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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Este artigo ocupa-se da realidade das ocupações irregulares dos espaços públicos no Bairro de São José, Recife, PE, associando-os à contemplatividade do Estado derivada da política de tolerância por ele adotada.

english
This article treats about the reality of the public spaces irregular occupations in the district of São José, Recife, PE, linking to the adopted State contemplativeness as a by-product of the State tolerance policy.

how to quote

MARENGA, Paulo. Tolerância com a desordem urbana. Minha Cidade, São Paulo, ano 13, n. 154.02, Vitruvius, maio 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/13.154/4737>.


Recife, o rio Capibaribe, as ilhas de Santo Antonio e do Recife
Foto Carl242 [Wikimedia Commons]


Figura 1: Rua Direita, 6 de julho de 2012, 05h15
Foto Paulo Marenga

Figura 2: Rua Direita, 6 de julho de 2012, 08h40
Foto Paulo Marenga

Figura 3: Travessa do Mercado, 6 de julho de 2012, 05h18
Foto Paulo Marenga

Figura 4: Travessa do Mercado, 6 de julho de 2012, 08h30
Foto Paulo Marenga

Figura 5: Rua de Santa Rita, 6 de julho de 2012, 05h50
Foto Paulo Marenga

 

As administrações municipais vêm enfrentando sérios problemas com a ocupação irregular dos espaços públicos livres das cidades brasileiras. Esse é um fenômeno que se dá de Norte a Sul do país. Os motivos podem ser a crônica desocupação profissional, que leva indivíduos a buscar a sua sobrevivência de outras formas, como a não menos crônica falta de moradia que leva muitas pessoas a abrigarem-se improvisadamente naqueles espaços.

O bairro de São José é um dos mais antigos do Recife, PE, tendo se desenvolvido nas franjas do porto marítimo da cidade e ainda guarda características arquitetônicas da época da sua ocupação inicial, dada no final do Séc. XVII. Originalmente um bairro residencial, o São José, à medida que a cidade foi se expandindo em direção ao Oeste, teve a maioria dos imóveis residenciais, pela mesma razão da proximidade portuária, se transformado em casas de comércio. Essa característica residencial e comercial do bairro manteve-se ao longo dos séculos. Mas hoje, com uma baixa densidade populacional, o bairro, caracterizando-se como uma região majoritariamente comercial, vem passando por um processo de ocupação irregular de seus espaços livres públicos. Essa forma de ocupação vem se consolidando pela inação e tolerância do Estado, diante do que o bairro passa por um processo de degradação de seus espaços públicos fazendo com que calçadas e ruas percam as suas características de livre circulação de pessoas e de automóveis, dando lugar a barracas, fiteiros e até espaços de exposição de casas comerciais legalmente estabelecidas.

Contextualizando historicamente o bairro, lembramos que no Séc. XVII o Recife ainda era politicamente subordinado a Olinda, a capital da província. Como os portugueses, comerciantes por excelência, estabelecidos no Recife, dominavam o que era à época o principal pólo comercial do estado, eles foram alcunhados pelos olindenses de mascates. Essa rivalidade, agravada pela situação econômica desfavorável deixada pelos holandeses em Olinda que incendiaram a cidade ao serem expulsos em 1654, levou a Câmara da capital a estabelecer pesados impostos para cobrir as despesas de recuperação da cidade destruída, especialmente àqueles comerciantes pejorativamente chamados de mascates. Isso provocou o descontentamento destes, levando a situação ao extremo, transformando-a num conflito que ficou conhecido como Guerra dos Mascates (1710 a 1711). Além disso, até meados do Séc. XVIII, as ocupações de terras no Brasil faziam parte da vida daqueles que se aventuravam rumo ao Oeste do país. A própria coroa estimulava essas ocupações, em nome da expansão territorial, prometendo legalizá-las em seguida. Esses dois processos, que fazem parte da nossa história colonial, associados à descendência portuguesa, sugerem terem legado à nossa gente marcas profundas que, até hoje, parecem influenciar na forma de ocupação de territórios. Três séculos se passaram desde então e o ‘ocupe que legalizaremos’ parece estar muito vivo na mente dos que patrocinam as atuais invasões e ocupações de espaços livres públicos, os modernos mascates do bairro do São José.

O ambiente urbano se forma a partir da articulação e integração entre espaços vazios e construídos, que podem ser públicos e privados, e as suas respectivas interseções, assim como uma imensa gama de diversidades e complexidades. A forma de ocupação que trazemos como herança daquele passado já distante, manifesta-se nas ocupações e apropriações indevidas desses espaços livres públicos. Mas a existência à qual o urbano está condicionado implica em uma articulação com uma sociedade que, por suas diversidades econômicas e sociais, também traz consigo um elevado grau de complexidade. Dessa articulação entre o urbano e a sociedade surgiu a cidade. É nela que se produzem, distribuem-se e consomem-se bens e serviços.

A fragmentação do espaço e a desigualdade socioeconômica podem ser entendidas como uma importante causa da ocupação irregular de espaços públicos já que, no urbano, é onde ela se mostra mais visível e palpável. Daí observarem-se nessas ocupações uma predominância de gente oriunda de classes sociais menos favorecidas ocupando espaços livres públicos de circulação. Mas há também as ocupações empreendidas por comerciantes legalmente estabelecidos, como se essa gente trouxesse como herança de seus antepassados dos séculos XVII e XVIII a predisposição para essas ocupações. Até parece ser essa herança a principal responsável pela desorganização urbana que observamos no bairro de São José. Para Roberto Lobato Corrêa (1), a fragmentação do espaço urbano, por ser ela um processo social, denota a existência de um reflexo da sociedade. “O espaço urbano é reflexo tanto de ações que se realizam no presente como também daquelas que se realizaram no passado e que deixaram as suas marcas impressas nas formas espaciais do presente”, como destaca Corrêa. Para ele, a cidade também é o lugar onde as diversas classes sociais vivem e se reproduzem, e produzem, complementaríamos, devendo “o Estado pairar acima das classes sociais e de seus conflitos.”

E é exatamente no nível político administrativo municipal que os interesses se tornam mais evidentes e o discurso menos eficaz, como destaca Corrêa. Núcleo central do urbano, como vimos, a cidade se forma a partir da articulação de espaços vazios e construídos, públicos e privados, públicos de uso público e privados de usos público e privado. É a harmonização sócio espacial no âmbito urbano que proporciona ao homem a sua pacífica convivência com o seu meio artificial. A ocupação do solo é regulada por um aparato normativo, legalmente constituído. No âmbito urbano, esse aparato é implementado pela administração municipal, a quem compete essa tarefa de gerenciar a ocupação do solo. As diversidades, conflitos e complexidades dessa ocupação devem ser arbitrados pelo poder público com base nas normas vigentes. Esse é seu dever.

O Estado nada mais é do que o resultado da transferência de poder dos indivíduos para uma entidade que os representa em suas próprias ações, interesses e anseios. Salientamos que é a atuante e firme presença do Estado, apoiada num denso cabedal jurídico legal e institucional, que propicia o equilíbrio dessas diversidades e conflitos. A sua ausência ou omissão, no entanto, costumam ser as geradoras de toda uma série de desvios de condutas que podem levar o ambiente urbano à degradação e, até mesmo, ao caos. Essa ausência ou omissão do Estado o leva à condição de mero coadjuvante na cena da cidade que pode, por sua vez, dar lugar a uma descontrolada desordem urbana. É quando os espaços públicos passam a ser apropriados indevida e ilegalmente, já que os atores dessas apropriações não encontram quaisquer resistências do Estado regulador e fiscalizador, o que os estimula a se expandir nessas ocupações desordenadas por todo tecido urbano. Some-se a isso a cultural desobediência civil da nossa gente, acostumada a respeitar o fiscal da lei e não esta, subvertendo a ordem pública na certeza da impunidade, e podemos entender a desordem que hoje predomina no Bairro de São José, no Recife.

As atenções municipais sempre estão voltadas para a cidade que paga impostos e merece os investimentos oficiais. À outra parte da cidade, a ilegal ou invisível para Ermínia Maricato (2), resta o esquecimento demonstrado no seu comportamento meramente contemplativo e complacente. Mas isso não é um comportamento recente das administrações públicas, pois Sêneca (4 a.C – 65 d.C), filósofo e escritor do Império Romano, já dizia que “na vida pública ninguém olha para os que estão pior, mas apenas para os que estão melhor.”

A confecção dos orçamentos e planejamentos de investimentos, supostamente elaborados para todos, demonstra sofrer fortes influencias de grandes empresas imobiliárias e construtoras, “...as obras definidas pelas megaempreiteiras financiam as campanhas eleitorais”, como lembra Maricato.

É aí que se beneficiam os que tiram o melhor proveito dessa complacente e contemplativa ausência do Estado, demonstrada na inoperância do seu aparato fiscalizador, passando às movimentações de ocupação dos espaços públicos, deles se apropriando de forma temporária ou definitiva, a depender da sua necessidade ou do uso a estes destinado. Todo denso aparato legal e regulador parece não existir.  Isso nos lega deformações no tecido urbano, onde espaços públicos se transformam ilegalmente em áreas de uso privado, ao arrepio da legislação que deveria coibi-las. Agrava-se a distancia entre o planejado e o executado. Por essa razão, Henri Lefèbvre (3) classificou o planejamento, essa quase perfeita obra de ficção, como o pior inimigo do urbano, onde “a ordem urbana contém e dissimula uma desordem fundamental [...] nela o espaço torna-se raro, bem valioso, luxo e privilégio...” e caro, complementaríamos.

Assim, considerando a desigual aplicação da lei pela administração municipal, a ausência ou inoperância do aparato fiscalizador e a desobediência civil de parte da sociedade na participação ativa da desordem urbana, poderíamos hierarquizar as suas causas, colocando no topo dessa hierarquia a administração municipal e o seu injustificável comportamento contemplativo frente às ocupações ilegais dos espaços públicos. É, certamente, o Estado tolerante e contemplativo que permite a evolução de todas as outras etapas que levam à desordem urbana, conseqüência da irregular e ilegal apropriação de espaços públicos. É quando o Estado abandona o seu poder coercitivo e o educativo permitindo, ao dar lugar a um vácuo administrativo, a instalação do caos. Essa contemplatividade estatal, escudada em antigas práticas demagógicas e no clientelismo, possui as suas raízes na política partidária, alimentada e movida pela permanente necessidade de agradar e satisfazer a eleitores e benfeitores, estes os financiadores das campanhas políticas. Tudo isso está claramente demonstrado no histórico bairro de São José, no Recife. A omissão e contemplatividade estatais têm como conseqüência direta o que chamamos de política de tolerância. Esta, por sua vez, é entendida e apreendida pela gente da cidade como o passaporte que lhe garante o livre acesso à ocupação dos espaços livres públicos, a seu bel prazer, em um total laissez faire. Tudo parece ser permitido e tolerado, já que não há qualquer tipo de resistência às investidas ocupacionais irregulares, sejam elas temporárias ou definitivas. Com isso os espaços públicos passam à incomoda condição de meio-públicos e meio-privados, para usos e fins diversos daqueles que representam a sua própria razão de existir. Praças, ruas e calçadas deixam a sua condição de áreas públicas de integração social e de livre circulação de automóveis e pessoas, para servirem a interesses privados de seus ocupantes ilegais. A administração municipal parece não exercer nenhum domínio sobre os espaços sob a sua responsabilidade direta, que passam a ter novos donos que ali desenvolvem atividades diversas, principalmente aquelas ligadas ao comércio de bens de baixo valor, geralmente oriundos de importações ilegais, comércio de frutas, verduras e legumes, da exploração de bares e lanchonetes em caráter temporário ou definitivo. Com isso, as pessoas precisam esgueirar-se por entre barracas, bancas e tabuleiros ao fazerem uso dos estreitos espaços públicos, remanescentes de irregulares ocupações. Nessas situações, o homem perde a sua condição de cidadão – aqui entendido como beneficiário de seus direitos de ir e vir e de sentir-se respeitado nos espaços outrora de uso público, perdendo o direito ao uso daquilo cuja própria existência se deve exatamente a ele. O espaço público de fato, passa a ser o que sobra, o espaço residual resultante dessas indevidas, irregulares e ilegais apropriações privadas. Diante disso criou-se um novo elemento na composição do urbano que foi a privatização, ilegal, mas tolerada, de espaços públicos. Essa é uma prática que vem se disseminando em toda a cidade, não só no São José, variando as áreas de acordo com a necessidade ou interesse daqueles que delas irão se apropriar. Dessa forma, algumas áreas públicas do bairro de São José, como ruas, praças, pátios e calçadas, vêm sendo sistemática e irregularmente ocupadas, à vista de quem, por direito e obrigação constitucional, deveria por elas zelar. Consolida-se a política de tolerância do Estado contemplativo e os seus desdobramentos que têm na ocupação ilegal dos espaços públicos a sua parcela mais visível refletindo diretamente na qualidade de vida das pessoas.

As ocupações irregulares dos espaços públicos encerram duas dimensões: a dimensão socioeconômica, quando protagonizada por parte da população segregada por sua condição financeira e social e a dimensão político administrativa, a cargo da administração pública municipal, quando esta se omite das suas responsabilidades constitucionais de zelar pela cidade. Assim, enquanto aqueles ocupam e privatizam individual ou coletivamente espaços públicos, estes a tudo assistem e, dando plena vazão à sua política de tolerância, relega o fato como se nada tivesse com aquilo. Essas apropriações também ocorrem por parte de comerciantes legalmente estabelecidos que, por absoluta falta e fiscalização do Estado, expandem as suas vitrines transformando calçadas à frente de seus estabelecimentos em mostruários, como visto nas figuras 1 e 2.

Esses comércios temporários podem ser vistos nas figuras 3 e 4 com a rua e as calçadas livres e ocupadas em horários diferentes de um mesmo dia.

Alguns comerciantes legalmente estabelecidos no São José, para garantir espaço para o estacionamento do seu veículo a qualquer hora, finca barras de ferro no leito carroçável da rua à frente do seu estabelecimento comercial, presas ao chão por pesados cadeados e unidas por corrente, num claro desrespeito à legislação e aos transeuntes, como visto na foto 4.

Essa problemática da privatização de espaços públicos, refletida na deterioração do espaço urbano e nas suas respectivas perdas de funções, está acima de regimes ou sistemas de governo, situando-se firmemente na esfera da política de interesses. Como afirmou Lefèbvre, “a problemática urbana é mundial. Os mesmos problemas encontram-se no Socialismo e no Capitalismo, assim como a mesma falta de respostas.” O que há em comum é que também o Estado sempre foi propriedade privada de poucos privilegiados, fazendo com que ao povo coubesse apenas a participação como coadjuvante e massa amorfa, que se move ao seu bel prazer e que, eventual e espertamente, ocupa espaços e lacunas relegados por esse Estado tolerante. Cada vez mais a linha que separa o público do privado, especialmente no que se refere aos espaços públicos urbanos, passa a ser mais tênue tendendo a desaparecer, sendo mantidas a contemplação e tolerância estatais que podem, ainda, representar uma mudança radical na forma de ver e de viver a cidade através dos seus espaços públicos com as suas perdas de funções. O resultado de tudo isso são espaços públicos urbanos descaracterizados, emprestando à cidade um aspecto de feiúra adquirida que, certamente não agrada à sua população

Diante de uma verdadeira desconstrução do urbano no bairro de São José, que se arrasta por décadas a fio, o caminho para o seu rompimento e a tentativa de volta à normalidade pré-desordem, passa necessariamente por uma ruptura na maneira como o poder público exerce as suas prerrogativas e administra as suas obrigações. O simples fato de fazer cumprir a legislação parece ser uma tarefa excessivamente difícil para a maioria dos administradores públicos, diante da sua postura e conduta quanto à política de interesses não coletivos. As ferramentas mais importantes para tanto, a legislação e o aparato fiscalizador, se mostram ineficazes diante dessa postura contemplativa e tolerante. Sabe-se, há muito, ser a obediência à lei o único caminho para a ordem. A sua não observância, consolidada por uma cultural desobediência civil, leva a essa degradação do espaço público urbano, com a sua conseqüente deformação física e perda de funções precípuas de ruas, calçadas e praças. Parece-nos não ser impossível uma mudança de paradigma, bastando que olhemos exemplos de outras cidades, mesmo brasileiras, onde essa contemplatividade e tolerância estatais se dão em menor escala. Afinal, como disse Aristóteles (384 –322 a.C), “uma cidade deve ser construída de modo a proporcionar a seus habitantes, segurança e felicidade.” Será que não é demais ainda estar-se buscando pelas mesmas coisas 2.300 anos depois?

notas

1
CORRÊA, Robeto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo, Editora Ática, 1989.

2
ARANTES, Otília. A cidade do Pensamento Único. Desmanchando Consensos. São Paulo, Vozes, 2000.

3
LEFÈBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2008, 3ª. edição.

sobre o autor

Paulo Arthur Marenga de Arruda é economista e atualmente cursa Arquitetura e Urbanismo (Esuda) em Recife, PE.

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