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my city ISSN 1982-9922

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A defesa popular do edifício Caiçara coloca em destaque a luta em curso na cidade do Recife, que coloca em lados antagônicos setores ligados ao mercado imobiliário e movimentos sociais que lutam pela direito à cidade.

how to quote

GHIONE, Roberto. Patrimônio além da arquitetura. O edifício Caiçara, os movimentos sociais e o direito à cidade. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 195.04, Vitruvius, out. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.195/6256>.


Edifício Caiçara
Foto divulgação [website UFPE]


Determinados tipos de convivência social podem ser considerados critérios para avaliar a qualidade patrimonial de um bem construído? O valor social da propriedade privada pode ser reivindicado como bem patrimonial? O edifício testemunha de um tempo superado pode ser considerado patrimônio, ainda quando suas qualidades arquitetônicas não representem uma condição destacada ou relevante? O sentimento de parte da sociedade em relação a um determinado bem é motivo para ele ser considerado patrimônio?

Os questionamentos acima surgem de reivindicações sociais que acontecem no Recife, no contexto de resistência às transformações urbanas que a cidade experimenta. Esta circunstância tem invertido o processo de declaração de determinados bens como Imóvel Especial de Preservação – IEP, segundo a legislação municipal local. As iniciativas, em lugar de partir dos organismos técnicos de avaliação, partem dos movimentos sociais, forçando a declaração de determinados edifícios.

A luta pela preservação da memória e dos afetos coletivos teve um ponto culminante com o processo do edifício Caiçara, iniciado em novembro de 2011 com a emissão do alvará de demolição pela Prefeitura do Recife e pareceres técnicos que julgaram que o imóvel não possuía relevância nem valores que justificassem o tombamento. O conflito social deflagrou em setembro de 2013, quando se iniciou, de fato, a demolição do edifício. Movimentos sociais questionaram a autorização para demolir, circunstância que motivou o Ministério Público Estadual a iniciar ação cautelar e emitir uma liminar suspendendo as ações.

Desde esse momento até abril de 2016 o processo atravessou diferentes impasses. A situação assumiu uma especial complexidade a partir da posição crítica dos movimentos sociais em relação ao modelo de cidade em construção e das tensões ideológicas de grupos que apresentam visões radicalmente opostas. A repercussão que teve o conflito, envolvendo empresa construtora, movimentos sociais, Prefeitura do Recife, Ministério Público Estadual, órgãos especializados em preservação do patrimônio, justiça estadual, entidades de classe, academia, imprensa e sociedade em geral, reflete a insegurança nos critérios e processos de um caso que pode ter reverberações em outros contextos ou com outros edifícios. Argumentos contra e a favor da demolição foram apresentados e intensamente defendidos. Os primeiros esclareciam a necessidade de preservar uma tipologia remanescente de um tempo da cidade em que o culto da praia iniciou o processo de modernização no contexto local. Os segundos, a ausência de valores destacados no edifício que justifiquem seu tombamento. O empate nos argumentos de um e outro lado motivou o voto de Minerva do secretário de mobilidade e controle urbano do município, que decidiu pela demolição.

O caso reflete a condição da sociedade pernambucana, especialmente no Recife, onde uma classe dominante provinciana e conservadora pretende submeter a população aos interesses de determinados grupos, especialmente ligados ao mercado imobiliário. Isso gera a reação de movimentos sociais que lutam pelo direito à cidade. É o caso do grupo Direitos Urbanos, que a partir de determinados casos relacionados com intervenções polêmicas (o mais difundido e reconhecido é o Movimento Ocupe Estelita) ganharam difusão local, nacional e internacional. O caso do Caiçara é uma das tantas ações que envolvem o grupo, neste caso relacionada com o patrimônio.

Edifício Caiçara em demolição
Foto divulgação [Wikimedia Commons]

O desfecho deste caso significou a perda do exemplar, testemunha de um período da história da cidade. Porém, ganhou mais um episódio da luta de quem pretende um modelo de cidade diferente daquela que o capital pretende impor. O resultado desse conflito motivou a recente inclusão de novos imóveis na categoria “imóvel especial de preservação” (IEP) por parte da Prefeitura do Recife.

No campo da produção cinematográfica, o edifício Oceania – cenário do filme Aquarius – antecipa uma questão similar à do Caiçara, acerca da resistência aos ditados do mercado imobiliário. O filme explora os conflitos entre a história de vida da personagem e sua relação pessoal e social com o lugar, em contraposição ao mercado, que força a construção de uma cidade que reflete modelos de convivência que não são compartilhados por uma parte da sociedade. O filme remarca o contraste entre a sensibilidade da protagonista e a banalidade que impõe o mercado, assim como a brutalidade e hipocrisia do capitalismo. A configuração da cidade contemporânea, com sua condição de individualismo, exclusão, insegurança, egoísmo e violência propõe, por contraste, a reivindicação da sociabilidade perdida.

Cena do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça
Foto divulgação

O relato do filme está inspirado na história dos próprios moradores do Oceania, alguns resistentes às pressões de construtoras que pretendem demolir o edifício para realizar novos empreendimentos imobiliários.

Hoje se assiste, pelo menos no Recife, à valorização de arquiteturas que manifestam determinados tipos de convivência perdidos no modelo de cidade que a lógica do mercado impõe, isto é: o edifício excludente e defensivo, a configuração da rua com muros fechados, a mobilidade em automóvel, a desvalorização do espaço público, a degradação de calçadas e mobiliário urbano, o consumo em shoppings, em definitivo, a morte da cidade como lugar de convivência social nos espaços públicos (a mesma que Jane Jacobs reivindicava 60 anos atrás). Esse fenômeno transforma a sociabilidade perdida em patrimônio, refletida nos tipos arquitetônicos de um tempo condenado a sumir. Um tipo de patrimônio imaterial, que tem sua referência e sua presença física nos edifícios sobreviventes de outro tempo que viram emblemas, independente da valorização arquitetônica nas convenções acadêmicas.

No Recife, as reivindicações dos movimentos sociais, assim como a produção cinematográfica recente, tem colocado a questão urbana e as considerações acerca do patrimônio além da arquitetura. O debate transcende os critérios técnicos de rigor e estimula novos questionamentos acerca dos valores materiais e imateriais que merecem ser preservados.

sobre o autor

Roberto Ghione, arquiteto, é formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife PE.

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