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Aos 60 anos, Capital Federal construída e consolidada, Brasília se reapresenta ao Brasil, diante de impasses e incógnitas, não apenas como artefato urbanístico e arquitetônico, mas como o lugar legítimo para engendrar outros projetos de nação.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília, 60 anos. Da lama e caos à paranoia e mitificação. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 251.01, Vitruvius, jun. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.251/8132>.
“non ragioniam di lor, ma guarda e passa” (1)
Dante Alighieri
Foi em meio à pandemia da Covid-19 que Brasília comemorou aniversário (2).
Os 60 anos de Brasília não são apenas os 60 anos do Plano Piloto. A Brasília sessentona se configura com uma dinâmica metropolitana de intenso desenvolvimento econômico, consagrando a efetiva ocupação do Centro-Oeste do país. Com mazelas de processos de urbanização com uma lógica de segregação social ainda mais marcante que outras regiões metropolitanas, Brasília se reafirma como eixo de desenvolvimento, conectando o território nacional, cumprindo a expectativa de ser uma Capital Federal. Em Brasília, o Acre, o Rio Grande do Sul e Sergipe são equivalentes e aqui, somos todos candangos.
Quando a situação de quarentena foi estabelecida pelo Governo do Distrito Federal – GDF, ficou evidente que não seria mais possível festejar o aniversário da cidade na Esplanada dos Ministérios, entre atrações musicais, shows, barracas de comes e bebes, e toda sorte de animação urbana popular que tais comemorações propiciam. A data redonda deste aniversário parecia ser a chance de redimir, em parte, um azedume que abateu sobre a comemoração dos 50 anos em 2010 quando, às vésperas da efeméride, Brasília foi novamente destacada pelos meios de comunicação de massa por denúncias de corrupção nas esferas do Governo do Distrito Federal, preterindo o debate sobre suas questões urbanísticas e arquitetônicas. Em 2010, a decepção foi grande, pois tudo parecia concorrer para uma comemoração que foi sendo cultivada ao longo dos meses anteriores com diversos eventos, incluindo palestras, exposições, lançamentos de livros etc., mas apesar de tudo isso a cidade foi destacada por um de seus estigmas.
Apesar disso, naquele ano Esplanada estava cheia de gente, houve missa especial na Catedral, partidas de vôlei de praia, havia estandes com exposições fotográficas, estandes de Secretarias de Governo e outras representações oficiais. O caminhão dos bombeiros e as viaturas militares eram tomados como brinquedos pelas crianças. A Esplanada estava cheia de gente de todas as partes de Brasília, que vieram para o cerne do Plano Piloto ao longo de todo dia. Foram milhares de pessoas que passaram, passearam e se divertiram numa comemoração de caráter popular feita por gente de diversos estratos sociais. O caráter cívico da comemoração era patente, ao mesmo tempo em que havia no ar uma alegria contagiante ao saber se tratar de um dia histórico. Bandeiras do Brasil, camisas da Seleção e muito verde, amarelo, azul e branco impregnavam os olhos! Foi um dia radioso, de céu azul...
Em 2020, a Esplanada estava vazia, o Eixão estava vazio, o Eixo Monumental estava vazio.
Brasília estava vazia. Brasília estava mais vazia que o seu vazio habitual.
Em 21 de abril, a quarentena completava pouco mais que seu primeiro mês, de modo que a reclusão e a adesão às campanhas para ficar em casa causavam um esvaziamento impressionante na ocupação do Plano Piloto, cuja densidade populacional já é baixa. Com exceção de corredores, ciclistas, poucos eram aqueles pedestres que se aventuravam naquela manhã um pouco cinzenta, que não prometia chuva, mas não tinha luz radiosa a iluminar os espaços vazios, as massas arbóreas, os edifícios monumentais, nem as superquadras. Diante de um vazio melancólico, a arquitetura monumental parecia perder sentido. A esplanada vazia provocava uma espécie de efeito-maquete em escala 1:1, pois aquilo tudo – Catedral, Ministérios, Itamaraty, Congresso, Planalto, STF – parecia estar ali para ninguém, sem finalidade, mero vazio sem monumentalidade.
A curiosidade de ver a cidade neste dia foi o impulso para sair de casa depois de semanas de reclusão e dar um passeio de carro pelo Eixão Norte e Sul, rodar pela Esplanada, subindo e descendo todo Eixo Monumental, dirigindo em direção à tentativa frustrada de rever o Alvorada. Mantendo relativo isolamento, todas essas fotos foram tiradas de dentro do carro, como um exercício sem maiores pretensões, só para registrar o que se vê, mesmo comprometendo o foco e o enquadramento. Não são imagens para mostrar como Brasília é, mas apenas para registrar como ela estava. Afinal, ao longo de 60 anos, Brasília já tem muitas imagens incríveis! As fotografias de Marcel Gautherot, Thomas Farkas, Peter Scheier e tantos outros, retrataram a epopeia construtiva, desde o caos de poeira e lama dos canteiros até sua inauguração apoteótica em 1960 e os primeiros anos. Ainda hoje, a cidade segue sendo objeto de fotógrafos notáveis, como Roberto Bassul e Joana França.
A minha imagem mais remota de Brasília é formulada por um cruzamento caótico das fotografias dos palácios nas enciclopédias, revistas e jornais da televisão, com as histórias de um tio que, aos 18 anos, integrava o Batalhão da Guarda Presidencial em 1964! Ele contava histórias das noites em claro, fazendo sentinela na capela do Alvorada, da Esplanada e das largas pistas asfaltadas, dos palácios reluzentes de tão brancos, ou das rondas pelos jardins do Alvorada, enquanto a Primeira Dama tomava banho do sol na piscina. E é justamente pensando nesses jovens de baixa patente, fardados tal como àqueles que passariam a comandar o país após o Golpe, que eu enxergava um sentido especial nos versos de Caetano Veloso em Tropicália: e nos jardins os urubus passeiam a tarde toda entre os girassóis...
Nos dias que correm, ao lembrar disso, sei o quanto os amarelos dos girassóis imaginados por mim são muito ingênuos diante da horda verde-amarelo que ocupa com carreatas a Esplanada dos Ministérios aos domingos. Tamanha balbúrdia – mesmo como parte do exercício de liberdade de expressão, seja patrocinado ou não, com diversos graus de violência e riscos institucionais – teima em querer suplantar todos os vestígios modernizadores da saga que Brasília simbolizava para uma outra perspectiva de país, sob a égide cosmopolita de Juscelino Kubistchek. Como cidade-capital de apenas 60 anos, Brasília – com todos os seus palácios e espaços de representação do poder – já foi palco para o exercício de diferentes regimes de poder. Isso é parte normal de sua função, afinal, Brasília é a capital do Brasil. Brasília é o Brasil e sempre foi, “ao seu pesar ou seu contentamento”! Aos 60 anos, a capital do país do futuro, a cidade rodoviarista, a “capital da esperança” de um país que Lúcio Costa pontificava não ter vocação para a mediocridade está em crise de representação. Ao mesmo tempo, a manutenção de Brasília como uma constante no imaginário brasileiro, é reificada todos os dias pelos enquadramentos do Jornal Nacional e de toda mídia.
Mas a pandemia e o pandemônio estão provocando outras tensões no espaço da cidade. A Esplanada já foi equipada por um forte aparato de vigilância com tropas da PM, cães farejadores e as grades que dividiram seu quilométrico gramado entre duas partes antagônicas, durante os protestos e o processo de impeachment de 2016. Desde 2010, o gradil da Praça dos Três Poderes se multiplicou em novos módulos, estendendo e alternando seus domínios restritivos. Mas foi a partir de 2013 que tais grades passaram a ser usadas em caráter – mais ou menos – provisório para cercar o STF, criar barreiras no Itamaraty ou até mesmo cercar o Congresso Nacional! Em desfiles de 7 de setembro, chapas metálicas foram usadas para criar bolsões vazios no gramado e restringir a presença de manifestantes. Estas e tantas outras situações, recobram a dinâmica da vida urbana desta capital federal em seus espaços de maior representação simbólica. Desde 2013, a Esplanada se consolidou como espaço contínuo da Praça dos Três Poderes para se converter no legítimo lugar de protestos e manifestações. Impossível não recobrar que em tais situações, muitas vezes o grau de beligerância extrapola os limites e a transforma no sítio de conflitos violentos, com viaturas, escudos, cães, paus, pedras... “tiro, porrada e bomba”!
É imprevisível apontar até quando Brasília será palco para o atual teatro do poder, cujas performances seguem um enredo em que a paranoia personalista suplanta a ciência e mitifica o autoritarismo, a despeito de quaisquer alertas jurídicos, do acompanhamento da imprensa, das recomendações sanitárias e protocolos internacionais de saúde. Haverá um gran finale com girassóis ou teremos um desfecho trágico em meio aos urubus? Agora, também já sabemos que as vociferações raivosas às portas do Palácio da Alvorada não diferem muito da terminologia indecorosa praticada em outros ambientes palacianos. Tudo isso é subversivo. Tudo isso subverte a lógica inaugural de espaços e edifícios projetados para o pleno exercício da democracia.
Aos 60 anos, poder ver Brasília e a Esplanada dos Ministérios vazia é uma experiência impactante. Ao mesmo tempo, as repetidas imagens da Esplanada dos Ministérios ocupada pelos “protestos a favor” realizados aos domingos se contrapõem às expectativas das comemorações para Brasília, no dia 21 de abril, que poderiam ter ocorrido, mas não ocorreram, como o futuro do pretérito. Aos 60 anos, Brasília encara o presente e não apenas o futuro! Na condição de Capital Federal construída e consolidada, Brasília se reapresenta ao Brasil, diante de impasses e incógnitas, não apenas como artefato urbanístico e arquitetônico, mas como o lugar legítimo para engendrar outros projetos de nação – parafraseando Murilo Marx – em que novos desígnios devem impor novos planos para Brasília pilotar o Brasil.
notas
1
Verso da Divina Comedia, cuja tradução pode ser: “não se importe com eles, mas dê uma olhada e continue”.
2
NE – artigo originalmente escrito em 29 de maio de 2020.
sobre o autor
Eduardo Pierrotti Rossetti é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília