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Luiz Fernando Janot convoca a população carioca – na figura das organizações sociais, associações de moradores e outros interessados – a reverter a situação caótica do Rio de Janeiro, em busca da recuperação da urbanidade perdida.
JANOT, Luiz Fernando. Recuperando a urbanidade perdida. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 209.04, Vitruvius, dez. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.209/6813>.
A cada fim do ano um novo dilema se apresenta entre o passado e o futuro. O filósofo Hegel chamava de hiato do ser o momento de transição em que o indivíduo deixa de ser o que é para vir a ser o que ainda não é. Simbolicamente, esse pensamento representa dialeticamente o alvorecer de uma nova vida. Se para os jovens o futuro significa a perspectiva de novos horizontes, para os mais velhos é comum ver as incertezas aprisioná-los no passado.
Neste momento, nós brasileiros, não temos uma percepção clara do nosso futuro. A imagem que desponta no horizonte é difusa e confunde o nosso olhar. Todavia, essa falta de precisão não é motivo para justificar paixões ou medos delirantes relacionados a modelos políticos ultrapassados que não voltarão jamais. Só existe vida no futuro, apesar de a morte também estar por lá à espera de todos nós.
Fazer prevalecer os direitos humanos e o bem-estar social, proteger o meio ambiente e o patrimônio histórico, promover a ajuda humanitária em casos de calamidades públicas e conflitos armados, assegurar a paz mundial, foram os princípios fundamentais para a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945, após a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, a solidariedade entre as nações era vista como um bem maior pela humanidade.
Nos anos seguintes, assistiu-se a União Soviética expandir suas fronteiras e consolidar o regime socialista centralizado, enquanto os Estados Unidos se empenhava na defesa da livre iniciativa e do capitalismo internacional. Eram tempos de Guerra Fria e a política mundial adquiria um status de embate radical entre essas duas correntes ideologicamente antagônicas.
Enquanto os conflitos se multiplicavam pelo mundo afora, eu, como a maioria dos garotos da minha geração, estava mais interessado em ir à praia ou jogar futebol na rua com os meninos da vizinhança. Nessa época, morava com meus pais e avós em um grande casarão na então pacata Rua Pompeu Loureiro, em Copacabana. Vale destacar que o meu time geralmente levava vantagem graças ao reforço de dois meninos da extinta favela da Catacumba que atravessavam o Corte do Cantagalo para jogar bola conosco. Lembro-me bem de quando chegava a hora do almoço, minha avó convidava a todos para comer lá em casa. Estou certo de que esse convívio espontâneo com pessoas de classes sociais distintas em muito me ajudou a observar o mundo por uma ótica mais abrangente e não sectária.
Com o passar do tempo, Copacabana cresceu e se transformou. Hoje ela abriga uma singular diversidade econômica, social e cultural. Para os que acreditam que a cidade seja o símbolo mais expressivo da existência humana e o principal agregador da população, o exemplo desse bairro não pode ser ignorado. O espírito alegre e festeiro das ruas exige uma compreensão específica dos seus significados e da cultura carioca.
Todavia, o convívio com essas camadas da população tem sido difícil para algumas pessoas infectadas pelo preconceito social. Principalmente aquelas que não querem encarar a nova realidade do mundo contemporâneo. Considero uma ingenuidade elas imaginarem que as multidões permaneceriam confinadas em seus bairros distantes, deixando de desfrutar das praias, dos parques e de outros locais aprazíveis, dentro dos limites das suas possibilidades.
Nada justifica, no entanto, a omissão do poder público para coibir os excessos decorrentes das grandes aglomerações. Especialmente, quando se trata do estacionamento irregular de veículos, do lixo jogado sobre as calçadas, da presença de gente urinando em árvores, postes e muros, e do barulho intermitente até altas horas da noite. É bom que se diga que transgressões dessa natureza são comuns entre pessoas abastadas que se vangloriam da impunidade para fazer na cidade o que bem entendem.
O Rio não merece o estigma de ser uma cidade sem lei e relegada ao abandono. Diz o velho provérbio que não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. Portanto, chegou a hora de nos empenharmos para reverter essa triste realidade. Sabemos que o comportamento humano é um processo civilizatório e que exige aperfeiçoamento constante.
Nesse sentido, os festejos de fim de ano poderão vir a ser uma boa oportunidade para que o governo, as organizações sociais, as associações de moradores e outros interessados iniciem uma ampla campanha de conscientização coletiva para recuperar a urbanidade perdida. O que não podemos mais é permanecer de braços cruzados assistindo a banda passar. Que essa atitude resulte em um Feliz Ano Novo para toda a população carioca.
Os atos de vandalismo premeditados e praticados por grupos de torcedores do Flamengo, antes e depois do jogo de quarta feira passada no Maracanã, representam um retrocesso nas tentativas de pacificação da cidade. Atitudes desse tipo devem ser reprimidas com vigor e os culpados punidos rigorosamente.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. Recuperando a urbanidade perdida. O Globo, Rio de Janeiro, 16 dez. 2017.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.