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português
O artigo vai contra os argumentos da crítica Ana Luiza Nobre acerca do Complexo Rubem Braga, elevador construído pela Prefeitura do Rio de Janeiro para ligar a Estação Ipanema de Metrô à favela do Cantagalo.
AGUIAR, Douglas Vieira de. Urbanidade Cantagalo. Complexo Rubem Braga, elevador e espaço público a serviço da favela. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 129.05, Vitruvius, abr. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.129/3843>.
Meu propósito no que segue é apresentar um outro ponto de vista a respeito do assim denominado Complexo Rubem Braga, equipamento urbano recentemente instalado no bairro de Ipanema, cidade do Rio de Janeiro, junto ao morro do Cantagalo. Digo outro ponto de vista porque o que mostro no que segue deve servir de contraponto ao que sugere o artigo publicado em O Globo no dia 4 de dezembro de 2010, que apresenta uma critica agressiva e, tanto quanto entendo, infundada, a respeito desse novo equipamento público urbano: um elevador de uso público que passa a conectar a favela do Cantagalo à cidade de modo mais direto que as usuais escadarias que sobem o morro.
O julgamento então expresso vê a obra como “um símbolo, em escala monumental, do êxito da atual política de segurança pública no Rio”, e complementa: “Com a agressividade de quem desconhece – ou despreza – o ambiente da favela, com as suas miudezas de escala, sua riqueza de espaços e suas práticas culturais e sociais, a estrutura lança-se brutalmente sobre o meio físico e social que encontra pela frente, sem buscar qualquer permutação com ele. Elevador panorâmico com piso de granito, estrutura metálica de cores vistosas e dimensões colossais, grades por todos os lados: tudo é indelicado, grosseiro, desproposital”. E ainda: “ao criar uma bolha suspensa e isolada, de estrutura truculenta e hostil à realidade em que se insere, a arquitetura mais alimenta que reduz a desigualdade, e faz com que a espetacularização da miséria se sobreponha ao enfrentamento efetivo dos problemas fundamentais da cidade” (1).
Tenho sobre a implantação desse equipamento urbano, e sobre os resultados por ele alcançados até o momento, uma visão diametralmente oposta à visão acima apresentada. Formei essa opinião a partir de algumas visitas ao local e entorno imediato, vendo a situação tanto pelo lado do asfalto quanto pelo lado da favela. Utilizo como medida para a avaliação da qualidade daquele lugar a sua condição de urbanidade isto é, o grau de acolhimento daquela situação, o novo elevador, com relação ao corpo, às pessoas, aos agentes envolvidos na situação, tanto os habitantes do asfalto quanto os habitantes da favela. Entendo essa condição de urbanidade como constituída por dois componentes; o global ou contextual, se quisermos, que se refere ao elevador como parte da condição urbana que o circunda e ao modo como ele se relaciona com essa condição, e o local isto é, o elevador em si próprio, o objeto elevador, o edifício.
Pelo lado contextual, ainda que localizado na rua Barão da Torre, pode-se dizer nos fundos do famoso bairro de Ipanema, o elevador tem sua torre e seu acesso principal localizados sobre o eixo da rua Teixeira de Melo, posicionamento que o torna claramente visível desde o coração do bairro, a praça General Osório, e também desde a praia. Não percebi essa condição espacial privilegiada, comunicativa, desse equipamento urbano, em minha primeira visita ao local, chegando de carro e estacionando na rua Barão da Torre. Precisei de uma segunda visita, desta vez chegando pela Praça General Osório, onde desembarquei chegando de ônibus. A medida em que fui me aproximando do lado oeste da praça fui percebendo a presença visual forte, desde ali, do Complexo Rubem Braga. De fato, ainda que o dito elevador esteja posicionado na rua de trás, a rua Barão da Torre, dali observado – as fotos acima mostram essa situação curiosa – ele comparece como parte constituinte da própria Praça, espaço que se confunde com o coração e com a história do bairro, ainda que não seja seu centro geométrico. A imagem mostra, em paralelo à presença forte do edifício, a presença forte ali dos habitantes da favela.
Caminho pela rua Teixeira de Melo e vejo o edifício-elevador crescer no eixo da rua, ao fundo; habitantes da favela, habitantes do bairro de Ipanema e visitantes compartilham daquele espaço, que funciona, naquele momento, como um autêntico condensador social. Por curiosidade desço a rua até a praia e lá verifico, naquele trecho de areia frontal à rua Teixeira de Melo, a presença majoritária de habitantes da comunidade e agregados. Em meio aos edifícios da avenida Vieira Souto paira, emblemática, a figura do elevador. Tenho dali uma percepção clara da intensidade da presença desse novo equipamento urbano na vida do seu entorno imediato, tanto favela quanto asfalto, e como sua imagem se multiplica em decorrência do modo como ele se apropria da espacialidade do bairro que o circunda. Reparo ainda que visto dali ele se coloca como uma fachada para a favela.
Retomo a rua Teixeira de Melo e me encaminho rumo ao edifício-elevador propriamente dito. Próximo do local vejo mais intensa a presença da dita comunidade. Vislumbro entre as árvores, no final da rua, o grande hall do Complexo. O pé direito imponente dá uma dignidade pública ao lugar. Destacam-se na composição, ao lado do envidraçado par de elevadores panorâmicos, uma parede de azulejos, no tradicional azul-marinho e branco, e uma coluna que, lado a lado, trazem para a situação, de modo literal, quase ingênuo, elementos do festejado pilotis do Ministério de Educação e Saúde.
O hall de acesso aos elevadores é desse modo compartido com o hall da estação do metrô Cantagalo. A formalidade desse grande hall contrasta com a informalidade daqueles que ali adentram, muitos carregando fardos e sacolas, em geral em grupos, famílias, muitas crianças e adolescentes, a dita comunidade. O conjunto da cena, arquitetura mais pessoas, interagindo, é insólito, complexo, escancaradamente contraditório; um palácio para o povo, um hall nobre, na escala dos halls da zona sul, década de 1950, como acesso à favela. Vejo chegando uma excursão com guia, umas quinze pessoas, europeus.
O acesso ao elevador está posicionado nos fundos, a dois passos/espaços do grande hall. Para ali me desloco refletindo sobre como seria aquela situação com as portas dos elevadores, e a fila em conseqüência, acomodados mais diretamente em contato com o grande hall, contribuindo na sua constituição e na vitalidade do lugar. A fila do elevador se acomoda em L passando em frente a uma das portas internas de acesso ao metrô; o local e o global se sobrepondo de modo inusitado. Aquele hall, queira ou não, já é um espaço da favela. Um robusto tirante atravessa o espaço em diagonal trazendo para o interior o estilo high-tech de Norman Foster.
Ao longo da viagem de elevador um deslumbrante cenário vai se descortinando na medida em que as copas das árvores da rua Teixeira de Melo vão dando lugar à visualização das ilhas Cagarras ao fundo. O elevador é grande, nessa viagem havia umas vinte pessoas, aproximadamente, talvez mais, alguns turistas, mas predominantemente moradores do Cantagalo, algumas crianças. Viagem tranqüila; muito papo e brincadeira no elevador, um happening, um laboratório, um condensador social.
Saímos do elevador e vejo agora o interior do tubo azul que liga elevador e favela. Neste mesmo hall está a escada que leva ao mirante da paz. Fico refletindo sobre as razões que impediram o acesso do elevador diretamente ao mirante e, por conseqüência, na impossibilidade de acesso de tantos, especialmente pessoas com idade e deficientes físicos. Esqueço por enquanto o mirante e me dirijo ao tubo. Ainda que azul/verde por fora o tubo é branco por dentro. O piso de cimento é igualmente claro e o colorido fica por conta das pessoas e suas roupas.
Paradoxalmente a atmosfera é leve ainda que seja um espaço gradeado. Constato que a parede do tubo tem duas camadas; uma externa, venezianada, e outra interna, constituída por uma grelha de ferro branca. A sobreposição das duas estruturas, brise mais grelha, resulta em uma luz filtrada penetrando o corredor. Dois pares de corrimãos, posicionados em diferentes alturas, contribuem na urbanidade do lugar sem no entanto desmanchar a impressão que o tubo é, muito justificadamente, uma situação espacial especial, de segurança máxima. Somados positivos e negativos a solução parece ser adequada num contexto onde o vandalismo é a regra.
O pouso do tubo na favela acontece através de uma acomodação de escala. O tubo, ainda que gigantesco no comprimento, revela, ao aproximar-se do morro, um pé direito na escala das casas que lhe são imediatamente vizinhas. A largura do tubo se acomoda sem dificuldades à largura do beco. A formalidade / monumentalidade naturais da escala do elevador dá lugar ali à informalidade dessa forma urbana venezianada. Desde a favela, olhando para trás, vejo que – de modo absolutamente insólito, quase surreal – as fachadas do beco tem continuidade no tubo azul que ganha o ar de modo espetacular.
nota
1
NOBRE, Ana Luiza. Guerra, paz e o elevador. Coluna Prosa & Verso. O Globo, Rio de Janeiro, 4 dez. 2010. Link para o artigo.
sobre o autor
Douglas Vieira de Aguiar é professor adjunto da Faculdade de Arquitetura – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PhD pelo University College London.