In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.
português
Por meio da observação dos casarões de Higienópolis, buscou-se relacionar como a manutenção desta tipologia reflete-se ainda na paisagem urbana do bairro e está associada diretamente ao resgate de memórias históricas e afetivas.
english
Through the observation of the mansions of Higienópolis, it was tried to relate how the maintenance of this typology is still reflected in the neighborhood's urban landscape and is directly associated to the rescue of historical and affective memories.
español
Por medio de la observación de los caserones de Higienópolis, se buscó relacionar cómo el mantenimiento de esta tipología se refleja aún en el paisaje urbano del barrio y está asociada directamente al rescate de memorias históricas y afectivas.
GAUDENCIO, Mahayana Nava de Paiva; CARVALHO, Thâmara Talita Costa de. Higienópolis: casarões e memória. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 215.01, Vitruvius, jun. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.215/7007>.
O papel principal da memória é conservar não simplesmente as ideias, mas a sua ordem e a sua posição.
David Hume
Todas as pessoas são imersas em memórias. A memória ocorre quando, a partir de um passado conhecido, se é tomado por sentimentos e percepções que promovem sensações de resgate. É sentimento de pertencimento em relação a um tempo, “nada há no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” (1).
“A grosso modo chamamos de memória a capacidade que os seres vivos têm de adquirir, armazenar e evocar informações” (2), no entanto, optou-se por uma definição de viés fenomenológico, onde, compara-se “memórias com a luz das estrelas, que ainda brilham na noite quando já não existem mais” (3). Assim, define-se memória como tudo aquilo que no presente “cheira” ao passado e que pode levar ao futuro.
Por meio da observação dos casarões de Higienópolis, buscou-se relacionar como a manutenção desta tipologia reflete-se ainda na paisagem urbana do bairro e está associada diretamente ao resgate de memórias históricas e afetivas.
Os casarões, também conhecidos como palacetes paulistanos, possuem de acordo com Carlos Lemos, Nestor Goulart Reis Filho e Maria Cecília Naclério Homem (4), as seguintes características: residências unifamiliares do ápice da elite cafeeira (final do século 18 e início do século 19); implantação no lote dotada de recuos – frontais e (ou) laterais; presença de jardins; porão alto; janelas de vidro com ou sem vitrais; pluralidade dos espaços no programa habitacional (com três grandes zonas: estar, serviços e íntima); área de serviço e edículas nos fundos; condições mínimas dos sistemas hidráulicos e elétricos; e por fim, extinção ou diminuição considerável do número de alcovas.
Sabe-se que esses palacetes não são exemplares únicos de Higienópolis, uma vez que essa tipologia teve endereços como o Centro e a República, por exemplo. No entanto, a escolha do bairro se dá em função da história de sua ocupação e consolidação de uso residencial, bem como da variedade das residências que ali se estabeleceram, na qual os casarões são resultantes de uma “transposição do ‘morar à francesa’, ao qual se incorporavam elementos da casa paulistana preexistente” (5), sendo assim uma continuidade da forma de morar em São Paulo de tempos remotos.
Por que a casa como fonte de memória? Casas contam histórias “de” e “para” pessoas que vivem ou visitam determinados locais, uma vez que se considera ela uma identificação do sujeito no espaço e sua referência primeira na cidade. Como coloca Gaston Bachelard:
“A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano” (6).
A escolha dessa tipologia perpassa pela importância do momento em que foram construídas e por entender que ao longo do tempo muitas delas estão desaparecendo, levando a circunstâncias onde o meio e a imagem da cidade já não serão gatilhos para despertar memórias de um passado arquitetônico.
“Conhecer a memória de uma cidade é a maneira mais prazerosa de adentrar em sua história. Alguns costumes e edificações são testemunhos do desenvolvimento que permaneceu na memória por gerações. São dessas memórias afetivas que a essência da cidade se alimenta” (7).
Revisitar memória é, portanto, proporcionar reflexão entre passado, presente e futuro. Com a demolição dos casarões, gera-se uma nova identidade ao bairro, que acaba por perder as características do morar no sentido mais tradicional (casarões) para dar origem a nova forma (edifícios). Faz-se então necessária a manutenção dos exemplares ainda presentes, mesmo que com seus usos modificados, para possibilitar que a história do bairro e da formação da cidade sejam frequentemente revisitadas, uma vez que “as pessoas se relacionam com os lugares por meio da criação de significados e sentidos dados aos objetos concretos e simbólicos que compõem esses lugares” (8).
Não se tem intenção de discutir a relação casa – memória – patrimonialização. Entende-se que existem exemplares de casas que são detentoras de atributos arquitetônicos que marcaram uma época e que merecem seu devido reconhecimento e preservação, e isto independe de ser considerado um bem patrimonial a ser tombado. No entanto, o que se busca aqui é uma relação mais afetiva entre a casa e a cidade enquanto memória simbólica.
Enquanto as transformações no campo da matéria podem ser facilmente visualizadas num recorte cronológico de 50 anos, o mesmo não acontece quando falamos em habitar, uma vez que transformações nos modos de morar ocorrem mais lentamente (9).
Ao observar esse processo de transformação, seja de elementos arquitetônicos ou de usos, é possível observar a mudança no que se diz respeito à ocupação e aproveitamento do solo, transitoriedade entre espaços residenciais e comerciais e processo de verticalização indicando um cuidado (ou não) com a preservação da memória urbana e afetiva. Logo, a casa é um elemento material que traduz hábitos, comportamentos e pensamentos de uma época.
Como descrito, a tipologia habitacional estudada é uma comprovação material de aspectos históricos importantes para a história de São Paulo e de Higienópolis. Em sua arquitetura é possível observar questões materiais e simbólicas que foram incorporadas ao modo de morar na cidade.
“Para as pessoas e nos almanaques da cidade, permanecem como elementos típicos da paisagem de Higienópolis os grandes palacetes, em estilos como o francês, o gótico, o chalet, o art noveau, o neoclássico e o colonial, cercada por jardins e parques tratados, rodeados de muros com gradis sinuosos, que de algum modo ficaram na lembrança, no subconsciente de muitos” (10).
Com isso, mesmo com mudanças na paisagem do bairro – verticalização e aumento de estabelecimentos comerciais – se percebe como a preservação de medidas arquitetônicas e urbanísticas tornaram-se referência – e, por isso, memória – do modo de habitar para esse bairro e para a cidade de São Paulo, mantendo-se as devidas possibilidades em decorrência das transformações construtivas, especulação imobiliária e territorial.
Para que uma arquitetura sobreviva ao tempo é necessário vida, uso, manutenção. Deixar essas habitações a mercê do tempo, é por em risco uma arquitetura de representação significante para a história de São Paulo, bem como para a sua memória afetiva.
Deseja-se que os palacetes sobrevivam as ações do tempo e do homem; que continuem, mesmo que incorporados às novas demandas da cidade, existindo; que não se tornem mais espaços em branco; e que memórias possam de alguma forma ser preservados ou resgatadas a partir deles.
notas
1
MARSHALL, J. C. Sensation and semantics. Nature, 1988, p. 378.
2
MOURÃO JUNIOR, Carlos Alberto; FARIA, Nicole Costa. Memória. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 28, n. 4, dez. 2015, p. 780. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722015000400017&lng=en&nrm=iso>.
3
CASTELLANO, Claudio. Apud IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Estudos Avançados, São Paulo, v. 3, n. 6, ago. 1989, p. 109. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141989000200006&lng=pt&nrm=iso>.
4
LEMOS, Carlos A. C. História da casa brasileira. São Paulo, Contexto, 1989; REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1970; HOMEM, Maria Cecília Naclério. O palacete paulistano e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1867-1918. 2ª edição. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010; HOMEM, Maria Cecília Naclério. Higienópolis: grandeza e decadência de um bairro paulistano. Coleção História dos Bairros de São Paulo, n. 17. São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, Divisão do Arquivo Histórico, 1980.
5
HOMEM, Maria Cecília Naclério. O palacete paulistano e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1867-1918 (op. cit.), p. 14.
6
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fomes, 1996, p. 201.
7
AZEVEDO, Bárbara Luíza Poffo de. Bagagens afetivas. Ambiência e a permanência no centro da cidade. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 178.03, Vitruvius, maio 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.178/5503>.
8
GONÇALVES, Teresinha Maria. Inhabiting: the house as a contingency of human condition. Revista INVI, Santiago, v. 29, n. 80, mai. 2014, p. 11. Disponível em: <www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-83582014000100004&lng=en&nrm=iso>.
9
PALLASMAA, Juhani. Habitar. Barcelona, Gustavo Gili, 2017.
10
MACEDO, Silvio Soares. Higienópolis e arredores: processos de mutação da paisagem urbana. 2ª ed. São Paulo, Edusp, 2012, p. 53.
sobre as autoras
Mahayana Nava de Paiva Gaudencio e Thâmara Talita Costa de Carvalho são arquitetas e mestrandas no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.