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português
Diante do desencorajamento da moradia no centro do Recife, a ocupação Marielle Franco do MTST suscita o debate sobre essa questão, ante a especulação imobiliária e a instalação de empresas de tecnologia na área, sob os olhos do poder público municipal.
english
In the face of disincentives to housing in the center of Recife, the MTST Marielle Franco occupation raises the debate on this issue in a context of real estate speculation and the installation of technology companies in the area.
español
Ante la desincentivación a la vivienda en el centro de Recife, la ocupación Marielle Franco del MTST suscita el debate sobre esta cuestión, ante la especulación inmobiliaria y la instalación de empresas de tecnología en el área.
NASCIMENTO, Bartolomeu George de Souza. Santo Antônio rogai por nós. Sobre o debate sobre moradia social na área central de Recife. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 217.03, Vitruvius, ago. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.217/7081>.
O centro do Recife, assim como ocorreu com outras metrópoles brasileiras, sofreu um processo de esvaziamento, retirando dele grande número de moradores. A expansão horizontal urbana para áreas periféricas e a criação de novas centralidades na cidade deixou um rastro de edifícios ociosos, deteriorados e abandonados. A partir de um passeio rápido pelos bairros centrais, pode-se perceber exemplos diversos de imóveis nessas condições. Um estudo realizado por um grupo de organizações identificou mais de 40 edificações desocupadas ou com menos da metade da área construída em uso apenas em Santo Antônio (1), um dos bairros do centro. São prédios que estão nessa situação há anos e anos.
Outro aspecto importante a ser ressaltado é a dívida tributária dos imóveis localizados na região central. O chamado centro expandido compreende 11 bairros e a inadimplência relativa ao pagamento do IPTU levantada é de quase R$ 350 milhões (2), com parte dessa dívida concentrada no bairro de Santo Antônio. Combina-se então o abandono da edificação com o não pagamento de tributos, a ausência de função social com o prejuízo financeiro aos cofres públicos.
Segundo a Fundação João Pinheiro, em 2015, a Região Metropolitana do Recife possuía um déficit habitacional de cerca de 133 mil unidades. Este número engloba quatro categorias: habitação precária, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel e adensamento excessivo de domicílios alugados. Por outro lado, o mesmo estudo aponta aproximadamente 140 mil domicílios vagos ou em construção (3). Cruzando-se os dois dados, pode-se dizer que o déficit habitacional é menor que o número de imóveis vazios. É a velha máxima: tanta gente sem casa e tanta casa sem gente.
Enquanto a cidade consolida, sem sinal de reversão dessa lógica, sua expansão para áreas onde não há serviços públicos nem infraestrutura consolidada ou existem de modo deficitário, a área central, dotada de tais atributos, segue esvaziada. A quantidade expressiva de edifícios vazios poderia abrigar com condições dignas centenas de pessoas que seguem sem ter onde morar ou vivem sob condições precárias. Uma realidade perversa cuja origem remonta a várias décadas atrás e foi denunciada em uma pichação feita há alguns anos no alto da fachada de um dos maiores edifícios do bairro: o povo quer casa. Substituída tempos depois por outra: o povo continua sem casa. Apesar dos problemas sociais e urbanos afetarem intensamente as pessoas de renda mais baixa, a população toda amarga seus efeitos, refletidos na própria degradação da cidade.
É nesse contexto que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto realiza sua primeira ocupação de edificação verticalizada. No último dia 20 de março, o MTST fez uma jornada de ocupações pelo país. No Recife, o edifício SulAmérica, alcunha derivada da empresa que funcionou durante vários anos nele, foi o escolhido: um imóvel de oito pavimentos, em que apenas loja e sobreloja tinham uso, situado na esquina da Praça da Independência com a Avenida Dantas Barreto, em frente à Igreja Matriz de Santo Antônio, que dá nome ao bairro. Erguido na década de 1930, encontrava-se esvaziado há pelo menos dez anos e acumula dívidas de cerca de R$ 1,5 milhão, a quase totalidade desse montante diz respeito a débitos de IPTU. Aproximadamente 200 famílias (4) adentraram o imóvel, fazendo surgir a ocupação Marielle Franco, em homenagem à vereadora carioca assinada dias antes de deflagrada a tomada da edificação. Não é só no nome que a figura feminina está presente, as mulheres são a maioria dos ocupantes nesta e em outras ocupações, são a maior parcela da base do movimento.
A escolha do edifício não foi aleatória, muito pelo contrário. Ocupar um prédio vazio há anos e com uma dívida tributária milionária foi o meio encontrado de mostrar o que essa forma de produção da cidade provoca. De uma só vez, são expostas várias feridas. O abandono das edificações, a imensa dívida acumulada pelos imóveis desocupados, a especulação imobiliária e o encorajamento implícito para manutenção do quadro que a inércia do poder público insinua. Falando em poder público, revela-se também a incapacidade que este possui em atuar na contenção das consequências obscenas advindos dessa conjuntura, em cobrar e reaver o montante devido pelos proprietários, em proteger o patrimônio arquitetônico edificado da cidade (5), em importunar o direito à propriedade enquanto direito absoluto, caráter que não possui se não há efetivação da sua função social. Já se vão quase duas décadas de existência do Estatuto da Cidade e sequer os instrumentos urbanísticos previstos na lei foram regulamentados em sua totalidade, o que poderia ao menos mitigar os efeitos perversos sobre a população e a metrópole.
Destrinchando os dados levantados pela Fundação João Pinheiro referentes à Região Metropolitana do Recife, encontramos os seguintes números: 3.854 habitações precárias (locais e imóveis improvisados usados como moradia mesmo não sendo essa sua função original, a exemplo de pontes e viadutos); 41.493 unidades com coabitação familiar (mais de uma família morando em uma mesma unidade habitacional); 82.043 unidades em situação de ônus excessivo de aluguel (quando mais de 30% da renda familiar é comprometida com o aluguel); e 5.932 habitações com adensamento excessivo de moradores – imóveis alugados cujo número médio de moradores por dormitório é superior a três pessoas (6). São pessoas nessa situação a base que compõe os movimentos sociais de moradia, uma base majoritariamente feminina.
A quantidade de pessoas mobilizadas na ocupação e a dimensão do MTST reafirmam o caráter urgente que a moradia possui para a população. Mesmo as experiências do Banco Nacional de Habitação durante o regime militar e, mais recentemente, do Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal não foram capazes de reduzir drasticamente a magnitude do número de famílias que não possuem casa própria nem de melhorar a qualidade das cidades brasileiras. É um problema que ultrapassa a dimensão urbanística e de planejamento, é uma questão social, econômica e política. Ou o fato de a quantidade de imóveis vagos ser maior que o déficit habitacional existente no país (7), portanto suficiente para cessá-lo por completo, não pode apontar nesse sentido?
A ocupação transbordou a luta para garantir a habitação digna das famílias lá alojadas. O que o MTST fez foi promover o uso daquilo que não estava sendo utilizado, apontar para outras possibilidades de soluções urbanas, provocar o debate sobre o modelo de cidade existente, o papel do centro como local de moradia e a responsabilidade dos entes governamentais nisso, trazer as pessoas costumeiramente marginalizadas para o centro simbólico do debate e para o centro físico da cidade. Se de um lado, temos quase que unidos os proprietários de imóveis e o poder público, do outro, temos aquela população que sofre na pele os efeitos da tragédia urbana no teto que habita ou na calçada que reside, temos os movimentos sociais vociferando por outro paradigma de cidade, temos a sociedade que padece com o comprometimento diuturno do ethos da cidade.
A despeito de Santo Antônio, São José e do bairro do Recife terem perdido boa parte da população residente, o centro ainda concentra grande número de postos de trabalho. O comércio ainda mostra força, há grande número de instituições públicas e empresas privadas, além dos trabalhadores ambulantes tão característicos da terra dos mascates. Considerando a baixa qualidade do transporte público e o impacto dos deslocamentos casa-trabalho no cotidiano da população (8), é injustificável desperdiçar o potencial que a região central naturalmente tem para aproximar a residência do trabalho e os efeitos resultantes disso para toda a cidade.
A região central possui uma série de características que corroboram sua capacidade de absorver população residente. Ao contrário do que ocorre com as áreas periféricas para onde a cidade tem se expandido, o centro já está urbanizado e conta com infraestrutura e serviços públicos consolidados. Há um grande contingente de áreas construídas ociosas, subutilizadas e vazias, podendo ser objeto de requalificação destinada à habitação. Existe uma concentração de equipamentos culturais, facilidade de meios de locomoção, variedade de espaços públicos. Uma conjunção de elementos disponíveis para alavancar a reabilitação urbana.
É importante frisar que as condições socioeconômicas da população não deveriam servir de fator determinante para seu assentamento, ainda mais quando existe a chance factível de assegurar a permanência de diversas camadas sociais vivendo no centro, inclusive as mais pobres. Pluralidade é essencial para a cidade. A experiência modernista de setorizar ao máximo os usos urbanos já se provou equivocada, levando estudiosos e planejadores a se voltar para o universo heterogêneo e diversificado das cidades antigas. O centro é o núcleo antigo da cidade onde a vida acontecia nas suas mais variadas feições. É urgente reocupar o centro e ampliar os usos existentes da região, o que passa imprescindivelmente por trazer de volta a moradia como possibilidade de práxis e dilatar a vitalidade urbana para além do horário comercial.
No entanto, a habitação central passa ao largo das propostas de intervenção e dos estímulos praticados. O poder público insiste na lógica de urbanização setorizada, privilegiando a função trabalhar. O Porto Digital (9) é talvez o exemplo mais emblemático disso. O município concede benefícios fiscais para a instalação e funcionamento das diversas empresas ligadas ao parque tecnológico (10), inicialmente circunscritas ao bairro do Recife. Todavia o perímetro territorial associado aos benefícios foi ampliado para áreas dos bairros de Santo Antônio, São José e Santo Amaro. A ampliação do espaço territorial do Porto Digital está visceralmente ligada à dinâmica especulativa, beneficiando os proprietários urbanos com a valorização do estoque imobiliário que foi criado nesses territórios. A especulação imobiliária é recompensada positivamente por não dar função social e abandonar as edificações e por sua inadimplência financeira. O poder municipal renuncia recursos financeiros futuros, declina da cobrança dos débitos existentes, não garante que a função social da propriedade seja efetivada, incentiva um padrão de cidade homogeneizante e excludente, em que os ganhos são privatizados e os prejuízos, coletivizados.
Existe uma oportunidade ímpar de reverter a lógica impiedosa dos lucros privados sobre os prejuízos urbanos. Já passou a hora do poder público criar vontade política para ampliar os usos existentes, trazer a moradia e a habitação social para o território central, enfrentar a primazia da propriedade privada, fazer cumprir a função social da propriedade e usar os instrumentos legais disponíveis. A ocupação Marielle Franco é um lembrete diário que as pessoas alijadas das definições de rumo da cidade podem e devem fazer, de fato e de direito, parte da cidade e construí-la. O Direito à Cidade também passa pelo direito de todos a morar no centro!
notas
1
PINTO, Luiz Carlos. Estudo confirma ociosidade de imóveis no bairro de Santo Antônio. Marco Zero Conteúdo, Recife, 6 abr. 2018 <http://marcozero.org/estudo-confirma-ociosidade-de-imoveis-no-bairro-de-santo-antonio>.
2
PINTO, Luiz Carlos. Dívidas de R$ 346 milhões de IPTU expõem abandono e cobiça no Centro do Recife. Marco Zero Conteúdo, Recife, 28 mar. 2018 <https://marcozero.org/dividas-de-r-346-milhoes-de-iptu-expoem-abandono-e-cobica-no-centro-do-recife>.
3
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil 2015. Belo Horizonte, 2018 <www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/direi-2018/estatistica-e-informacoes/797-6-serie-estatistica-e-informacoes-deficit-habitacional-no-brasil-2015/file>.
4
PAZ, Jailson da. Ocupação de prédio pelo MTST reacende o debate sobre requalificação do Centro do Recife. Diario de Pernambuco, 21 mar. 2018 <www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2018/03/21/interna_vidaurbana,745849/ocupacao-de-predio-pelo-mtst-reacende-o-debate-sobre-requalificacao-do.shtml>.
5
O edifício em questão é o Imóvel Especial de Preservação nº 58, instituído através da Lei Municipal nº 16.284/97, que estabelece a proteção de exemplares arquitetônicos significativos para o patrimônio histórico, artístico e cultural da cidade.
6
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Op. cit.
7
Idem, ibidem.
8
FOLHA DE PERNAMBUCO. Recife é a capital onde se leva mais tempo para ir ao trabalho, diz pesquisa. Folha de Pernambuco, 28 mar. 2017 <https://www.folhape.com.br/noticias/noticias/cotidiano/2017/03/28/NWS,22486,70,449,NOTICIAS,2190-RECIFE-CAPITAL-ONDE-LEVA-MAIS-TEMPO-PARA-TRABALHO-DIZ-PESQUISA.aspx>.
9
O Porto Digital é um dos maiores polos tecnológicos do país, suas empresas voltadas para as áreas de tecnologia da informação e comunicação e economia criativa se espalham por diversos bairros do centro da cidade. Mais informações no website <www.portodigital.org>.
10
A Lei Municipal nº 17.244/2006 institui o programa de incentivo ao Porto Digital mediante a concessão de benefícios condicionados.
sobre o autor
Bartolomeu Nascimento, arquiteto e urbanista, graduado pela Universidade Federal de Pernambuco.