Este artigo propõe uma leitura dos problemas da cidade de Recife em particular e brasileiras em geral, e alternativas de gestão comprometidas com a urbanidade e civilidade.
Urbanidade e civilidade são atributos que qualificam as relações das pessoas com as cidades. Eles estão hoje em permanente decadência no Recife, situação que se constata na deficitária qualidade urbanística das áreas periféricas, nos angustiantes problemas de mobilidade e segurança, na carência crônica de adequados níveis de saneamento, nos edifícios antissociais e excludentes que transformam a paisagem, na decadência urbana do centro da cidade e na total falta de cuidado e atenção aos componentes dos espaços públicos. Este diagnóstico coloca o Recife num grau de preocupante subdesenvolvimento provocado pela falta de comprometimento genuíno com os valores éticos e sociais que poderiam transformá-la numa cidade digna de ser habitada e vivenciada.
Este documento propõe estimular um debate em tempos de eleições municipais que permita repensar a cidade e reconsiderar o atual modelo de planejamento urbano e territorial, na procura de alternativas que superem o atual paradigma comprovadamente deficitário para as necessidades e desafios de Recife e de outras cidades do Estado.
Mudar o foco
A cultura periférica que caracteriza nossa sociedade nos colocou sempre com o olhar no chamado "primeiro mundo", cujas cidades são exemplos eloquentes de urbanidade e civilidade conquistadas através de duras experiências históricas, valores culturais afirmados na organização social e urbana e constante disciplina de planejamento e controle de gestão. Essa cultura de submissão para uma organização além das possibilidades imediatas da nossa realidade aumenta as distâncias entre o modelo almejado e a circunstância local. Olhares alternativos para situações similares à nossa permitem "descobrir" que bem perto, na sempre desconsiderada América Latina, existem exemplos de sucesso em requalificação social e urbana que marcam caminhos factíveis de serem empreendidos para lograr uma efetiva transformação e dignificação das cidades.
As experiências em contextos similares, particularmente os difundidos casos de Bogotá e Medellín (1), permitem comprovar que a quebra do atual modelo de planificação fragmentado, interesseiro, sectário e excludente torna-se imprescindível se o objetivo de uma gestão municipal genuinamente comprometida com o interesse geral é integrar e qualificar social e urbanisticamente a cidade. O exemplo vem dos nossos vizinhos, que souberam dar a volta por cima e mudar uma realidade extremamente adversa com determinação política e planejamento inteligente e integrado em benefício do interesse geral.
A periferia como centro
A consideração das complexas realidades sociais, físico-ambientais, econômicas e culturais é ponto de partida para superar a exclusão e a marginalidade, assim como resolver os angustiantes problemas de injustiça, insegurança e falta de dignificação urbana e convívio cidadão. A formulação e efetiva e urgente implementação de políticas de integração urbana e social constitui um objetivo essencial para atingir níveis adequados de urbanidade e civilidade.
A valorização das áreas periféricas constitui um dos pilares de uma gestão democrática na procura de uma efetiva integração cívica. A marginalidade e persistente injustiça que carcomem nossas sociedades impedem o desenvolvimento físico e social sustentável e equilibrado. Esta realidade manifesta-se cruamente na péssima qualidade dos espaços da cidade periférica e excluída, caldo de cultivo da delinquência que assola cotidianamente a todos os habitantes. A reconstituição só pode ser possível com políticas orientadas para uma efetiva dignificação desses setores excluídos, que constituem a maioria da população da cidade. As periferias devem transformar-se no centro da ação política, social e urbanística se queremos que nossa sociedade progrida, de maneira integral, para um estágio de desenvolvimento qualificado e civilizado.
As intervenções nas periferias devem estimular a dignidade e a qualidade. O saneamento básico é prioridade absoluta. Os equipamentos sociais, educativos e culturais devem ser centro de uma política orientada à promoção social dos seus habitantes. Os projetos de arquitetura, paisagismo e mobiliário urbano devem ser de qualidade máxima, convocando os melhores profissionais mediante concursos públicos. Não se devem admitir edifícios nem intervenções padronizadas, burocráticas, repetitivas e alienantes. É necessário arquitetura, paisagismo e planejamento primorosos para formar uma sociedade qualificada, diversificada e com identidade. De outro modo, continuaremos mergulhando num subdesenvolvimento social e urbano degradante e alienante. Materiais e soluções de primeira qualidade enobrecem às pessoas, elevam sua autoestima, estimulam à apropriação e cuidado da cidade e constituem a garantia de uma sociedade melhor num futuro imediato.
A habitação social é um tema que merece um profundo e urgente debate e reflexão. As soluções repetitivas e padronizadas eternizam sociedades alienadas e excluídas. A consideração das diversidades sociais e culturais, a produção de habitações adaptadas às condições climáticas, urbanas e topográficas, a consciência de fazer cidade e de que pobre merece, mais que ninguém, obras de qualidade, constituem princípios orientados à integração social e urbanística, bases primordiais para um desenvolvimento genuíno. A ação pública torna-se imprescindível para orientar processos adequados de controle de empreendimentos habitacionais, colocando e defendendo o interesse das pessoas por cima do lucro das construtoras.
A construção da cidade
A revisão e analise crítica da cidade que estamos construindo merece uma consideração urgente e transformadora. A superação da arquitetura antissocial e decadente que configura nossas cidades, materializada nos edifícios de uso residencial exclusivo e excludente que o mercado imobiliário divulga como modelo de status e segurança, constitui um passo primordial para integrar os cidadãos, promover o uso e a apropriação do espaço público e melhorar a qualidade das calçadas, praças, parques e equipamentos urbanos. Estimular o uso misto constitui um ponto fundamental para promover uma efetiva transformação e dignificação do espaço urbano, o respeito e a convivência entre seus cidadãos, o melhoramento da mobilidade urbana e a elevação da cidade a um status digno de urbanidade e civilidade. A orientação da iniciativa privada, motor essencial do desenvolvimento econômico, para a construção de edifícios humanizados e integradores da vida social constitui um desafio que os próximos administradores devem assumir com especial empenho.
A mobilidade urbana, problema que invadiu todas as cidades brasileiras, só poderá ser resolvido com efetivas políticas de promoção do transporte público de qualidade, melhoria substancial dos espaços urbanos, estímulo de edifícios de uso misto, criação de novas centralidades, valorização da arborização urbana, construção de parques, praças e espaços que estimulem o convívio das pessoas e conscientização acerca de meios alternativos de mobilização, especialmente pedestre e bicicletas.
O futuro do planeta prevê a maioria das pessoas habitando em cidades. Este irreversível processo obriga colocar o planejamento urbano e territorial no centro das atenções. Estimular este debate em período eleitoral torna-se uma necessidade de extrema urgência se queremos garantir um futuro digno em cidades minimamente qualificadas.
Colocar as pessoas no centro das políticas urbanas e sociais (em substituição do automóvel, como acontece atualmente) faz parte de decisões que devem ser assumidas com firmeza e convencimento. Só assim, as cidades iniciarão um verdadeiro caminho de desenvolvimento de acordo com a circunstância especial que o Estado e o País vivem. Num momento em que o Brasil, e particularmente Pernambuco, atingem indicadores de crescimento econômico que os colocam num estágio mundialmente privilegiado, é inconcebível que a realidade social e urbana de suas cidades, assim como seus valores culturais e patrimoniais, declinem a níveis de alarmante subdesenvolvimento marcado por ausência de planificação, predomínio de interesses mesquinhos, persistência de injustiça social e falta de visão política orientada para um destino de grandeza afirmado em suas riquezas naturais e culturais.
notas
1
Existe ampla bibliografia recente acerca das experiências positivas em diferentes cidades. Os casos específicos de Bogotá e Medellín estão contemplados, dentre outros, nos livros: MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitectura y política. Ensayos para mundos alternativos. Barcelona, Gustavo Gilli, 2011; Cidades sustentáveis, cidades inteligentes. Desenvolvimento sustentável num planeta urbano. LEITE, Carlos; AWAD, Juliana di Cesare Marques. Porto Alegre, Bookman Companhia Editora, 2012.
NE – Ver também: GUERRA, Abilio. Medellín, cidade da arquitetura e do urbanismo democráticos. Minha Cidade, São Paulo, n. 11.123.04, Vitruvius, out. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.123/3623>; ADRÍA, Miquel. De capangas às orquídeas. Minha Cidade, São Paulo, n. 09.105.02, Vitruvius, abr. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/09.105/1857/pt>; Colegio Santo Domingo Savio. Projetos, São Paulo, n. 12.134.07, Vitruvius, fev. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/12.134/4265>.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do Escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife.