Já existe entre ambientalistas, urbanistas, geólogos, engenheiros geotécnicos, juristas e toda a gama de profissionais que lidam com a questão urbana um pleno consenso acerca da impropriedade da atual legislação ambiental reguladora das APPs – Áreas de Preservação Permanente, no que se refere à sua aplicação ao espaço urbano. A Resolução CONAMA 303, de 20 de março de 2002, que estabelece os parâmetros, definições e limites referentes às APPs em todo o território nacional, tanto para o domínio rural como para o urbano – e que nada mais é que um termo mais específico de aplicação das determinações do Código Florestal de 1965 – constitui o principal aparato legal vigente sobre o tema.
A questão central é que a atual legislação não foi inspirada pela realidade urbana, sendo, por decorrência, equivocada conceitual e estruturalmente para a gestão ambiental do tão singular espaço urbano. Este fato tem provocado um enorme número de pendências legais conflituosas entre órgãos ambientais e empreendedores urbanos públicos e privados, inviabilizando a implantação de projetos urbanísticos planejados e dotados de adequados controles ambientais, como também tem induzido, especialmente em grandes conglomerados urbanos, a ocupações irregulares, do que resulta um maior comprometimento dos já escassos recursos naturais e da qualidade ambiental dessas áreas. É por todos sabido que porções significativas das metrópoles e grandes cidades brasileiras encontram-se em situação irregular promovida em muito por leis inadequadas, que não refletem a real dinâmica urbana.
Legislações municipais e estaduais complementares e aquelas de âmbito federal, como a Resolução CONAMA 369, a Lei 10.257/01, ou o Estatuto da Cidade e a recente Lei 11.977/09, conhecida como “Minha Casa, Minha Vida”, que procuraram abrigar algumas possibilidades de consolidação e regularização das APPs estabelecidas na Resolução CONAMA 303, ao contrário de seus bons objetivos têm contribuído para mais confundir e conflitar legisladores, órgãos de fiscalização ambiental e empreendedores urbanos.
O fato é que a incompatibilidade da atual legislação com as características próprias do espaço urbano é tão radical que desaconselha tentativas de melhor adequá-la através de emendas ao atual texto ou leis complementares. A produção de uma nova legislação exclusivamente voltada à regulação das APPs no espaço urbano impõe-se como a alternativa mais apropriada e inteligente.
Dentro desse objetivo é essencial, antes de tudo, atender a seguinte questão conceitual: do ponto de vista ambiental o que é importante preservar, criar ou manter de áreas verdes no espaço urbano? Recomendável ainda especificar-se um pouco mais, ou seja, de áreas verdes florestadas. A resposta é simples e cristalina: quanto mais áreas verdes florestadas, melhor serão cumpridas as atribuições ambientais de regulação climática; redução da poluição atmosférica; retenção das águas de chuva; recarga de aqüíferos; proteção de encostas contra a erosão e escorregamentos; proteção de margens e nascentes; abrigo e alimentação da fauna urbana; lazer; embelezamento da paisagem urbana e aproximação física e espiritual dos cidadãos com a Natureza.
Desse ponto de vista, pode-se falar em uma manutenção mínima de áreas florestadas no espaço urbano, não havendo limite máximo para atributo tão benéfico. Tomando a sub-bacia hidrográfica como território de gestão ambiental no espaço urbano, pode-se, por exemplo, pensar na obrigatoriedade legal de uma cobertura florestal com extensão mínima de 15% da área total da sub-bacia.
Na intenção de colaborar para uma nova legislação ambiental especificamente voltada ao espaço urbano, são registradas a seguir, sob a égide de alguns pressupostos conceituais, proposições de tratamento legal diferenciado para as APPs de topo de morro e para as APPs de faixas marginais de cursos d’água e nascentes:
- Não faz sentido no ambiente urbano cogitar-se de feições ambientais rurais clássicas como os corredores ecológicos strictu sensu. O ambiente urbano constitui um espaço singularmente antrópico, onde as mais diferenciadas necessidades humanas de viver, conviver, habitar, produzir, consumir, ir e vir, etc, impõem-se como fatores fundamentais na ocupação do território;
- As áreas florestadas no espaço urbano podem ser criadas deliberadamente e em qualquer tipo de terreno ou situação geográfica pela administração pública e pelos agentes privados de um município, ou seja, não necessariamente teriam que ser resultado da manutenção de corpos florestais naturais originais;
- Do ponto de vista geológico e geotécnico, fator especialmente importante no que diz respeito aos graves problemas urbanos de risco causados pela erosão e pelos deslizamentos, a área de topo das elevações topográficas são extremamente mais favoráveis do que as áreas de encostas para uma segura ocupação urbana. Essa qualidade geotécnica das áreas de topo de morro deve-se à formação de solos mais espessos e evoluídos, portanto, mais resistentes à erosão e à quase inexistência de esforços tangenciais decorrentes da ação da força de gravidade. Situação inversa ocorre com as encostas de alta declividade, instáveis por natureza e palco comum das recorrentes tragédias geotécnicas que têm vitimado milhares de brasileiros.
Esse aspecto geológico e geotécnico sugere que, dentro de um regramento ambiental da expansão urbana, possa-se evoluir na concordância em se liberar, sob condições, a ocupação dos topos de morro, aumentando-se as restrições para a ocupação das encostas, mediante os seguintes aspectos:
- Dispositivos urbanísticos e de engenharia adequados, como pisos drenantes, reservatórios, poços e trincheiras de infiltração e acumulação de águas de chuva, sistemas de drenagem e de dissipação de energia hidráulica, etc., podem propiciar que uma área de topo de morro urbanizada cumpra, e até supere, as propriedades de uma área de topo de morro florestada no que diz respeito à redução do volume e da energia das águas de chuva que demandam as encostas e à alimentação do lençol freático. É perfeitamente possível tecnicamente, portanto, estabelecer-se como condição elementar da liberação de uma área de topo de morro para ocupação urbana o compromisso pelo qual a ocupação pretendida deverá conservar ou ampliar, através de expedientes urbanísticos e de engenharia, tanto a capacidade de infiltração das águas pluviais próprias da área original florestada, como sua capacidade de reduzir o volume e a energia hidráulica das águas que se derramam sobre as encostas;
- O Código Florestal (Artigo 2º, item e) e a Resolução Conama 303 (Artigo 3º, item VII) definem como APP as encostas com declividade superior a 45º (100%). Os conhecimentos geológicos e geotécnicos mais recentes e abalizados indicam que, especialmente em regiões tropicais úmidas de relevo mais acidentado, há ocorrência natural de deslizamentos de terra já a uma declividade de 30º (~57,5%), o que revela a enorme suscetibilidade dessas encostas a movimentos de terra e rocha. Por seu lado, a Lei Nº 6.766, de dezembro de 1979, conhecida como Lei Lehmann, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no território nacional, em seu Artigo 3º, item III, proíbe a ocupação urbana de encostas com declividade igual ou superior a 30% (~16,5º), abrindo exceção para situações onde são atendidas exigências específicas das autoridades competentes;
- A leitura geológica e geotécnica dessa questão indica como pertinente o aumento de restrições na ocupação das encostas urbanas. Essa medida teria forte correspondência com a necessidade ambiental de aumentarem-se as áreas verdes florestadas no contexto do espaço urbano, conjunção oportuna que poderia ser promovida pela decisão de reduzir de 45º (100%) para 22º (~40,5%) o limite mínimo de declividade a partir do qual as áreas de encosta deveriam ser consideradas Áreas de Preservação Permanente, e
- A ocupação de encostas até os limites legais estabelecidos seria condicionada à adoção de partidos urbanísticos, bem como à utilização de tipologias habitacionais nas quais deveriam ser evitados, por exemplo, os cortes e aterros nos terrenos e a instalação de dispositivos de infiltração de efluentes ou de águas pluviais, ou seja, deveriam ser adotadas concepções de projeto e expedientes de engenharia que não concorram para a desestabilização geotécnica das encostas;
Quanto às APPs de faixas de proteção ao longo dos cursos d’água e no entorno de nascentes, sua definição ou regulamentação deve estar lastreada na análise das feições geográficas encontradas e de sua relação com as formas de apropriação do espaço urbano. Além dos benefícios ambientais associados às áreas verdes florestadas no espaço urbano, a cobertura vegetal das margens de cursos d’água cumpre importantíssimo papel na proteção dessas faixas contra a erosão hídrica, assim como retém parte dos solos das vertentes removidos por erosão, impedindo que esse material contribua para o assoreamento dos leitos hidrológicos. Em qualquer alternativa de regulação da ocupação ou proteção das faixas de proteção essas funções geológicas deverão ser de alguma maneira cumpridas.
A partir, portanto, do diagnóstico das peculiaridades do tripé formado pela geomorfologia, hidrologia e pedologia, em associação com as diretrizes de desenvolvimento urbano estabelecidas pelo Plano Diretor da cidade é que se devem estabelecer as regras de proteção aos rios e nascentes. Neste sentido poderíamos distinguir três situações para as quais se impõem novas formas de regulamentação do afastamento aos cursos d’água: a primeira delas diz respeito às ocupações de APPs por assentamentos precários; a segunda está relacionada à urbanização já consolidada sobre as APPs, e a terceira se refere ao processo de expansão urbana em áreas virgens, conforme exposto a seguir:
- Com relação à primeira situação existe uma impossibilidade, em curto espaço de tempo, de reassentamento de toda população moradora em favelas e loteamentos clandestinos que se instalaram sobre APPs de faixas de proteção de cursos d’água e nascentes em áreas seguras e boas condições de habitabilidade. Neste sentido, as regras de afastamento de nascentes e corpos d’água devem ser estabelecidas no bojo de processo de urbanização destas áreas, que teriam de equacionar, simultaneamente, os riscos de natureza geológica-geotécnica, como deslizamentos, solapamentos e inundações. O fato de, nesses casos específicos, não haver uma preocupação em se apontar um determinado afastamento não significa, entretanto, a ausência de normas. É imperioso o estabelecimento de critérios que assegurem a implantação de infra-estrutura e a segura requalificação urbanística daqueles tecidos densamente ocupados. Já existe, neste sentido, legislação federal que prevê a regularização fundiária em APP’s, conforme estabelecido na Resolução CONAMA 369/06 e na Lei Federal 11.977/09, conhecida como “Minha Casa, Minha Vida”;
- A segunda situação se relaciona com áreas urbanas já consolidadas e a inaplicabilidade das condições estabelecidas no Art. 2º da Lei Federal 4.771/65 (Código Florestal) e no item I, do Art. 3º da Resolução CONAMA 303/02, ambos definidores das APPs, para o ambiente das cidades. É impensável, conforme os diplomas mencionados, a reversão para APPs das larguras mínimas compreendidas na “faixa marginal, medida a partir do nível mais alto, em projeção horizontal” na trama urbana consolidada. A configuração espacial das cidades é o resultado de processos sócio-econômicos que subverteram o desenho natural do território, concentrando diferentes usos e atividades que promovem formas de adensamento humano e construtivo. Há, claramente, uma dissociação entre os dispositivos de preservação ambiental apontados e as condições de uso e ocupação do solo urbano que necessitam ser revistos, já que não se cogitaria, sob hipótese alguma, remover todas as instalações; equipamentos; sistema viário e edificações que se encontram a menos de trinta metros dos cursos d’água com menos de dez metros de largura, como preconiza a legislação citada. Para essa situação específica o ideal é resolver-se caso a caso, buscando como objetivo social, mas não como fim obrigatório, a recuperação ambiental de faixas marginais a cursos d’água, utilizando-se para tanto expedientes tecnicamente recomendáveis, como por exemplo a renaturalização de rios. Uma avaliação custo/benefício é recomendável para respaldar a decisão a se tomar em cada caso;
- A terceira situação refere-se ao processo de expansão urbana e à implantação de novos empreendimentos. Neste caso poder-se-ia adotar como largura mínima da APP de faixas marginais de proteção a faixa marginal prevista na Lei 6.766/79, conforme o item III do Art. 4º, que estabelece que “ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica”. Vale então dizer que, no caso das águas correntes e dormentes presentes em áreas que estão sendo objeto de ocupação urbana, necessariamente a faixa de quinze metros non aedificandi seria considerada como APP. No caso de cursos d’água de maior porte a definição das faixas de proteção deve estar lastreada em estudos que incorporem as feições geográficas encontradas; as características da geologia; as condições hídricas – problemáticas em planícies aluviais com ocorrência de áreas baixas e mal drenadas – e o tipo de ocupação promovida pelos diferentes agentes sociais.
As idéias e propostas discutidas nesse texto miram essencialmente, e buscam respaldar, a imperativa necessidade de produção de uma legislação ambiental reguladora das APPs especificamente voltada à realidade urbana brasileira. Uma legislação que, a partir das características próprias do espaço urbano, seja capaz de contemplar e assegurar os atributos ambientais indispensáveis à qualidade de vida dos cidadãos. Que se realize esse bom debate.
sobre os autores
Álvaro Rodrigues dos Santos é geólogo formado pela Universidade de São Paulo; ex-diretor de Planejamento e Gestão e da Divisão de Geologia do IPT; autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”, e consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente.
Francisco Luiz Scagliusi é arquiteto/urbanista formado pela Universidade Mackenzie e doutorando pela Universidade de São Paulo em Estruturas Ambientais Urbanas; ex-diretor da Divisão de Projetos e Obras da SEHAB; autor de projetos de urbanização e recuperação urbana, e consultor em legislação urbana e ambiental.