Com a inauguração da via Anchieta em 1947, ligando a Capital Paulista ao porto de Santos, um novo ciclo de desenvolvimento se iniciou na região do ABC. Na cidade de São Bernardo do Campo, a instalação de indústrias automobilísticas como Volkswagen, Chrysler e Mercedes-Benz, trouxeram como conseqüência, um grande aumento de receita ao município, assim como um crescimento exponencial da população.
Este consistente crescimento populacional obrigou por parte dos poderes públicos, investimentos em infra-estrutura, habitação e serviços a população, como escolas, novas repartições públicas e hospitais.
O paço Municipal de São Bernardo do Campo, juntamente com o Centro Cívico de Santo André (projetado por Rino Levi em 1965), além de um significativo número de edifícios institucionais projetados por arquitetos Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e João De Genaro, Léo Bomfim, Zenon Lotufo, entre outros (1) são importantes exemplares da arquitetura moderna brasileira, construídos na região do ABC durante este período.
Projetado na primeira metade da década de 1960 pelos arquitetos Jorge Bomfim, Mauro Zuccon, Roberto Tross Monteiro e Toru Kanazawa, membros do Departamento de Arquitetura do município, o edifício do Paço Municipal de São Bernardo do Campo está localizado na Praça Samuel Sabatini, região central da cidade.
No grande volume horizontal, correspondente ao embasamento do edifício, localizam-se as áreas de atendimento ao público, biblioteca, teatro e a câmara dos vereadores. A grande laje de cobertura deste pavimento pode ser acessada do pavimento térreo por rampa, assumindo a função de praça elevada. É daí também que emergem a torre administrativa (de geometria prismática e fechamento integral em cortina de vidro, fazendo referência a edifícios concebidos por arquitetos como Ludwig Mies van der Rohe e Gordon Bunshaft) e o volume cilíndrico, revestido por filetes de mármore italiano, que abrigava até o fim de 2011, as galerias da câmara dos vereadores. Completam o conjunto do Paço Municipal extensas áreas de jardins, espelho d’água, estacionamentos e uma grande esplanada, com piso em mosaico português, que faz clara menção a Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Desde sua inauguração, foram realizadas diversas alterações no Paço Municipal de São Bernardo do Campo. Sem o devido planejamento ou supervisão dos arquitetos responsáveis pelo projeto original, estas intervenções descaracterizaram significativamente o conjunto arquitetônico.
Até o final de 2011, a maior destas intervenções era a construção, em 2008, do anexo da Câmara dos Vereadores, edifício de grandes dimensões com características arquitetônicas incompatíveis com o projeto original do Paço Municipal (2).
O pior, no entanto, estava por vir.
Em 31 de outubro de 2011, último dia do ano de expediente do poder legislativo municipal de São Bernardo do Campo, foi aprovada uma ordem de serviço que autorizava uma “reforma” na Câmara dos Vereadores.
Sem qualquer consulta aos munícipes, aos autores do projeto original ou a entidades ligadas ao patrimônio histórico e cultural do município, a ordem de serviço, de autoria do próprio presidente da Câmara dos Vereadores, autorizou demolição (3), realizada furtivamente nas noites seguintes à sua aprovação, de todo o setor ocupado pelo poder legislativo, inclusive de parte do edifício anexo recém inaugurado, mutilando permanentemente o Paço Municipal de São Bernardo do Campo.
Ainda em novembro de 2011 uma rede de televisão local entrou com uma ação requerendo a instauração de procedimento para apuração de irregularidades sobre a reforma da Câmara dos Vereadores perante o Ministério Público (4), onde foi constatada a inexistência de alvará de demolição ou construção, estudo de sondagem do solo ou qualquer projeto de arquitetura referente à ”reforma”. A não aprovação do procedimento pelo poder executivo municipal levou ao embargo da obra. O dano ao patrimônio público, no entanto, já se havia consumado.
A demolição da Câmara dos Vereadores, além de demonstrar a inoperância da secretária de obras do município, por permitir a realização de uma obra desta magnitude, no mesmo edifício onde esta se localiza (5), sem a existência de projeto técnico e desrespeitando a legislação vigente para este tipo de operação, evidencia a flagrante falta de conhecimento ou de interesse de significativa parte dos governantes locais em relação à preservação do patrimônio histórico, tampouco sendo capazes de identificar a importância do conjunto arquitetônico do Paço Municipal de São Bernardo do Campo como marco referencial urbano e arquitetônico, representante da autonomia e do desenvolvimento do município para sua população e região onde se situa.
Surpreendente também é o silêncio – quebrado apenas por parte da mídia e alguns blogs locais (6) – de entidades ligadas à defesa do patrimônio, dos grupos pró-cidade existentes no município e de entidades de classe como CREA, CAU e OAB sobre o ocorrido, deixando a impressão que apenas uma ínfima parcela da sociedade tem noção da gravidade da ação perpretada pelo poder legislativo da cidade de São Bernardo do Campo.
notas
1
Atualmente estão sendo realizadas pesquisas sobre a produção de edifícios institucionais e particulares produzidos no ABC paulista durante e após este período, como observado nas dissertações de mestrado dos arquitetos Denivaldo Pereira Leite, Inventário de Arquitetura Moderna no ABC “Edifícios públicos em São Bernardo do Campo, Santo André e São Caetano do Sul, 1960-1973” (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008) e Luiz Boscardin, Arquiteto Jorge Bomfim – A produção de edifícios residenciais no ABC paulista: análises projetuais das características técnico formais. (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, em andamento).
2
Demolição da Câmara em SBC atinge prédio inaugurado em 2008. Disponível em <www.abcdmaior.com.br/noticia_exibir.php?noticia=36587.
3
Arquiteto que projetou o Paço não foi consultado sobre a obra. Disponível em <www.tvabcd.com.br/noticias/noticias /2011/12/arquiteto-que-projetou-o-paco-nao-foi-consultado-sobre-a-obra-2/>.
4
CÂMARA SBC: Ministério Público exige laudos da obra. Disponível em <www.tvabcd.com.br/noticias/noticias /2011/12/camara-sbc-ministerio-publico-exige-laudos-da-obra/>.
5
TVABCD afirma que Reforma da Câmara de SBC é ILEGAL. Disponível em <www.tvabcd.com.br/noticias/noticias/2011/11 /tvabcd-afirma-que-reforma-da-camara-de-sbc-e-ilegal-2/>
6
Sem Juízo <http://memoriasbc.blogspot.com.br/>.
sobre o autor
Luiz Boscardin é arquiteto e urbanista (FAU Mackenzie, 2003) e mestre em arquitetura e urbanismo pela mesma instituição (2012).