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my city ISSN 1982-9922

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VALENTE, Osvaldo Ferreira. Reflexões hidrológicas sobre inundações e alagamentos urbanos. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 109.01, Vitruvius, ago. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.109/1839>.


Perfis típicos de regiões montanhosas (em cima) e de regiões mais planas (embaixo)
Desenho elaborado pelo autor


Já se tornaram rotinas, nos períodos chuvosos, as notícias sobre inundações de núcleos urbanos. As enchentes, que são fenômenos naturais, estão sendo potencializadas pela pressão que o crescimento populacional exerce sobre áreas de riscos.

Em primeiro lugar, vale a pena um esclarecimento sobre o significado hidrológico de cheias, enchentes, inundações e alagamentos. Há uma grande confusão no uso dos referidos termos pelos diversos veículos de comunicação. Mesmo nos meios científicos e técnicos ainda não há um consenso, permanecendo algumas divergências de interpretação. Não passa pela nossa cabeça nenhuma presunção, neste artigo, de definir conceitos, mas acreditamos que fenômenos hidrológicos podem ser descritos com palavras simples e é isso que vamos tentar fazer.

A Figura mostra um perfil típico de regiões montanhosas e outro de regiões mais planas. Nas regiões montanhosas, temos a calha (canal) do curso d’água, por onde circula a água na maior parte do tempo, e uma área adjacente, o leito maior, que é bem delimitado e usado para expansão em épocas de chuvas intensas. Nas regiões planas, o leito maior é menos definido, predominando as várzeas, que também são áreas naturais de expansão e que, no Brasil, são muito usadas para cultivo do arroz. Quando os aumentos de vazões ficam restritos à calha, temos as cheias. Quando extravasam a calha, ocupando, em parte ou no todo, o leito maior ou a várzea, temos as enchentes. Até aí estamos diante de fenômenos completamente naturais. Mas o que faz o homem? Ocupa os leitos maiores e as várzeas com construções e plantações. As enchentes vêm e cobrem tudo com água, são as inundações. Quantas ruas, pontes, casas etc. não estão locadas dentro de leitos maiores ou de várzeas? Aí vem uma enchente, fenômeno natural, e provoca uma inundação desastrosa. Se o curso d’água pudesse falar, ele certamente faria um protesto veemente contra a ocupação de um espaço que ele levou milhares de anos para preparar e reservar para os seus apertos momentâneos.

Pelo dito até aqui, cheias, enchentes e inundações são resultados de comportamentos de cursos d’água (córregos, ribeirões e rios). Já em relação aos alagamentos, preferimos defini-los como acúmulos de água formados pelas enxurradas, que são escoamentos superficiais provocados por chuvas intensas e em áreas total ou parcialmente impermeabilizadas. Por exemplo, em uma rua com forte declive e que intercepta outra, na parte baixa, e consequentemente plana, os moradores ficam doidos para se livrarem rapidamente das águas de chuvas que caem em seus domínios. Além das casas, cimentam o restante dos lotes. As enxurradas são formadas, lançadas na rua, a rede de drenagem não suporta (também obstruída, muitas vezes, por desleixo dos moradores), os volumes se agigantam e desembocam na rua de baixo, promovendo o seu alagamento. Não houve, para tal, participação de nenhum curso d’água. Ele só irá receber, depois, os volumes escoados dos alagamentos.

As enchentes, nas cidades, podem ser classificadas, quanto às suas origens, em: 1) Provenientes das enxurradas formadas na própria área urbana; 2) Provenientes de enxurradas ocorridas nas áreas rurais a montante; e 3) Provenientes da junção das duas anteriores. No primeiro caso, os volumes das enxurradas vão se acumulando ao longo da calhas, dos leitos maiores e mesmo das várzeas ocupadas nos territórios urbanos, acabando por inundarem ruas e casas que estiverem instaladas em tais domínios hidrológicos de córregos, ribeirões e rios. No segundo caso, as enxurradas são formadas no meio rural, ou melhor, na bacia hidrográfica a montante, e cursos d’água já chegam às áreas urbanizadas com volumes suficientes para provocarem inundações. Principalmente quando as ocupações ribeirinhas estiverem colaborando para estrangulamento das áreas de escape (leitos maiores e várzeas). Temos, neste caso, alguns eventos curiosos, como a ocorrência de inundações mesmo não tendo chovido no território urbano. Governador Valadares, na bacia do Rio Doce, e algumas cidades fluminenses, próximas à divisa com Minas Gerais, para citar exemplos, já sofreram com eventos desse tipo. O terceiro caso é bem comum, e podendo ser grave, já que os volumes provenientes do meio rural podem encontrar os cursos d’água ainda drenando o meio urbano. Principalmente se as chuvas forem intensas e de duração maior do que o tempo necessário para que as águas caídas no meio rural possam chegar ao meio urbano. Aí o extravasamento é forte, causado inundações muitas vezes devastadoras.

Mas o que fazer para evitar ou minimizar os problemas causados pelas enchentes e pelos alagamentos? Quanto às enchentes, o perigo sempre existirá para quem ocupa as áreas de expansão da calha. Algumas tecnologias que ainda discutiremos poderão ajudar na diminuição dos danos. Se não houver condições econômicas e sociais para a retirada das ocupações existentes em tais áreas, pelo menos os Planos Diretores deverão prever que novos empreendimentos sejam proibidos de ocupá-las. As prefeituras precisam exercer suas funções de polícias administrativas e impedirem quaisquer invasões que possam causar desastres posteriores, pois as pessoas, premidas pelos apertos diários, acabam acreditando apenas em proteções divinas e aceitando os riscos como se fossem fatalidades. Leitos maiores e várzeas estarão sempre sujeitos às enchentes e isso não poderá ser esquecido. E não adianta canalizar os córregos, pois dificilmente, por razões até econômicas, tais canalizações terão dimensões suficientes para comportarem os volumes das cheias. E, o que é pior, a confiança que elas acabam promovendo é responsável pelo relaxamento das populações do entorno, predispondo-as, mais ainda, aos desastres que podem tardar, mas que um dia acontecerão.

Se as enchentes são praticamente inevitáveis, como fenômenos naturais, algumas tecnologias poderão ser adotadas para diminuir os escoamentos superficiais, evitando a chegada de grandes volumes aos cursos d’água, em curtos espaços de tempo. Reter volumes precipitados é o caminho básico, tanto no meio rural como no urbano. Para o meio rural já existem tecnologias disponíveis para melhorarem a permeabilidade dos solos, facilitando a infiltração e o armazenamento nos reservatórios subterrâneos, os aquíferos. Isso é importante, pois ao mesmo tempo em que diminuem as vazões em períodos chuvosos, garantem bons volumes nas estiagens, assegurando o abastecimento de água. Os Comitês de Bacias precisam, para isso, do apoio dos produtores rurais, o que poderá ser conseguido com programas de qualificação e de ajuda financeira. Não há outra solução a não ser por meio de alguma forma de pagamento pelos trabalhos ambientais realizados. Devemos sempre lembrar que a Constituição diz que o meio ambiente é responsabilidade de toda a sociedade.

No meio urbano, a retenção de volumes precipitados é também viável. Em primeiro lugar é preciso que todos os moradores sejam convencidos, por meio até de compensações em impostos ou tarifas de água, por exemplo, que as medidas adotadas para se livrarem rapidamente dos volumes de água precipitados em seus domínios é que acabam gerando alagamentos e colaborando para o agravamento das enchentes, podendo transformá-las em perigosas inundações. Terreiros gramados ajudam; coleta e armazenamento de água de telhados para posteriores usos em limpezas, também. Mas estudos geológicos poderão embasar a construção de valas, dentro dos lotes, cheias de pedras ou outros materiais porosos, que serão abastecidas com as águas de chuvas coletadas, conduzido-as para os reservatórios subterrâneos. A preocupação com o embasamento geológico é pelo risco de que, em algumas situações, tais operações poderão provocar deslizamentos ou afundamentos de solo, perigosos em áreas urbanas. Outras alternativas existem, como a substituição das atuais valetas de drenagem, em ruas mais planas, por canais cheios de pedra britada, possibilitando a infiltração; a construção de muros de contenção, que poderão ser os gabiões, estruturas constituídas de módulos de tela em forma de paralelepípedos, por exemplo, e cheios de pedra, que retardam o escoamento das águas e favorecem a infiltração; o uso de calçamentos permeáveis em grande parte das ruas, deixando o asfalto apenas para os eixos viários Tais tecnologias, e muitas outras não citadas aqui, poderiam substituir os piscinões, pois seriam mais baratas e envolveriam a participação de toda a comunidade.

O que precisamos, portanto, é considerar o fenômeno das enchentes como passível de ser sanado ou minimizado com tecnologias apropriadas às especificidades urbanas. Planejar e executar sistemas de manejo de águas de chuvas nos meios urbanos são os únicos caminhos. São tarefas de arquitetos e engenheiros civis, principalmente, mas ancoradas em estudos e indicações de especialistas em hidrologia e geologia aplicadas. As legislações urbanas, pertinentes ao assunto, precisam refletir os fundamentos tecnológicos e não meros entusiasmos e/ou manias de proibição. A educação ambiental é importante para mostrar, por exemplo, que um pouco de vibração dos carros nas ruas, com calçamentos permeáveis, é melhor do que vê-los cobertos de água em alagamentos e/ou inundações. Mas é importantíssimo que a educação ambiental seja acompanha da indicação das soluções e da viabilidade socioeconômica de suas aplicações. Sem isso, estaremos, de quando em vez, lamentando os desastres provocados pelas chuvas. E ninguém deve esquecer-se que as chuvas que inundam ou alagam são as mesmas que abastecem os sistemas de tratamento e distribuição de água para usos domésticos, comerciais e industriais.

sobre o autor

Osvaldo Ferreira Valente é professor titular aposentado da Universidade Federal de Viçosa e especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas

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