Convidado pela Prefeitura de Bogotá, com apoio da ONU Habitat, participei do III Fórum Internacional de Espaços Públicos, realizado na capital colombiana em 2015. Uma feliz coincidência se deu entre minha palestra sobre Urbanismo Caminhável e a palestra do arquiteto português Pedro Gadanho, então curador de arquitetura do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York). Ele apresentou o Uneven Growth, exibição realizada pelo MoMA que discutiu como o urbanismo tático emergiu nas metrópoles na última década como alternativa para o desenvolvimento urbano em cidades com crescimento desigual, resultante do urbanismo neoliberal. Um dos projetos apresentados na ocasião pelo curador do MoMA, sem que eu soubesse, foi justamente uma experiência social urbana conhecida por Pedal Social, que eu havia desenvolvido em 2011 com outras organizações na cidade de São Paulo.
Esses projetos experimentais apresentados, e conhecidos agora pelo nome de urbanismo tático, criam na prática uma ruptura na lógica da governança urbana, orientada pelo crescimento econômico, e geralmente manifestam-se localmente como uma resposta a futuros urbanos alternativos baseados na justiça social, mas sem que plano diretor que orienta o desenvolvimento urbano seja ameaçado. Essas microintervenções começaram a aparecer por iniciativa da sociedade civil num momento em que se faz necessário promover maior coesão social nas cidades através de novas políticas públicas (“bottom line”, ou seja, oriundas da sociedade civil). Elas buscam discutir novos caminhos a partir de uma visão mais coletiva, com o intuito de estabelecer um diálogo entre poder público e sociedade, e corrigir os desvios resultantes das políticas econômicas orientadas pelas “leis do mercado”, ou pela política empresarial, que prega maior eficiência, controle de custos e aumento do lucro para produzir uma riqueza que tem levado à redução de empregos e da renda per capta e à piora dos índices de desenvolvimento humano de muitos países.
Ocorre que, como vivemos tempos de crise, o discurso do liberalismo clássico do início do século 20 sobre o livre mercado aflorou também nos dias atuais, como alternativa aos políticos corruptos e incompetentes, incapazes de estabelecer uma agenda de crescimento econômico com desenvolvimento social desvinculada de seus ganhos pessoais ou da luta pelo poder, cujo resultado quase sempre é o descontrole com a coisa pública e a corrupção, aumentando as desigualdades sociais promovidas pelo mercado. Esse discurso, que a princípio parece atender às reinvindicações da massa, mostra-se em pouco tempo ser apenas mais do mesmo. O economista Marcos Lisboa, ex-vice-presidente do Banco Itaú e atual presidente do Insper (Instituição de ensino e pesquisa), em reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo de 20 de março, trouxe um elemento importante para o debate. No texto, Lisboa argumenta que as empresas brasileiras tiveram participação na crise que aí está, aplaudiram a agenda econômica e receberam investimentos e isenções fiscais que pediram ao governo. O resultado? Nem a economia reagiu como deveria nem a vida do povo melhorou, os motivos são diversos e não caberia aqui fazer uma revisão. No entanto, é importante que fique claro que não se trata apenas do fracasso econômico, mas de um modelo econômico que tem no âmbito coletivo reflexos negativos para a cidade e em particular a perda de qualidade de vida das pessoas.
Não parece óbvio que para a economia melhorar não basta apenas ter melhores condições para que o mercado se desenvolva autorregulado e livre, mas criar políticas sociais para um mercado incapaz de resolver o crescimento desigual e também reduzir os danos cruéis da concentração de riqueza? Existe êxito econômico com pobreza pungente? Creio que será necessário reconhecer que a política econômica precisa ser capaz de atender aos problemas sociais que ela mesmo causa. Aqui fica evidente um grande paradoxo da economia neoliberal: se o mundo está gerando mais riqueza, por que então os países, sobretudo os em desenvolvimento, estão ficando mais pobres e desiguais? Isso indica que a produção de riqueza atual pode gerar mais miséria que prosperidade. Ocorre que a riqueza gerada no mundo é cada vez mais concentrada.
Evidentemente que o mundo não é perfeito, que a justiça não é perfeita, mas o ritmo econômico e os fluxos financeiros estão criando abismos sociais incontroláveis que eles não são capazes de resolver por si só. E os poderes públicos locais não dão conta de resolver esses problemas sociais provocados pelo mercado. O resultado são maiores custos para as cidades, refletidos quase sempre em miséria e fome em escala planetária. O mundo nunca produziu tanta riqueza, assim como nunca foi tão desigual. A distância que separa ricos e pobres está cada vez maior. Pouquíssimas pessoas no mundo estão ano após ano ficando cada vez mais bilionárias, ao passo que bilhões de pessoas nascem todos os dias à margem da sociedade e estão fadadas a ter uma vida cada vez mais pobre. Com a impossibilidade que temos de escolher entre nascer rico ou pobre, e com os problemas inerentes da economia global na escala macroeconômica, a economia dos países tem se revelado um problema sem solução na microescala das cidades, onde grande parte da população continua crescendo sem oportunidades e sem renda. Isso suscita um debate urgente sobre qual seria o papel do mercado no contexto urbano, ou seja, qual a função das empresas na agenda do desenvolvimento urbano e social das cidades. Não se trata apenas de um problema de Estado, mas também de mercado – com impactos diretos nas cidades. Aqui abro um parêntese sobre a política adotada por novos prefeitos e gestores públicos que não se reconhecem como políticos e agentes sociais, mas como gestores oriundos da iniciativa privada, afastando de si um problema que é de todos, confundindo a noção que temos sobre a função social do Estado com a função econômica do mercado, potencializando a retórica antiestadista, de estado mínimo, que na prática diminui significativamente sua capacidade de enfrentar os desafios impostos pelo neoliberalismo e de se ajustar aos problemas. A política e a justiça neoliberal não reconhecem a cidade como heterogênea, não reconhecem o diferente. Pelo contrário, tendem a tratar de forma homogênea todas as coisas e pessoas, deixando de tratar as desigualdades de forma equitativa, o que potencializa os problemas sociais.
Mas, afinal, o mercado deveria ter alguma função social? Ao que parece seria impossível resolver os problemas da cidade com os mesmos mecanismos que geram os problemas sociais das cidades. É pouco provável que doações paupérrimas de empresas à prefeitura, promovidas por gestores neoliberais ambiciosos, ou mesmo as privatizações, que aproximam a função do estado à da iniciativa privada, sejam capazes de resolver os problemas sociais que esses próprios mecanismos causam. Talvez, o máximo que consigam seja ampliar os problemas já presentes. Ao que parece, estamos deixando de desenvolver políticas públicas mais estruturantes ou um sistema de governança urbana que deveria estabelecer um equilíbrio duradouro entre economia, cidadania, responsabilidade e desenvolvimento social e urbano para nos lançarmos num jogo de aparências com finalidades meramente eleitoreiras. As cidades estão pagando sozinhas um alto preço sobre os problemas sociais causados pelo modelo econômico. ‘É o que temos’, diria um cidadão mais resignado.
Na escala urbana, o urbanismo neoliberal funciona como um indutor de desenvolvimento do mercado imobiliário, orientando a política urbana para estender a lógica dos espaços privados ao tecido social urbano nos mesmos moldes e mecanismos de consumo do mercado, coordenando a vida coletiva da cidade através da óptica do mercado consumidor, promovendo o fechamento de espaços urbanos que não atendem à lógica da iniciativa privada, onde tudo tem um preço e é preciso obter lucro, indicadores e índices estatísticos. Por essa perspectiva, os espaços urbanos tendem a perder sua função de áreas de permanência e convívio, os usos coletivos são sistematicamente proibidos ou negociados e muitas vezes nem sequer são toleráveis, as parcerias com empresas são sempre através de contrapartidas de exposição de marca, tratando cidadãos como consumidores – que já não se reconhecem como membros da coletividade, desconhecem seu direito à cidade e a importância dos espaços públicos na integração social e no funcionamento saudável das cidades.
Como as cidades (sociedade e empresas), com seu tamanho e importância, poderiam gerar riqueza e fazer a distribuição dessa riqueza de forma mais equitativa, reduzindo o abismo social entre as pessoas? É preciso discutir novas saídas; velhas fórmulas não estão funcionando. Nessa equação, falta claramente uma variável importante: a participação da sociedade civil para unir os elos entre empresas e governos. Dessa forma as empresas poderiam participar mais da agenda urbana pública, de forma a tornar a relação entre empresas e governos mais transparente. As empresas não apenas poderiam continuar doando recursos para a prefeitura como também atuar através de regras claras, podendo inclusive financiar microprojetos urbanos que o urbanismo neoliberal não consegue enxergar, mas que são visíveis de dentro da sociedade. Ao estabelecer elos com a sociedade civil por meio de parcerias que promovam equidade social, as empresas poderiam contribuir mais para sanar os problemas locais, sendo orientadas não apenas pelo crescimento econômico, mas pela justiça social. Caberia ao poder público promover políticas que viessem de baixo para cima, empoderando a sociedade e o coletivismo e permitindo que a sociedade faça aquilo que ela como poder público é incapaz de fazer, cabendo a si o papel de articulador, mediador, que é fundamental na regulação e na moderação dos debates inerentes ao estado democrático. Qualquer política que não reduz a distância entre pobres e ricos está fadada ao fracasso. Assim, o poder público poderia se concentrar nos problemas macroeconômicos, que impactam a microeconomia das cidades, minimizando seus efeitos sobre a população menos favorecida, e fazer com que a sociedade civil se envolva mais com os problemas do cotidiano, que não por acaso recebeu o nome de cidadania.
sobre o autor
Lincoln Paiva é autor do blog Mobilidade Sustentável, membro da SLoCat (Sustainable Low Carbon Transport), coordenada pelo Departamento desenvolvimento socioeconômico da ONU. É também membro da Cities-for-Mobility, rede mundial de mobilidade urbana coordenada pela Cidade de Stuttgart, e do GT de Meio Ambiente e Mobilidade do Movimento Nossa São Paulo. É sócio-diretor do escritório de Consultoria de Mobilidade Sustentável Green Mobility e idealizador do Projeto MelhorAr de Mobilidade Sustentável. É mestrando do programa de pós-graduação da FAU Mackenzie.
legenda
Projeto Pedal Social
Foto Instituto Brasis
Website Cidades Sustentáveis