implantada nos primórdios da capital, estando, portanto, ultrapassada.
Para evitar mortes nas pistas, são corretas as medidas para reparar os estragos causados pelo período das chuvas. Essas ocasionam danos na capa asfáltica, sobretudo naquelas vias em que a camada é fina, sendo destruída pelas primeiras enxurradas. Em muitos casos, melhor seria substituir o asfalto por vias cimentadas, como em muitos países europeus e americanos. Vias cimentadas possuem maior durabilidade e evitam que o asfalto seja danificado ou destruído facilmente. O asfalto tem exigido remendos constantes e uma vez reposto o asfalto rugoso torna a rolagem desconfortável, quando não provoca danos na suspensão dos veículos pelos desníveis que apresenta.
Pode-se perguntar: o que é desejável em vista dessas constatações? A população possui diversas metas para o trânsito, entre elas o aumento do número de empresas de ônibus e respectivas linhas, a melhora das pistas, a vigilância constante dos agentes nas ruas, a educação para um trânsito seguro que se estenda para todo o DF e não apenas para o centro da cidade, o Plano Piloto de Brasília. Todavia, a medida mais urgente é a licitação de para as novas empresas, pois, a atual cobertura não atende muitos itinerários, sendo lacunoso o transporte em certas horas do dia e da noite. As novas empresas farão desejável concorrência umas às outras, desbaratando o cartel existente. A competição dessas empresas trará a redução das tarifas, hoje as mais elevadas do país.
As mudanças e ajustamentos beneficiarão os mais pobres, que se deslocam de grandes distâncias. Constata-se que são os empobrecidos que arcam com os maiores custos para ir e vir ao trabalho, ao médico, à escola, às compras. Portanto, facilitar o deslocamento dos habitantes das cidades-satélites é dar-lhes condições de cidadania, pela democratização dos meios de transporte. Aumento da frota de ônibus e maior eficiência do trem suburbano (metrô) retirariam milhares de automóveis e motos das ruas. As ações preconizadas levam à melhora na fluidez do tráfego, reduzirão o número de pontos de estrangulamento e de engarrafamentos e consumo de combustível. Ainda faltaria ampliar as vagas nos estacionamentos, verdadeiro gargalo no centro da capital. Outra questão que é pouco observada é a das condições de trabalho dos operadores de ônibus. Geralmente o motorista enfrenta o calor e o ruído do motor instalado da frente do veículo. Há greve em andamento para que as empresas adquiram ônibus com motor na parte de trás e direção hidráulica. Além disso, a questão salarial pesa no humor dos operadores, nem sempre preparados de forma conveniente no trato dos passageiros, sobretudo dos idosos e deficientes, que demandam tempo para o embarque e desembarque. A agenda das empresas deverá ser modificada nesse item, pois a população de Brasília dá sinais de envelhecimento e necessita de transportes públicos adequados à idade e às necessidades de cadeirantes e deficientes físicos. Por fim, ênfase também deve ser dada ao combate da violência no interior dos ônibus: assaltos ao cobrador e passageiros exigem segurança e policiamento para evitar atos delituosos com mortos e feridos.
Em resumo, a aspiração de todos é evitar o caos no trânsito do DF e desmistificar a idéia apregoada de que o brasiliense é um ser possuidor de “cabeça, tronco e rodas”. Por certo, algo que pertencerá ao folclore dos primeiros tempos de Brasília.
notas
1
Em Brasília, praticamente não há logradouros públicos com nome de pessoas. Assim, L-2 significa a 2ª via ao leste do Eixo Rodoviário; a avenida W-3 é a 3ª ao oeste do referido Eixo.
[versão ampliada do artigo “Trânsito urbano no DF”, publicado no Caderno Opinião do Correio Braziliense, 26 maio 2008]
sobre o autor
Aldo Paviani, geógrafo, professor emérito e pesquisador associado da UnB
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