A inauguração da Árvore de Natal, na Lagoa, oferece uma excelente oportunidade para reflexão sobre o impacto das multidões nos espaços urbanos da cidade. O espírito festeiro do carioca transformou esse evento em um dos mais importantes do calendário oficial do Rio, superado, apenas, pelo Carnaval e pelas comemorações da passagem do ano. Durante seis semanas consecutivas, todas as noites, um extraordinário contingente de pessoas se desloca de outros bairros para admirar a árvore e desfrutar da incomparável beleza da paisagem da Lagoa.
Desde a sua primeira edição, em 1996, as controvérsias a respeito desse evento residem, principalmente, na maneira como a população utiliza o espaço da orla e do seu entorno. A impressão que fica é que, para quem critica o evento, não haveria problema algum se a árvore ali permanecesse, exclusivamente, para enfeitar a paisagem natural durante as reuniões sociais nos sofisticados apartamentos da Lagoa. O difícil para esses moradores tem sido suportar o convívio diário com as mais diversas camadas da população que para lá se dirigem em busca de usufruir, à maneira das suas possibilidades, daquele maravilhoso espaço da cidade. Os constantes apelos midiáticos despertaram nesses segmentos da sociedade o mesmo desejo que os ricos possuem em desfrutar daquela notável paisagem. Seria muita ingenuidade achar que as multidões permaneceriam confinadas em seus bairros distantes intimidadas pelos olhares preconceituosos desses grupos sociais antagônicos.
Geralmente, o foco principal das reclamações de quem vive no entorno da Lagoa se volta para as limitações ao direito de ir e vir em decorrência dos engarrafamentos diários e, também, pela forma como os espaços públicos são utilizados. Não há como refutar o impacto causado pelos excessos praticados naquele contexto urbano, inclusive, nas suas redondezas. Apesar do esforço empreendido pela administração pública para evitar a depredação do patrimônio e a degradação da ambiência local, são inegáveis os problemas decorrentes do estacionamento irregular de veículos, da extorsão praticada por flanelinhas, da imundície deixada nas ruas, calçadas e jardins, do desagradável cenário de gente urinando em árvores, postes e muros, da proliferação de vendedores ambulantes de bebidas, sanduíches e churrasquinhos, enfim, de toda a sorte de desleixo comprometedor da imagem da cidade.
Mas, é bom que se diga que essas e outras mazelas não são de responsabilidade exclusiva das camadas mais pobres da população. Tal acusação é proveniente de certas elites que guardam, mesmo que de forma dissimulada, o ranço da cultura escravagista que prevaleceu por muitos séculos em nossa história. A prerrogativa de querer territórios livres das multidões não é mais factível com a consolidação do estado democrático nos tempos atuais e muito menos com a condição urbana da cidade. O medo de que os favelados possam descer dos morros revela a hipocrisia daqueles que jamais conseguiram conviver com a presença dos moradores dessas comunidades, exceto quando eles são seus empregados domésticos, garçons, operários ou outros prestadores de serviços.
Com a progressiva retomada das comunidades faveladas das mãos dos traficantes e milicianos, seguida da implantação dos serviços sociais, dos projetos de infraestrutura e urbanização, da realização das melhorias habitacionais, sem dúvida, esses territórios tendem a adquirir um novo status e serem incorporados, definitivamente, ao tecido urbano da cidade regulamentada. Com o direito de cidadania assegurado e a autoestima elevada, certamente, essas populações terão a sua dignidade resgatada e, em consequência, a incorporação de novos padrões de urbanidade. Nesse ponto, cabe perguntar até quando o modelo de comportamento assentado na indiferença social conseguirá resistir à presença implacável das multidões desejosas de compartilhar as benesses do mundo contemporâneo que, em outras épocas, não lhes foram permitidas alcançar.
Para quem acredita que a cidade é o símbolo mais expressivo da existência humana e o principal agregador da diversidade social e cultural, essa e outras questões envolvendo as relações sociais na cidade não poderão mais ser ignoradas. Todavia, o grande desafio que se apresenta, nessa época em que a conjuntura econômica do Rio é extremamente favorável, é a recuperação da credibilidade das decisões políticas que envolvem a configuração urbana da cidade. Não há como transigir, em hipótese alguma, com qualquer espécie de interesse imediatista que se contraponha ao desenvolvimento planejado e sustentável da cidade.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. O impacto das multidões. O Globo, Rio de Janeiro, 26 nov. 2011.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista (FAU-UFRJ, 1966), mestre em urbanismo (PROURB, 1998), professor da FAU-UFRJ, ex-presidente do IAB/RJ.