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português
A historiadora Rosa Artigas, filha de Vilanova Artigas, comenta a situação das casas da família projetadas pelo pai, que mesmo tombadas pelo Condephaat sofreram taxação exagerada IPTU pela Prefeitura de São Paulo.
ARTIGAS, Rosa. Uma morada de Artigas. Ou das vicissitudes dos proprietários de imóvel tombado na cidade de São Paulo e alguns apelos. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 176.02, Vitruvius, mar. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.176/5453>.
“Mas agora entra a lição histórica de todos os homens de todas as raças, todas as ideologias sociais de todos os tempos, que insiste em me dizer que disso deriva também o capitel, (que além de funcionalmente arrebanhador de esforços é funcionalmente enfeitador também) e os mil e um quilemandjaros que empetelecam as arquiteturas mais sublimes. As quais pra meu gosto e racismo são o egípcio, o renascimento florentino e a casa moderna. A casa moderna legítima entenda-se. O Ministério da Educação e jamais o Ministério da Guerra; o Edifício Esther e jamais a Faculdade de Direito, uma morada de Artigas e jamais uma moradia neo-colonial”.
Mário de Andrade, 1943
Memória
A primeira casa que o arquiteto Vilanova Artigas construiu para si data de 1942. É uma obra que por suas pequenas dimensões, se comparada à sua segunda casa construída em 1949, ficou conhecida com o apelido afetivo de “casinha”. Dizem alguns estudiosos que a “casinha” é um dos principais exemplares da arquitetura representativa da influência de Frank Lloyd Wright em São Paulo. Compacta, foi fundamental para propor um novo tipo de implantação da casa no lote paulistano e era uma novidade também quanto aos processos construtivos então utilizados, dizem os historiadores. Também é de 1942 a figueira plantada pela Virgínia Artigas na esquina do lote onde está a casa e que hoje é quase tão grande quanto aquela árvore que enfeita o jardim de um dos restaurantes chiques de São Paulo.
Nascemos, Julio e eu, e moramos na segunda casa, construída em 1949, a mais bonita e estranha do bairro do Campo Belo, naquela época, anos 1950 e 1960, uma região com jeito de subúrbio, em São Paulo. A casa, como as pessoas com um pouco de interesse por arquitetura sabem, é toda de vidro, sem fachada, nem telhado como as casas “normais” da época e sim com cobertura de laje de concreto em “borboleta”. Internamente, sob essa grande laje, os espaços são contínuos. A cozinha não tem porta e também não há fundo de quintal. A garagem foi construída ortogonalmente em frente à casa, que não tem muro, somente uma cerca viva marca os limites com a rua. Os quartos são pequenos, mas a sala é enorme, com lareira e uma porta de vidro que dá para um terraço. Essa porta, quando aberta, duplica as dimensões da sala e há um escritório sobre o terraço. A mobília era pouca e boa parte fixa no piso ou nas paredes de tijolos aparentes, caiadas de vermelho e de azul. O piso de cimentão vermelho – “como a casa do povo” , diria o Artigas, bem ao gosto dos anos 1950. A casa não tem quarto de empregada ou serviço separado, rompendo a tradição patriarcal e escravista das moradias paulistanas.
As pessoas que passavam, tocavam a campainha para perguntar se ali era uma fábrica, oficina mecânica, igreja. Alguns até tiravam fotografia para registrar sua estranheza. Esquisita a casa, eram estranhos seus moradores. Num bairro com muitos imigrantes alemães, nossa casa brasileira era cheia de líderes sindicais, intelectuais, militantes de esquerda, artistas e até alguns cientistas considerados meio malucos, muitos amigos que entravam e saíam a qualquer hora do dia ou da noite.
Eu morava, e não sabia, no futuro desenhado por meu pai. Formalmente a casa acompanhava a linguagem da recém-inaugurada “arquitetura moderna brasileira”, identificada com a obra de Oscar Niemeyer na Pampulha, mas com aspectos da arquitetura popular e econômica, que era outro princípio caro da arquitetura moderna, segundo Artigas. A casa foi construída para a sociedade brasileira desejada: economicamente desenvolvida, com amplo acesso à tecnologia. Na hierarquia espacial, o espaço mais importante era a sala, destinada à convivência das pessoas. A cultura e o conhecimento, sem limites nem censura, ficavam no escritório transparente e sem portas (como mais tarde foi feito na Biblioteca da FAUUSP). A natureza era acessível através das vidraças e pelo acesso ao jardim, pelo terraço. A casa era sem muros para que pudéssemos ver e viver a cidade que deveria ser, um dia, mais humana e bela.
Quando a casa ainda era novinha, a querida Lina Bo percebeu o projeto político que a casa continha. A casa foi publicada na revista Habitat, em 1950, com um texto que dizia:
“Citamos uma moral de vida sugerida pelas casas de Artigas, uma moral que definimos como severa e esta é a base de sua arquitetura. Cada casa de Artigas quebra todos os espelhos do salão burguês. Nas casas de Artigas, que se vêem, dentro é tudo aberto, por toda parte o vidro e os tetos baixos (…). As casa de Artigas são espaços abrigados contra as intempéries, o vento e a chuva, mas não contra o homem, tornando-se o mais distante possível da casa fortaleza, a casa fechada, a casa com interior e exterior, denúncia de uma época de ódios mortais. A casa de Artigas, que um observador superficial pode definir como absurda, é a mensagem corajosa de quem vê os primeiros clarões de uma nova época: a época da solidariedade humana.”
Com o crescimento da cidade de São Paulo, a partir dos anos 1970, o bairro do Campo Belo foi, aos poucos, deixando de ser um subúrbio de classe média. Os sobrados e casas do bairro foram demolidos para dar lugar a edifícios de apartamentos e escritórios, lojas, bancos, supermercados e até um Shopping Center foi construído na antiga parada de bonde de Indianópolis. O progresso, as novidades fizeram com que o valor do solo urbano na região disparasse. O terreno das duas casas começou a ser cobiçado por construtoras de edifícios: mil metros quadrados de esquina, onde era possível, a partir da negociação com um único proprietário, construir um prédio de vinte andares de apartamentos de luxo. A família resistiu às ofertas, à sedução dos valores altos em nome da memória e de tudo que as casas significavam, para ela e para o círculo de amigos, para as pessoas inteligentes. Um pouco de sentimentalismo, alguma cultura e também o temor de que, sobre as casas do Artigas, fosse construído um desses edifícios cheio de terraços e floreiras, com portal neo- franco- anglo-italiano-colonial, terminado na cobertura com um sótão e telhado de quatro águas em ardósia, batizado como “Maison de Lyon” ou “Miami Beach”.
Resistimos porque acreditávamos que os vizinhos, o entorno, a cidade, só teriam a ganhar com a preservação das casas. Que um dia elas seriam finalmente reconhecidas como um patrimônio cultural e histórico da cidade de São Paulo.
História
O processo de preservação oficial começou pela natureza, com a figueira da Virgínia. Um levantamento realizado pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Cidade de São Paulo publicou fotografia da árvore num livro de luxo. Pregaram uma plaquinha de metal com o “tombamento” e identificação da espécie, na esquina. Fiquei orgulhosa ainda que a casa fosse somente o pano de fundo do retrato. Afinal os jardins, agora cheios de árvores – paineira, pinheiro, quaresmeira, pitangueira, – eram parte importante da memória.
Quando o Artigas e a Virgínia morreram as casas foram mantidas. O Julio foi morar lá. Restaurou-se o telhado da casinha que ficou como nova para espanto das imobiliárias e construtoras que, sabendo da morte dos antigos proprietários, batiam à porta com ofertas milionárias. A resistência continuou. Afinal, já havia a árvore e quem sabe um dia viria o reconhecimento das casas que já contavam com a admiração de alguns vizinhos, dos amigos e da maioria dos arquitetos.
A cada passo que dávamos em oposição à venda, achávamos que andávamos na direção do reconhecimento do valor histórico e arquitetônico das casas – recebíamos visitas de estudantes e arquitetos do Brasil e do exterior; grupos invadiam o cotidiano do Julio que ciceroneava os visitantes a qualquer hora. Na direção contrária a prefeitura de São Paulo emitia os impostos com estranhos valores, compatíveis com o virtual edifício de 20 andares que o terreno comportava. Em trinta anos, desde a morte do Artigas, o IPTU da das casas nunca foi igual de um ano para o outro, com valores cada vez mais altos, impossíveis de serem pagos sem causar um rombo significativo nos nossos ganhos de assalariados. A área da casa aumentou e diminuiu; o fator de obsolescência variou; a data de construção da casa a cada ano era diferente. Essa confusão e a insensibilidade dos órgãos municipais com aqueles que preservam nossa triste cidade fizeram com que o IPTU das “moradas” do Artigas sofresse um aumento real numa média de quase 200% nos últimos dez anos. Exatamente no período em que o imóvel passou para o patamar público de bem cultural da cidade de São Paulo.
Por sua relevância enquanto obras da arquitetura e cultura paulistas e brasileiras as casas foram objeto de abertura de processo visando seu tombamento, publicado no Diário Oficial em 2004, como imóveis enquadrados como Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPEC). Cumpre ressaltar que a instrução final desse processo de tombamento e respectivas resoluções do CONPRESP deveriam ter sido feitas até o final dos prazos estipulados para a revisão do Plano Diretor do Município de São Paulo. Até quanto eu saiba, não foram feitas até hoje.
Após tomar conhecimento do enquadramento nas casas em ZEPEC, procurei orientação junto ao DPH da Prefeitura de São Paulo que, informalmente, esclareceu que desde a publicação das citadas normas e durante o período em que os imóveis fossem objeto de estudo, as casas passavam a ser tratadas como bem artístico e histórico e gozavam de todas as proteções e restrições relativas aos bens tombados, mesmo que temporariamente. E o imposto continuava a ser cobrado normalmente.
Paralelamente, corria o pedido de tombamento das casas no Conselho Estadual – Condephaat. Após adormecer em alguma gaveta durante alguns anos, a solicitação foi finalmente avaliada pelo Conselho em 2014 e, o valor histórico e arquitetônico das casas foi reconhecido pelo Estado neste início de 2015, ano em que se comemora o centenário de Vilanova Artigas.
Apelos
Fiquei feliz quando recebi carta do Condephaat informando sobre o tombamento, há alguns dias. Finalmente saíamos da indefinição sobre o tombamento. Horas depois, fiquei um pouco chocada quando chegou o carnê do IPTU. Já esperava a facada, mas desta vez ela veio mais profunda ainda: a Cidade de São Paulo está cobrando de imposto territorial por duas casas tombadas, que juntas somam 210 metros quadrados de área construída, a módica quantia de vinte e seis mil reais!
Os erros recorrentes e injustiças acumuladas na cobrança dos impostos espantam porque os órgãos municipais penalizam os proprietários que preservam e cultivam o que resta de traços culturais e ambientais da nossa arquitetura e da nossa paisagem. Sempre me lembro de certa casa na Av. Paulista, demolida numa madrugada para fugir do tombamento iminente. Na época me causou horror. Hoje, quase me solidarizo. A cobrança abusiva, errática e injusta do Imposto Territorial Urbano para obras já tombadas impedem a preservação do imóvel, já que os altos valores pagos poderiam ser investidos em sua manutenção. E no caso de bens importantes para a natureza e a história da cidade, ainda não legalmente preservados, os altos impostos só aceleram e incentivam sua venda para empresas imobiliárias que buscarão implantar mais e mais espigões despersonalizados.
Infelizmente, só me resta apelar para que os interessados atentem para a injustiça que é a cobrança de impostos abusivos dos proprietários de bens tombados. Quero demonstrar que esses bens têm, de fato, interesse cultural. Que impostos não devem ser calculados sobre uma “planta genérica” que determina o valor do solo urbano pelos critérios da especulação. Quero que solidariamente, os proprietários, o poder público e a sociedade demonstrem que a resistência à sedução do mercado imobiliário, à destruição da vegetação significativa e das edificações históricas pode ser ação contra as perdas social e cultural da cidade, de fato.
Enfim, quando a má notícia do IPTU chegou, conclui que terei que trabalhar exclusivamente para pagá-lo. Ou então não pagá-lo e, em longo prazo, perder a propriedade para o poder público. O que fazer? Olhando para outros bens tombados e mantidos pelo estado constato as péssimas condições em que se encontram. Triste destino para as moradas do Artigas.
Talvez eu ainda possa pedir que a isenção de impostos, que já beneficia imóveis situados na região central, seja estendida às casas do Campo Belo. E se, mesmo assim, os poderes públicos concluírem que o IPTU cobrado é importante para a cidade e dele não quiserem abrir mão, e que as casas do Artigas não têm tanto significado, que estou enganada por sentimentalismo ou pretensão, então apelarei para que o tombamento seja revertido e restarão as lembranças, as fotografias, os papéis, as histórias. De maneira realista, ainda que dolorosa, cederei definitivamente aos desígnios do mercado.
nota
NE — publicação original: ARTIGAS, Rosa. Uma morada de Artigas. Ou das vicissitudes dos proprietários de imóvel tombado na cidade de São Paulo e alguns apelos. Arquitetura para Todos. Blog do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. Brasília, mar. 2015 <http://arquiteturaurbanismotodos.org.br/rosa-artigas-apelos/>.
sobre a autora
Rosa Artigas é historiadora.