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Alfredo Britto remonta a história do antigo Museu do Indio, no Rio de Janeiro, que está envolvido numa grande polêmica relacionada a sua demolição
BRITTO, Alfredo. Um ex-museu X Um não patrimônio. Minha Cidade, São Paulo, ano 13, n. 150.02, Vitruvius, jan. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/13.150/3940>.
O ano se inicia com intensa polêmica no Rio de Janeiro. O governo do Estado compra um imóvel próximo ao estádio do Maracanã e anuncia a retirada de seus ocupantes para poder ali instalar equipamentos de apoio a mobilidade de seus torcedores nos próximos eventos. No terreno, alguns galpões, um edifício principal, onde esteve abrigado de1953 a1978 o Museu do Índio, e seus ocupantes naquele momento, pouco mais de uma dezena de índios. Matéria prima suficiente para fermentar a culpa pelo tratamento genocida que a nação dedicou a seus ancestrais ao longo de séculos.
Alguns aspectos bem distintos se misturam e turvam a compreensão da polêmica inicial, transformando-a num combate aberto de caráter político entre governo do estado e seus opositores, incorporando, rapidamente, a participação de intelectuais, artistas, associações de defesa dos desvalidos, jornalistas, comentaristas, indigenistas, ministério público, comissão de direitos humanos da Câmara Federal, a Procuradoria Regional da República, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, a FIFA, a Unesco. Para tentar compreender a contenda, melhor, primeiro, examinarmos seus diferentes aspectos.
1º - Museu do Índio - Assim está sendo conhecido o caso, mas, desde 1978, lá já não existe o Museu do Índio. Ele foi transferido naquela data para a rua das Palmeiras, 55, em Botafogo, num prédio tombado a nível federal, conservado e instalado com dignidade – não com a grandeza que a questão exige, mas esse é outro problema.
2º - o prédio - Com freqüência surgem textos afirmando que o prédio foi construído em 1862 ou em 1865, e que neste ano foi doado pelo príncipe Ludwig August de Saxe-Coburgo-Gotha (um dos muitos Duque de Saxe), genro do Imperador D.Pedro, II, para ações beneméritas do Império. No entanto, a origem do prédio é controversa. O relatório realizado em 1997 pelo INEPAC / Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, organismo integrante da Secretaria de Cultura do governo do Estado, diz “quanto a origem deste prédio, há poucas informações disponíveis e muitas delas se contradizem”.
Já na República o imóvel abrigou a Escola de Veterinária do Exército, dotada de vários pavilhões e a cuja cerimônia de inauguração em 27 de junho de 1921
compareceram o próprio presidente da República, Epitácio Pessoa, o ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras, e o ministro da Agricultura, José Pires do Rio (o Ministério da Agricultura permaneceu proprietário da área até a venda atual ao governo do estado do Rio de Janeiro). Com a transferência da escola para instalações mais amplas e eficientes, o antropólogo e indigenista (nosso grande e saudoso) Darcy Ribeiro requereu o imóvel para abrigar a documentação recolhida nas expedições indígenas, criando e lá instalando, em 1953, o Museu do Índio.
O prédio principal de feições ecléticas é nitidamente uma construção republicana de composição volumétrica equilibrada, mas sem maiores dotes que o destaque no acervo edificado da cidade do Rio de Janeiro. Provavelmente por isso não despertou, até o surgimento da atual batalha, uma ação por preservá-lo por parte dos órgãos de proteção do patrimônio edificado em nenhum de seus três diferentes níveis. Nem por sua história de abrigo de instituições públicas relevantes, nem por dotes arquitetônicos, artísticos, construtivos.
3º - o poder público - Esse episódio oferece excelente oportunidade para uma reflexão sobre a relação do poder público com seus imóveis, que pertencem, em verdade, a todos os cidadãos. O poder público é o responsável por sua ocupação e uso, e deveria igualmente ser responsabilizado por sua perfeita manutenção e conservação. E mais ainda por aqueles com valor histórico e artístico, muitos já preservados pelos órgãos oficiais de patrimônio.
Antes de cobrar do cidadão, do contribuinte, suas obrigações com o patrimônio edificado de sua propriedade, o poder público tem obrigação de dar o exemplo, conservando com dignidade a sua, que é de todos. O que se vê com freqüência injuriante é o contrário. Até mesmo universidades federais, conceitualmente usinas do saber e da cultura, permanecem em verdadeiras jóias de nosso saber e de nossa cultura, mantendo-as em ruínas e com total desprezo. Um costume generalizado, a ponto de se criar popularmente a expressão conformista “mas é um prédio público” como referência a edificações degradadas das cidades.
O Museu do Índio deixou a área junto ao Maracanã em 1978. Há 35 anos, esse próprio do governo federal é objeto de desprezo e desrespeito à coisa pública. O prédio principal foi dilapidado, com retirada de esquadrias e de todos seus elementos construtivos removíveis à vista de todos sem qualquer reação ou coação por parte de seus “responsáveis”. Deixar o prédio se arruinar para então propor sua demolição como indispensável a seu novo uso e sua “modernização”, é uma prática freqüente e abominável nas três instâncias da administração pública em nosso país
Em 2006, aproveitando-se do caráter de sua mais recente ocupação (o Museu do Índio), um grupo de pouco mais de uma dezena de indígenas ocupou a área, abrigou-se na ruína e passou a comercializar seu artesanato como meio de sobrevivência. Para dar personalidade a seus produtos revestiram o local com o nome-fantasia de “Aldeia Maracanã”. Uma triste e pobre utilização da grandiosidade de nossos povos indígenas.
4º - o social - A compra e a decorrente posse da área pelo governo do estado exige atenção especial para seus ocupantes. Eles lá estão há cerca de sete anos e devem ser tratados cuidadosamente. A pouca sensibilidade e dificuldade com que as administrações públicas lidam com a crescente presença da opinião pública na vida nacional, pavimentaram o acesso à discórdia. Em poucos dias, apoiados pela velocidade das redes sociais, os indígenas locais ampliaram em dezenas seu contingente, convocando-as para o enfrentamento ao “renovado colonizador”. Situação quase insolúvel em que perdem a sociedade, a cidade, o governo e, sobretudo, a causa indígena.
5º - futuro - Há tempos que o governo do estado vinha negociando com a Conab, a agência do Ministério da Agricultura proprietária da área, visando sua incorporação ao projeto do entorno do futuro Maracanã; há tempos que a sociedade, os órgãos de patrimônio e os de defesa das culturas indígenas
sabiam disso. A falta e a dificuldade de uma gestão mais democrática de nossas cidades impediram um diálogo e uma negociação equilibrada beneficiando todas as partes. Decidir sentado no fato consumado, deixando para a sociedade a obediência cega e muda é prática comum nos regimes autoritários, felizmente, distante de nossa realidade.
O quadro atual encaminha-se para, mais uma vez, vivermos uma grande perda de oportunidade.
Esse seria (ou teria sido) o momento de se convocar antropólogos, indigenistas, líderes das comunidades indígenas, para elaboração de um programa criativo e exemplar a servir de base para um amplo concurso arquitetônico de criação de um território onde estaria abrigada e preservada de forma definitiva, educativa e digna, a memória e a contribuição grandiosa dos povos indígenas, parte fundamental de nossa formação cidadã.
sobre o autor
Alfredo Britto é arquiteto, professor da PUC-Rio e membro do Conselho Superior do IAB