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A destinação de uma praça no bairro paulistano da Mooca a um projeto de construção de moradias populares vem sendo objeto de polêmica, mas o debate tem sido prejudicado por não caracterizar adequadamente o verdadeiro problema público em disputa.
CALDAS, Eduardo de Lima; JAYO, Martin. Agricultura urbana versus moradia popular? Em torno à polêmica da Praça Alfredo Di Cunto. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 256.01, Vitruvius, nov. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.256/8311>.
A Praça Alfredo Di Cunto, situada junto à avenida Alcântara Machado (Radial Leste) em São Paulo, vem sendo objeto de disputas envolvendo o poder público municipal, movimentos ativistas e moradores da região em que está localizada, o bairro paulistano da Mooca. Desde 2020 a polêmica tem sido objeto frequente de interesse jornalístico, tanto por parte de veículos da mídia mais tradicional, a exemplo do jornal televisivo SPTV (1) como de veículos alternativos, como o site Hypeness (2). Em quase todos, a pauta é aproximadamente a mesma: um antigo espaço vazio da cidade, atualmente usado por uma iniciativa comunitária de educação ambiental e agricultura urbana, encontra-se ameaçado por um projeto de construção de moradias populares.
Nas várias reportagens, e no discurso dos diferentes atores envolvidos, o problema é via de regra colocado em termos de uma disputa entre dois usos inconciliáveis para aquela área pública: agricultura urbana ou moradia popular. Neste texto, queremos argumentar não só que essa oposição é falsa (pois a própria cidade de São Paulo oferece exemplos de agricultura urbana e moradia popular que convivem no mesmo espaço), mas também que o atual debate público em torno a esse espaço está prejudicado por não caracterizar adequadamente o verdadeiro problema público em disputa.
Histórico da ocupação do espaço
A Praça Alfredo Di Cunto é uma área pública de 6 mil metros quadrados, localizada na altura do número 2200 da avenida Alcântara Machado (Radial Leste), junto ao viaduto Bresser. Sua origem remonta a aproximadamente cinquenta anos atrás: trata-se de uma área remanescente das desapropriações e obras ali executadas pela Prefeitura, por ocasião da construção da avenida e do viaduto.
Por cerca de trinta anos, desde o término das obras em 1971, a área permaneceu ociosa. Na gestão Marta Suplicy (2001-2005), o antigo terreno baldio passou a ser cuidado por moradores da região, e parte dele foi ocupada por uma horta urbana. O processo de recuperação do espaço culminou em sua transformação oficial em praça. Pelos decretos municipais no45.465, de 2004 (gestão Marta Suplicy), e 45.790, de 2005 (gestão José Serra), o espaço até então sem denominação passou a chamar-se Praça Alfredo Di Cunto, nome que homenageia um conhecido personagem do bairro da Mooca, representativo da memória e identidade da região (3).
Desde então, a manutenção da praça vem sendo feita por voluntários da sociedade civil e moradores da região. Além da horta e de um herbário, há no espaço um pomar, um orquidário e um viveiro de árvores. Boa parte do terreno foi arborizada com espécies nativas da mata atlântica e do cerrado paulista, o que fez com que a praça adquirisse suas feições atuais.
A iniciativa comunitária sediada na praça, conhecida como Horta das Flores, passou a ser lugar de visibilidade para a Agricultura Urbana e visitação de escolas públicas para a realização de atividades de educação ambiental. O local passou a servir também como área de lazer para moradores da região, ainda que na conjuntura da pandemia de Covid-19 as atividades da horta e o uso como parque tenham naturalmente diminuído.
Política de sinal trocado: a guinada do poder público
Ao instituir um espaço público como Praça, oficializada por meio de dois decretos municipais, a Prefeitura parecia emitir uma mensagem clara para a sociedade: o bairro da Mooca e a cidade de São Paulo, ambos carentes de áreas verdes, recebiam uma nova praça pública. A criação de praças não é uma política da qual normalmente se espera reversão, muito menos no curto prazo, e o fato de os dois decretos terem sido assinados por prefeitos de gestões e orientações políticas diferentes (Marta Suplicy, então filiada ao PT e José Serra, do PSDB) sinalizava uma continuidade, isto é, uma política que ia além dos interesses transitórios dos governantes de turno. Além disso homenagens feitas por meio da nomeação de logradouros, como a que a municipalidade decidiu fazer ao padeiro Alfredo Di Cunto, também não são feitas para durar tão pouco. Este é provavelmente um caso recorde: se confirmada a nova destinação do espaço, a homenagem toponímica terá durado pouco mais do que escassos quinze anos.
O fato é que, contrariando todos esses sinais que sugeriam perenidade ou continuidade da praça, desde por volta de 2020 um novo projeto vem sendo noticiado: no lugar da praça, pretende-se construir 2.760 apartamentos destinados a famílias com renda mensal de até cinco salários mínimos. O projeto atende a uma promessa da campanha eleitoral de 2016 do ex-prefeito João Dória (2017-2018), de entregar moradias populares, e foi encampado pela atual gestão, que pretende executá-lo por meio de uma parceria público-privada – PPP. Em 12 de junho de 2021, a praça foi objeto de contrato assinado com consórcio formado pelas empresas Engeform Engenharia e Telar Engenharia. Com obras previstas para iniciar-se em dezembro de 2021, o projeto prevê quatro condomínios habitacionais, que serão destinados a moradores cadastrados pela Companhia Metropolitana de Habitação – Cohab.
Pelo site de uma das empresas participantes do consórcio, a Engeform (4), sabemos que “os futuros moradores serão beneficiados com uma infraestrutura completa no próprio empreendimento”, o que incluirá “espaços para área de lazer, entretenimento, esporte”. Vê-se que os espaços de lazer antes oferecidos em praça pública seguirão no mesmo lugar, agora transformados em “benefícios” intramuros.
Por parte do poder público, a guinada na destinação da área ainda não teve, e provavelmente não terá, uma justificativa. É verdade que a cidade de São Paulo necessita de políticas para a superação de um déficit da ordem de meio milhão de moradias populares (5), mas a necessidade de destinação deste espaço em específico permanece não explicada. O direito à moradia pode ser garantido, por exemplo, por meio de políticas que, em vez de construir novos prédios, desapropriem prédios abandonados e inadimplentes com tributos municipais, muitos deles localizados em áreas centrais e de alto interesse para moradia social. A política municipal constrói um falso problema, como se a solução para o déficit habitacional precisasse passar pela redução de praças e áreas verdes da cidade.
Reação da sociedade civil
Vizinhos, voluntários e membros da sociedade civil responsáveis pelas atividades comunitárias desenvolvidas há cerca de 15 anos na praça, têm reagido com justa indignação às notícias acerca do projeto habitacional. Havendo outras alternativas para a oferta de moradias, questiona-se, por que sacrificar um espaço ocupado há 15 anos, que comporta um importante viveiro de árvores de espécies nativas, que mantém uma horta e um herbário, e que passou a ser lugar de visitação de escolas, de educação ambiental e de visibilidade para a agricultura urbana?
Porém, por mais justos e bem-intencionados que sejam os argumentos mobilizados, eles têm sido relativamente frágeis para sensibilizar a opinião pública. De um lado, não é totalmente certo afirmar que um projeto de moradia popular, mesmo composto por grandes prédios, seja incompatível com iniciativas de agricultura urbana e educação ambiental. A cidade de São Paulo tem exemplos de conciliação desses dois usos do espaço, como o Viveiro Escola União de Vila Nova, que já abordamos em outro artigo na revista Minha Cidade (6). Prefeitura e demais agentes interessados no projeto poderiam facilmente contra-argumentar, com base neles, que horta, viveiro e outras atividades podem ser de alguma forma retomados dentro do empreendimento, uma vez concluído. Por sinal, a agricultura urbana de tipo intramuros, praticada dentro de condomínios, centros comerciais e outros espaços privados, tem sido, justamente, uma das formas do que, em ainda outro artigo, chamamos de apropriação e captura da agenda política da agricultura urbana nas cidades brasileiras (7).
De outro lado, é curioso que os argumentos deixem de fazer alusão ao fato de que, ao criar na prática um grande condomínio, a prefeitura privatiza um espaço instituído formalmente há 15 anos, por legislação municipal, como Praça. As razões que os atores da sociedade civil têm mobilizado para sensibilizar a opinião pública (ao menos os ecoados pela mídia) fazem justa referência à relevância das atividades ali desenvolvidas, mas deixam de explorar a impropriedade ética, e os limites políticos e talvez jurídicos, de se vender e murar uma praça da cidade.
“A praça é do povo como o céu e do condor”, disse Castro Alves, e “Santa Rita, Rita, lo que se da no se quita”, reza um provérbio espanhol. Esta sabedoria não tem sido posta a serviço do debate em torno à Praça Alberto Di Cunto.
notas
1
“Polêmica envolvendo a Horta das Flores na Mooca”. SPTV, São Paulo, 9 ago. 2021. <https://bit.ly/3nXR3bu>.
2
FERREIRA, Yuri. Prefeitura de SP quer destruir maior área verde da Mooca para construir prédios. Hypeness, 19 mar. 2020 <https://bit.ly/3EIVZYw>.
3
Alfredo Di Cunto foi um padeiro e confeiteiro italiano que imigrou para São Paulo em 1934, inaugurando no ano seguinte a Confeitaria Di Cunto. O estabelecimento segue em funcionamento, a cerca de 1.200 metros da praça que homenageia seu antigo proprietário. Informações colhidas no Dicionário de Ruas da Prefeitura de São Paulo <https://bit.ly/31mR9lg> e no Portal da Mooca <https://bit.ly/3GS9Tt7>.
4
ENGEFORM. Engeform Engenharia e Telar Engenharia conquistam lote da primeira PPP municipal de habitação no Brasil <https://bit.ly/3GSsB40>.
5
SILVA, Eduardo. São Paulo tem déficit de 474 mil moradias, diz estudo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 7 set. 2019 <https://bit.ly/3k4vdSI>.
6
CALDAS, Eduardo de Lima; JAYO, Martin; MARTINS, Heidy Luize; OLIVEIRA, Wagner Batista de. Mil viveiros para São Paulo. Aprendendo com União de Vila Nova. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 248.04, Vitruvius, mar. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.248/8053>.
7
JAYO, Martin; CALDAS, Eduaro de Lima. Discursos de agricultura urbana em São Paulo: formação, profusão e captura. Kult-Ur – Revista Interdisciplinària sobre la Cultura de la Ciutat, v. 6, n. 12, p. 157-76, 2019 <https://bit.ly/3H2iEkG>.
sobre os autores
Eduardo de Lima Caldas e Martin Jayo são professores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).