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O cineasta Roberto Gervitz comenta o abandono da Cinemateca Brasileira em São Paulo, devido a política anticultural em curso no governo federal.
GERVITZ, Roberto. Desprezo pela história do país. Abandono da Cinemateca Brasileira. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 243.01, Vitruvius, out. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.243/7905>.
A produção cultural brasileira já enfrentou ataques demolidores por parte de muitos governos — os anos Collor foram exemplares: levaram consigo estúdios, laboratórios, planos e sonhos. Foram anos de terra arrasada, mas nos reerguemos. Os governos terminam, mas a produção cultural segue pulsando — a criação é uma necessidade atávica do ser humano.
Já estamos cruzando o semiárido cultural, mas não iremos desaparecer porque não se mata uma cultura, e o nosso cinema é a prova indiscutível da capacidade de resistir e de seguir criando. Será mesmo possível e desejável apagar nosso passado — o conjunto das imagens que encerram nossos olhares, depositado na Cinemateca Brasileira, nosso museu do olhar, como definiu Cacá Diegues?
Ela abriga esse grande tesouro composto de registros de amadores que vêm desde o início do século XX até hoje, todo o arquivo do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, o DIP, parte considerável do acervo da TV Tupi, todas as imagens e matérias do Canal 100 e quase toda a produção audiovisual brasileira contemporânea. São 250 mil rolos de filmes e cerca de 1 milhão de documentos.
No início deste ano, a Cinemateca Brasileira entrou num período de total e completo abandono por parte da União. Dado o risco alarmante que corriam seu acervo e instalações, foram organizadas importantes mobilizações da comunidade cinematográfica, com destacado apoio internacional e da sociedade brasileira. A tais manifestações, que contaram com ampla cobertura da imprensa, se somou uma ação contra a União movida pelo Ministério Público Federal.
No início de agosto, em aparente resposta a essas movimentações, o governo federal, por meio do secretário substituto do Audiovisual, inaugurava um momento de diálogo com as entidades da sociedade civil e a comunidade cinematográfica. Chegou-se até mesmo a discutir alternativas para que se garantisse a preservação do acervo e das edificações.
Transcorridos 50 dias, foram garantidos os serviços básicos e emergenciais de água e de luz; foram contratadas uma minibrigada anti-incêndio e uma empresa de vigilância patrimonial e os serviços de limpeza e manutenção da climatização, embora não detenham a expertise necessária.
No entanto, entre as necessidades emergenciais, falta o fundamental trabalho dos funcionários especializados, sem os quais o acervo não estará seguro, mesmo com a retomada dos serviços básicos acima descritos. O secretário solicitou um plano de trabalho à Sociedade Amigos da Cinemateca, a SAC, para que isso fosse possível, mas tal plano não foi aprovado até o momento. E, assim, apesar dos esforços empreendidos pelas partes, segue inalterada a situação de enorme risco.
Para completar, a dotação prevista no projeto da Lei Orçamentária da União para a Cinemateca Brasileira em 2021 é uma regressão jamais vista. Com tais recursos, a Cinemateca Brasileira será reduzida a um mero depósito de filmes, anulando toda a sua importância e excelência como centro de preservação, irradiador de cinema e cultura.
Este texto, ao lado de uma carta da comunidade cinematográfica já publicada e enviada, é um alerta à comunidade audiovisual e à sociedade brasileira, bem como ao atual governo, que hoje é inteiramente responsável por tudo o que vier a ocorrer com uma das maiores cinematecas da América Latina.
As manifestações que conheceram um justo e paciente arrefecimento em função das negociações podem ser retomadas se o importante diálogo que iniciamos não resultar em soluções efetivas. É urgente que se coloque um ponto final na insustentável situação em que se encontra a Cinemateca.
As associações de cineastas, de preservadores audiovisuais, as cinematecas de todo o mundo, os festivais de cinema, a imprensa nacional e internacional, a comunidade artística e os frequentadores e amantes do cinema aguardam uma solução urgente e imediata para a Cinemateca Brasileira. Quem sabe, viabilizada por uma parceria inédita entre o poder público e a sociedade civil? A reabertura imediata da Cinemateca Brasileira é fundamental, não só para o cinema, como também para o conjunto da cultura e da própria história do país.
nota
NE – publicação original do artigo: GERVITZ, Roberto. Desprezo pela história do país. O Globo, Rio de Janeiro, 13 out. 2020.
sobre o autor
Roberto Gervitz é cineasta.