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português
As transformações territoriais decorrentes do modelo Estado do Bem Estar Social trouxeram consequências na requalificação das cidades. Analisa-se as condições e resultados dessa política urbana tendo como exemplo o caso de Canary Wharf, Londres.
english
The territorial transformations resulting from the Welfare State model have had consequences in the requalification of the cities. We will analyze the conditions and results of this urban policy taking as an example the case of Canary Wharf, London.
español
Las transformaciones territoriales derivadas del modelo Estado del Proveedor trajeron consecuencias en la recalificación de las ciudades. Analizamos las condiciones y resultados de esta política urbana, como el caso de Canary Wharf, London.
LANZI, Ana Maria Eder; OSSANI, Taís. London Docklands. Os limites do empreendedorismo urbano como estratégia neoliberal de promoção do território. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 215.03, Vitruvius, jun. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.215/7017>.
O Welfare State, ou Estado do Bem Estar Social, surge como um novo modelo de regulamentação econômica fundamentado nos ideais keynesianos, para mitigar as necessidades da sociedade em face da importante crise financeira capitalista de 1929, onde o subconsumo não acompanhou a produção, colocando em cheque os ideais liberais que apregoavam a não intervenção do Estado e a livre atuação do capital privado. A complexa situação política, social e econômica posterior à 2ª Guerra Mundial ajudou a estabelecer as pautas do Welfare State, não sem embates e contradições. No entanto, a crescente sobrecarga tributária necessária à sua manutenção, aliada à crise do petróleo de 1973, trouxeram novamente à discussão a possibilidade de um modelo mais adequado de regulamentação política e econômica.
É nesse contexto que ganha força a chamada política Neoliberal, que propunha novamente a austeridade pública em relação aos gastos sociais e flexibilização dessa mesma austeridade em relação à implementação de grandes projetos, investimentos em parceria público-privada e (des) regulamentação das atividades e da legislação de proteção à mão de obra.
A partir da década de 1980 se inicia uma aposta na expansão do capital privado como base para a atração de investimentos urbanos. Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Inglaterra, entre outros, atuarão como agentes fundamentais na implementação dessas políticas. É nesse contexto que o empreendedorismo urbano encontrará espaço para atuar nas áreas urbanas desvalorizadas, alegando como objetivo a promoção das cidades.
Rose Compans (1) elucida discussões importantes acerca desse momento. Em ensaio sobre os diferentes modos de regulamentação, a autora analisa como as parcerias público-privadas acirraram o cenário de competitividade entre as cidades. Nesse contexto, o papel articulador do poder local passa a ter como objetivo equilibrar os interesses do capital privado às necessidades e anseios da “população” – ou de sua representação governamental. O Planejamento Estratégico e a Parceria Público-Privada, as chamadas “PPP’s” se apresentam como instrumentos de promoção dessa nova concepção de transformação do solo urbano e acumulação de capital, que supostamente traria importantes melhorias e ajudaria a superar as crises.
No entanto, ao analisar os acontecimentos relacionados com a criação e atividades da London Docklands, Compans (1) salienta que esses instrumentos não estão livres da histórica assimétrica entre as forças do capital privado e público, na medida em que, para o poder privado, a garantia da acumulação de capital é crucial como forma de compensação pelo investimento realizado. Nesse processo, questões relevantes para a maioria da população – como a imagem que os moradores conformam sobre a paisagem urbana, forjando valores de pertencimento – vai se transformar e praticamente se perder, em face da competitividade urbana e da globalização recorrente. Francesc Muñoz (2) conceitua de forma pejorativa como essa nova imagem das cidades poderia ser chamada de “Urbanalización”: o caráter local e histórico se rende à paisagem midiática, facilmente substituída e reapresentada como um território genérico que não reflete questões culturais e sociais locais, pois tem por único objetivo tornar a cidade global e competitiva.
Estudo de caso: London Docklands
Desde pelo menos os anos 1930 até o governo de Margareth Thatcher, o território londrino passa a se transformar conforme o controle e regulamentação do poder público. A lei de uso e ocupação do solo, chamada de Town and Country Planning Act, atuou na produção do solo urbano de Londres desde 1947, sempre mantendo um caráter restritivo em relação à mudanças e à atuação de outros agentes, diferentes do poder público, na produção do território. Iniciado em 1979, o governo de Margareth Thatcher, considerada uma das precursoras do pensamento e aplicação dos ideais neoliberais, muda completamente esse cenário. O território londrino é apropriado por uma política de empreendedorismo, tendo como seu principal agente o poder privado.
As políticas urbanas praticadas por Thatcher colocavam o poder público como um agente promotor de infraestrutura e de incentivos fiscais para alavancar os investimentos do capital privado. Dentre algumas das políticas implementadas estão o Urban Development Grant Programme, que consolidava esse investimento inicial pelo poder publico para encorajar o investimento privado e as Enterprise Zones que demarcavam territórios passiveis de intervenção visando uma requalificação. Segundo Tallon (3) nessas zonas o capital privado obtinha diversos incentivos como, por exemplo, 100% de subsídio para despesas em relação a construção ou expansão de edifícios comerciais e industriais.
Mas foram nas Corporações de Desenvolvimento, as chamadas Urban Development Corporation, que o conceito de empresariamento urbano se representou de maneira mais aguda. Com a formação dessas instituições Thatcher delegava ao capital privado as frentes para gestão e produção das áreas urbanas em requalificação (Enterprize Zones), garantindo-lhe inclusive o próprio papel antes restrito ao poder público, ou ownerland, de desapropriar e comercializar as áreas que seriam transformadas.
London Docklands foi uma dessas áreas. Situada a leste da City, centro financeiro tradicional londrino, a London Docklands compreende uma área de 2.200 hectares, dividida em: Isle Of Dogs, Surrey Docks e Royal Docks , conforme mapa abaixo, presente em verbete da Enciclopédia Britânica (4). Este artigo aborda o caso da região de Isle Of Dogs e os projetos direcionados à requalificação do perímetro de Canary Wharf.
O desenvolvimento de London Docklands começa a partir do século 18 e atinge seu ponto alto, como maior porto do mundo, no século 19. Nesse período, de grande avanço industrial, o transporte fluvial dominava o meio de circulação das mercadorias e construía um território periférico de moradia operária, de modo a suprir as demandas e minimizar os custos. De acordo com o site da London Docklands Corporation (5) em 1930 eram transportadas 35 mil toneladas de produtos ao ano, e dos 100 mil empregados, 30 mil residiam no local.
O processo de conteinerização das mercadorias foi, devido a sua rápida adoção, uma das principais causas da obsolescência dos antigos portos em todo o mundo. Grandes navios transportando cargas de mercadorias foram substituídos por embarcações ainda maiores, comportando mais contêineres. Muitos dos antigos portos não conseguiram se adequar, ou se expandir para novas áreas, de maneira a cumprir os requisitos de espaços necessários à armazenagem dos produtos e trafego dos modais.
Nesse processo o porto de Londres ia perdendo sua importância, e a sua região, antes evidenciada por sua efervescente produção, entrava em descrédito e evasão. O National Audit Office (6) calcula que na década de 1970 a área da London Docklands apresentava uma taxa de desemprego superior a 20% e os salários pagos por atividades comerciais ainda existentes na região eram 60% menores dos que os praticados na City, confirmando o processo de desvalia daquele território.
No início da década de 1970 surgiram diversas propostas com o objetivo de requalificar a região, mas a efetiva transformação da área ocorreu no governo de Margareth Thatcher, na década de 1980. A região de Isle of Dogs compreendia uma das Enterprize Zones demarcadas por Thatcher e, mediante a coordenação de uma Development Corporation específica para a região – a London Docklands Development Corporation – LDDC (7) –, o processo de transformação local se inicia. Canary Wharf, parte da área de Isle of Dogs, foi objeto de um projeto desenvolvido pelo urbanistas Gordon Cullen e David Goslin (8). A proposta tomava como base as características do lugar e das percepções visuais, parâmetros recorrentes nos trabalhos dos autores. Porém, o empreendedor da LDDC tinha como objetivo principal extrair a maior quantidade de lucro de seus investimentos; não reconheceu no projeto sua ambição e o arquivou.
Em 1987 um novo projeto foi desenvolvido para a Canary Wharf, buscando atender os parâmetros ambicionados pela LDDC. A Olympic & York Properties, maior construtora do mundo naquela época, juntamente com o escritório SOM (Skidmore, Owings e Merrill), propôs a ocupação dos 29 hectares da região com a construção de escritórios, totalizando algo em torno de 1 milhão de m², ocupando inclusive parte das águas do dique existente. Francesc Muñoz (9) aponta o caráter genérico do projeto realizado pelo escritório SOM em parceria com a Olympia & York onde, o legado local, histórico e cultural deu lugar a uma área com características genéricas, de caráter globalizado e facilmente reproduzidas, como pode ser visto no projeto realizado para o World Financial Center em Nova York, também erguido pela mesma construtora, a Olympic & York Properties. Visando máximo lucro, o objetivo das corporações, o projeto alterou o valor das propriedades ao redor: estima-se que um imóvel de dois dormitórios que, inicialmente valia 40 mil libras, passou a 200 mil libras.
No entanto, as expectativas iniciais de sucesso do projeto não foram alcançadas. Em 1992, a região contava com 14% de ocupação, 57% de área livre e ainda 29% a construir, demonstrando os limites desse tipo de exploração pelo capital imobiliário. Com a recessão dos anos 1990, a Olympic & York Properties contabilizou uma dívida de 11 bilhões, culminando na falência da construtora.
Resultados
Como consequência da valorização do território visando obter interesse nos investimentos, ocorreu em paralelo um importante processo gentrificatório. Os moradores da região, na maioria de perfil familiar, não conseguiram pagar os novos custos de moradia e não se encaixavam no novo perfil profissional mais qualificado solicitado pelo empreendimento. O perfil da população local foi sendo substituído por jovens casais e executivos, mão de obra que supria a demanda de trabalho e ocupava a moradia local. Além disso, problemas relacionados ao acesso e transporte à região, agora muito mais densa, endividaram os cofres públicos. O governo foi responsável por 80% dos investimentos na nova linha de metrô que atendeu à região, a Jubilee.
Conforme esclarece Rose Compans (10), para que o empreendimento urbano seja realizado de forma efetiva para todos, deve englobar não apenas os interesses da iniciativa privada, mas compreender as características da região e os anseios da população moradora, de forma a promover tanto o lucro quanto o desenvolvimento local. Francesc Muñoz (11) também evidencia o papel fundamental da paisagem como elemento em consonância com a cultura local, como a população que reconhece nela suas características, dela se apropriando e a tornando diferente das demais partes da cidade.
O projeto desenvolvido para Canary Wharf, em Isle of Dogs, foi resultado de uma política neoliberal que tinha como objetivo a requalificação de uma região em decadência. No entanto, por não considerar as questões locais e não envolver a população nas intervenções propostas pelo capital privado, desencadeou consequências que fizeram a região perder sua identidade original. E finalmente, tampouco atendeu aos objetivos de melhoria econômica para toda a população. A área entrou precocemente em decadência e levou alguns anos para se reerguer. Hoje, embora conte com atividade turística em ascensão, segue não refletindo a cultura local: boa parte dos ingleses não a reconhece como parte integrante do território londrino.
notas
1
COMPANS, Rose. Empreendedorismo urbano: entre o discurso e a prática. São Paulo, Editora Unesp, 2004.
2
MUÑOZ, Francesc. Urbanalización: paisajes comunes, lugares globales. Barcelona, Gustavo Gili, 2008.
3
TALLON, Andrew. Urban Regeneration. Nova York, Routledge, 2013.
4
THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. London Docklands. Area, London, United Kingdom <www.britannica.com/place/London-Docklands>.
5
LDDC. The LDDC History Pages. The London Docklands Development Corporation 1981-1998 <www.lddc-history.org.uk/index.html>.
6
NAO. Rolling out Universal Credit. Londres, National Audit Office <https://www.nao.org.uk>.
7
LDDC. Op. cit.
8
GOSLING, David. Gordon Cullen: visions of urban design. Londres, Academy Group, 1996.
9
MUÑOZ, Francesc. Op. cit.
10
COMPANS, Rose. Op. cit.
11
MUÑOZ, Francesc. Op. cit.
sobre as autoras
Ana Maria Eder Lanzi é arquiteta (FAU Mackenzie, 2000) e mestranda na mesma instituição. Atua como arquiteta na Fundação São Paulo, mantenedora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sendo responsável pela infraestrutura da Instituição.
Taís de Carvalho Ossani é arquiteta e especialista em Arquitetura, Cidade e Sustentabilidade (Belas Artes de São Paulo, 2013 e 2015), mestre e doutoranda (FAU Mackenzie). Tem experiência profissional na área de Projetos Arquitetônicos e colabora como voluntária na secretaria do Núcleo Docomomo/São Paulo.