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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
A escritora Clarice Lispector escreveu duas crônicas sobre Brasília, a primeira em 1964 (Brasília) e a segunda em 1974 (Brasília: Esplendor). Frases retiradas destes textos me inspiraram reflexões a partir do universo lispectoriano.

english
The writer Clarice Lispector wrote two chronicles about Brasilia, the first in 1964 (Brasilia) and the second in 1974 (Brasilia: Esplendor). Phrases taken from these texts inspired me to reflect on the Lispectorian universe.

español
La escritora Clarice Lispector escribió dos crónicas sobre Brasilia, la primera en 1964 (Brasilia) y la segunda en 1974 (Brasilia: Esplendor). Frases retiradas de estos textos me inspiraron reflexiones a partir del universo lispectoriano.

how to quote

JATOBÁ, Sérgio. Brasília e Clarice. A capital de Lúcio Costa sob a ótica de duas crônicas de Clarice Lispector. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 225.06, Vitruvius, abr. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.225/7357>.



“Brasília é construída na linha do horizonte” (1).

Uma das coisas mais destacadas em Brasília é a onipresente visão da linha horizonte. Não é por acaso. O Plano Piloto foi construído sobre um domo inserido em um vale circundado por chapadas. Para ajudar a visualização, pense em uma bacia que teve o seu fundo empurrado para cima. Este perfil topográfico, aliado ao projeto da cidade, com grandes espaços abertos e edifícios baixos, permite uma visualização do horizonte quase que constante e a sensação de que a cidade está pousada sobre ele.

“Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado” […] A criação não é uma compreensão, é um novo mistério […] Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais […] Este grande silêncio visual que eu amo.

Torre de TV em plano inclinado, 2017
Foto Sergio Jatobá

Brasília é tão artificial quanto qualquer cidade também o é. A artificialidade da sua criação não exige compreensão, é um novo mistério, no dizer de Clarice. Por isso, ela, sendo a cidade do futuro, “é de um passado esplendoroso, que já não existe”. Brasília é a segunda natureza do cerrado onde brotou. Lúcio Costa traçou retas onde só existia a tortuosidade das suas árvores. Niemeyer colocou curvas nelas. Na Brasília artificial, Clarice descobriu que era natural amar o seu grande silêncio visual.

“Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado”

Brasília é uma cidade espantosa. Não é só o espanto da beleza do seu projeto urbanístico e dos seus palácios que rivalizam com o que de mais belo já foi construído. Ou o de ter sido construída em apenas 5 anos em um país de obras inacabadas. Brasília já existia antes de existir. A ideia da sua criação ocorreu 2 séculos antes da sua inauguração quando o Marquês de Pombal propôs a transferência do governo do Reino de Portugal para o interior da colônia brasileira. Brasília, a nova Lisboa, cujo nome foi primeiro sugerido por José Bonifácio, “o patriarca da independência”, em 1823, já foi chamada de “Vera Cruz”, primeiro nome dado às terras brasileiras pelos descobridores portugueses, no primeiro estudo urbanístico oficial da cidade. Brasília intriga porque, pensada idealmente para ser a capital da esperança de um país socialmente mais igualitário, refletiu e exacerbou em seu pequeno território as contradições de uma nação que ainda é muito desigual. Se a história da capital do Brasil possui fatos que geram surpresa e admiração este parece ser, de fato, um espanto inexplicável.

Pessoas na sombra em Brasília, 2017
Foto Sergio Jatobá

“Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto”.

O bater de asas de uma borboleta no Jardim Botânico, pode provocar um temporal em Sobradinho.

“Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez”.

 Clarice desordenou ideias para decifrar a cidade ordenada. A ordem espacial de Brasília a assustou e a fascinou ao mesmo tempo. Pelos olhos do delírio, ela procurou enxergar a lucidez. Na sua insônia, imaginava estar no sonho de uma cidade que despertaria o futuro.

“Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe. […] A cidade de Brasília fica fora da cidade”.

Brasília é dispersa no espaço. Uma cidade espalhada. Quando Brasília foi inaugurada não havia espaço para os candangos que construíram a cidade no Plano Piloto. Então colocaram os candangos em núcleos urbanos afastados do Plano Piloto: as cidades satélites. Cidades dormitórios gravitando em torno da cidade principal. As satélites cresceram, viraram cidades. E reivindicam identidade própria. Agora temos várias brasílias em cada uma das cidades de Brasília. A verdadeira Brasília está fora de Brasília. Brasilia já não é uma só. O Plano não é mais o piloto da cidade.

 “Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar”.

A capital aérea de Lúcio Costa foi traçada no chão, com um “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse”. Mas o seu projeto alado a fez mais bela vista do alto. Os astronautas a elegeram como uma das mais belas cidades fotografadas do espaço. Brasília encanta e assusta, as vezes gera repulsa, mas é singular e será eterna até que se torne etérea.

Banho no Museu Nacional, 2017
Foto Sergio Jatobá

notas

1
Todos os  trechos citados foram extraídos de duas crônicas de Clarice Lispector: a primeira, Brasília, escrita na sua primeira visita à cidade, em 1962 e publicada originalmente na revista Senhor (1963), e posteriormente no livro A Legião Estrangeira (1964). A segunda, Brasília: esplendor, foi escrita quando Clarice visitou a capital doze anos depois, em 1974. As duas crônicas foram reunidas na antologia Visão do esplendor (1975).

sobre o autor

Sérgio Jatobá é arquiteto e urbanista (UnB, 1981). Doutor em Desenvolvimento Sustentável (UnB/Universidad de Valladolid, 2006). Gerente de Estudos Urbanos da Codeplan/GDF (2015-2018). Pesquisador do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – NEUR e do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Foi pesquisador bolsista do IPEA.

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