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português
O artigo trata da Igreja Nossa Senhora das Neves, Espírito Santo, sua implantação original no território, seu papel na expansão dos jesuítas no estado e sua presença no atual contexto de eminente transformação radical da paisagem.
english
The article studies the Church of Nossa Senhora das Neves, its original implementation in the territory, its role in the expansion of the Jesuits, and its presence in the context of eminent radical transformation of the landscape
español
El artículo trata de la Iglesia de Nossa Senhora das Neves, su aplicación original en el territorio, su papel en la expansión de los jesuitas, y su presencia en el eminente contexto de transformación radical del paisaje.
NEIVA, Simone. À espera de uma cidade. A Igreja Nossa Senhora das Neves, da expansão jesuítica à globalização. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 167.04, Vitruvius, jun. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.167/5203>.
“Não há qualquer arquitetura aqui” (1), concluiu Wim Wenders após uma rápida passagem pelo Espírito Santo. A afirmação ecoava em meus ouvidos enquanto avançávamos em direção ao interior do estado. Desejei a todo custo contradizê-la, mas ao observar a paisagem urbana litorânea a situação me era continuamente desfavorável. Por quilômetros e quilômetros não avistava algo que pudesse apresentar, numa carta defensiva, que contrariasse a impressão do famoso cineasta.
A despeito de minhas elucubrações sobre a paisagem, nossa viagem tinha um destino certo, a Igreja de Nossa Senhora das Neves, uma das poucas remanescentes da arquitetura colonial no estado. Uma construção que não existe no imaginário do capixaba da capital, mas que recebe anualmente uma centena de pessoas provenientes das redondezas na Festa de Nossa Senhora da Neves. Todavia, passadas as festividades, a igreja é novamente esquecida. Distante cerca de vinte quilômetros do município de Presidente Kennedy, implantada em meio à restinga, entre o Rio Itabapoana e o Atlântico, a igreja praticamente isolada, vive das preces e da dedicação de poucos fiéis no restante do ano.
Construída em 1702 pelos jesuítas que penetraram no sul do Espírito Santo, a Igreja Nossa Senhora das Neves integrava a antiga fazenda Muribeca (2) – uma importante base produtiva que abastecia de carne e de peixe as outras igrejas jesuíticas mais ao norte, sustentando o projeto missionário da Companhia de Jesus no estado (3). Erguida com a ajuda de escravos e de índios catequizados (4), a construção feita de pedra dos arrecifes da costa, argamassadas com cal e óleo de baleia, é a única dentre as edificações da fazenda que transpôs o tempo. A existência de uma meia torre sineira, à direita de sua fachada, denuncia o projeto inacabado.
A aproximação nos toma o fôlego. Desde a estrada, ao longe, em meio a areia branca e a baixa cobertura vegetal da restinga, avista-se um grande e solitário bloco branco emoldurado pelo céu. Um caminho de terra avermelhada parece nos conduzir ao passado. A implantação da igreja contradiz, em parte, o padrão jesuíta no qual as igrejas eram edificadas em elevações permitindo uma observação defensiva em caso de ataques inimigos. Ao contrário, a Igreja Nossa Senhora das Neves impõe-se pelo contraponto que exibe com a paisagem plana, o que a deixou vulnerável a uma série de ataques indígenas, sobretudo das tribos dos Botocudos (5). A provável razão para a escolha de uma área plana seria o fato de a igreja pertencer a uma fazenda. Por outro lado, a implantação junto ao rio e ao mar, garantiu o fácil acesso – tanto ao interior em busca de índios, quanto à costa, em razão da comunicação com a Europa – atendendo perfeitamente à recomendação da Companhia de Jesus.
A igreja, construída junto ao mar e ao rio, não se volta para eles. A implantação segue o propósito jesuítico de ocupar o centro da futura cidade, afirmando o poderio católico na localidade que se desenvolveria à sua volta. Para tanto, defronte ao edifício era disposta uma praça, às vezes rodeada pelas moradias unifamiliares para indígenas (6). Mas a Igreja Nossa Senhora das Neves voltou-se para uma cidade que não aconteceu. Ainda hoje, ao seu redor, uma bela e vasta vegetação de restinga estende-se até o oceano, salpicada aqui e acolá por tímidos sinais de civilização. Dentre as raras construções, surge no vazio um pequeno posto de venda que anuncia o loteamento da região. Ao conversarmos sobre o anúncio, dona Jovelina Peres, zeladora de igreja, diz “Muita coisa vai mudar por aqui” – sinalizando algo muito maior. Então, aquilo que à primeira vista nos parece mais um empreendimento de porte mediano, aos poucos revela a cidade aguardada desde os jesuítas. Caso se concretize o projeto de um imenso terminal portuário da empresa Ferrous Resources do Brasil, os potenciais fiéis que a igreja anseia poderão chegar com cinco séculos de atraso.
A decisão quanto a localização para a instalação desse superporto ainda não foi tomada. Dentre as regiões cotadas, encontra-se ainda Ponta da Fruta, englobando Grande Terra Vermelha e Guaranhuns, no município de em Vila Velha. Estima-se que o empreendimento contará com uma planta de desaguamento e de filtragem para o tratamento da polpa de concentrado de minério de ferro a ser transportada por um mineroduto. O complexo será composto por um sistema de ancoradouro duplo para carregamento de navios de grande capacidade, com previsão de embarque de cerca de 25 milhões de toneladas por ano, podendo ser expandida para 50 milhões de toneladas anuais (7). O projeto, ironicamente, reproduz o pensamento estratégico jesuítico, ao utilizar a mesma região para agora escoar recursos naturais.
Se implantado, o superporto modificará a paisagem local de modo radical e definitivo. O ecossistema da restinga será devastado pela especulação imobiliária e pela construção de estradas e do porto junto ao mar. Embora tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico (IPHAN), a pequena igreja corre o risco real do desaparecimento de uma de suas maiores qualidades, a paisagem que cria e da qual faz parte. Ao imaginar a submersão da Igreja de Nossa Senhora das Neves nessa cidade que se anuncia, a afirmação de Wim Wenders novamente me assalta, e desta vez soa como um mau presságio. Na viagem de volta à capital já não observo a paisagem construída como um ente inerte e oco. Vejo o litoral povoado por pessoas que conversam trajando roupas de banho, por bancas de banana e abacaxi, e pela menina que, na água da praia com sua boia de borracha, sorri feliz. Na perspectiva que se apresenta, é possível que a má arquitetura seja o menor dos prejuízos iminentes.
notas
NA
A visita à Igreja Nossa Senhora das Neves constitui uma das etapas da pesquisa “Arquitetura da Memória” desenvolvida pela grupo ArqCidade da Universidade Vila Velha/UVV com o apoio da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular/FUNADESP.
1
"There is no architecture here whatsoever". Frase do cineasta Wim Wenders em conversa informal com a autora do artigo por ocasião de sua passagem pelo Espírito Santo para a filmagem de um documentário sobre o fotógrafo Sebastião Salgado.
2
“Mosca inoportuna”.
3
“Junto com outras três fazendas jesuíticas, Carapina e Itapoca na Serra, e Araçatiba em Viana, a Fazenda Muribeca foi importante base produtiva para a sustentação do projeto missionário civilizador empreendido pela Companhia Jesus na capitania do Espírito Santo. Especializada na produção de carne, no final do século XVII, abastecia o colégio de Vitória e as residências do Espírito Santo, além de ter espaçoso pesqueiro para abastecimento de peixe. Em 1707, era a única fazenda na capitania”. ALMEIDA, Renata Hermanny. Patrimônio Cultural do Espírito Santo – arquitetura. Vitória: SECULT/CEC, 2009, p.158.
4
Possivelmente índios das tribos Puris, Goitacazes e Botocudos, habitantes nativos da região.
5
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios Imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845).UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007, (Dissertação de Mestrado).
6
As moradias unifamiliares para indígenas contrapunham-se às ocas multifamiliares, espaços moralmente degenerados, segundo a crença cristã.
7
Disponível em: https://www.ferrous.com.br/index.php/projetos/view/25/25. Acesso em: 23 de março de 2014.
sobre a autora
Simone Neiva é arquiteta, professora na Universidade Vila Velha e pesquisadora do grupo ArqCidade/UVV. Doutora pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela Universidade Mackenzie. Especialista em História da Arte e História da Arquitetura pela PUC/Rio, atuou como consultora UNESCO.