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Nabil Bonduki, professor da FAU USP, comenta as estações de metrô da Ucrânia e Rússia como legado infraestrutural do período soviético.
BONDUKI, Nabil. O metrô de Kiev. Abrigo contra a guerra, é resultado da política de mobilidade e propaganda soviética. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 260.01, Vitruvius, mar. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.260/8423>.
Os metrôs de Moscou e São Petersburgo (antiga Leningrado), construídos durante o regime soviético, são bastante conhecidos por sua eficiência, extensão e imponência das estações, consideradas entre as mais belas do mundo.
Mas, até a blitzkrieg dos russos contra a Ucrânia, poucos conheciam o metrô de Kiev, o terceiro a ser construído na União Soviética (URSS), iniciado em 1949, assim como é bastante desconhecida a arquitetura, o urbanismo e os mosaicos da capital ucraniana, que poderá ser ocupada pelo exército russo que avança em sua direção.
Não é por acaso que algumas das estações de metrô de Kiev estejam servindo de abrigo de civis contra os horrores dos bombardeios e da guerra russa contra a ex-República Soviética. Inúmeras estações de metrô nas cidades soviéticas foram concebidas também com o objetivo de servir de refúgio contra-ataques militares.
A mais espetacular é Arsenalna, a estação de metrô mais profunda do mundo, situada a 105,5 metros de profundidade. A solução de construir uma estação em uma colina às margens do rio Dnieper, para acessar uma linha que cruza subsolo um rio que tem até 400 metros de largura, pode ter sido motivada pelo objetivo de criar um refúgio no caso de uma eventual catástrofe nuclear. Certamente outras alternativas técnicas mais simples teriam sido possíveis.
O caso da Arsenalna está longe de ser uma exceção. A cara alternativa de construir estações profundas parece ter sido uma política deliberada do regime soviético durante a Guerra Fria, quando a ameaça de uma guerra nuclear esteve no cenário.
Nas principais cidades da antiga URSS foram construídas as estações e as linhas de metrô mais profundas do mundo, equipadas com exaustores e medidores de radiação. Embora possam ter havido razões topográficas e geológicas para essa opção de engenharia, tudo indica que o determinante foi a criação de refúgio. É o caso, por exemplo, da Estação Park Pobedy, em Moscou, que está a 84 metros abaixo do nível do solo.
Em São Petersburgo, a Linha 5 é considerada a mais profunda do mundo. Nela se situa a estação Admiralteyskaya, a 102 metros abaixo da superfície. A estação tem imensas escadas rolantes, com mais de 85 metros de comprimento, decoradas com luminárias Art Decô.
As plataformas dessa estação ficaram fechadas por 15 anos, quando as composições passavam por ela, mas não paravam, pois não havia uma saída para a superfície. Devido a textura do solo e divergências sobre a localização da entrada, não se definia um local aceitável para a saída no nível do solo que, afinal, foi feita através de uma edificação histórica.
Em Pyongyang, capital da Coreia do Norte, país que integrava a área de influência da URSS e parece ter tido os mesmos objetivos que ela ao implantar as redes de metrô, a estação de Puhung, entre várias muito profundas, está a mais de cem metros da superfície.
Para se ter uma ideia do que significa essas profundidades, a Estação Paulista do metrô de São Paulo, com seus seis intermináveis lances de escadas, está a 55 metros abaixo do nível do solo, a metade de Arsenalna que, assim como Admiralteyskaya, tem imensas escadas-rolantes.
Embora de discutível valor artístico, as monumentais estações de Kiev são muito interessantes e merecem ser conhecidas, o que só será possível, presencialmente, em um futuro incerto e se, após a guerra, os ucranianos não eliminarem em definitivo todos os símbolos e referências ao passado soviético, o que vem sendo feito desde o colapso da URSS e que certamente se intensificará se a Ucrânia mantiver sua independência.
A implantação de redes de metrô nas principais cidades da URSS foi uma prioridade do regime comunista que, além de atender a mobilidade, uma necessidade urbana essencial e de grande impacto na qualidade de vida, construiu estações como monumentos de propaganda, com uma arquitetura que lembra um classicismo modernizado, com elementos Art Decô e uma decoração inspirada no Realismo Socialista.
Até sua dissolução em 1991, a União Soviética implantou redes de metrô em, pelo menos, 16 cidades. Um sistema de fazer inveja: Moscou tem 327,5 km e 196 estações e São Petersburgo (uma cidade de 5 milhões de habitantes, 40% de São Paulo), tem 113 km e 67 estações.
O regime soviético construiu redes de metrô em quatro cidades ucranianas. Em Kiev, hoje com 2,9 milhões de habitantes, a rede de metrô tem 52 km de extensão e 50 estações. A cidade de Carcóvia (Kharkiv), a segunda do país, com 1,4 milhões habitantes, tem três linhas, com 38 quilômetros e 30 estações.
Kryvyi Rib, centro industrial com 650 mil habitantes, tem uma rede de 18,7 km e 15 estações. Já Dnipro (Dnipropetrovsk), com um milhão de habitantes, tem apenas uma linha, mas cinco de suas seis estações estão a 70 metros de profundidade, reforçando a percepção que a implantação do metrô tinha um claro objetivo defensivo.
Assim como em Moscou e Leningrado, o Realismo Socialista esteve muito presente em Kiev. Fundado sobre uma linguagem visual rígida e limitada, ele abrangia um espectro temático com cenas populares, paisagens rurais e urbanas, de atividades quotidianas do proletariado ou do exército vermelho e retratos de personagens que o regime buscava exaltar, sempre expressando força física e poder.
O metrô de Kiev, que começou a ser construído em 1949, ainda expressa muito dos tempos soviéticos. Nas estações mais antigas, como Vokzalna ou Universytet, a presença do Realismo Socialista é mais forte, embora alguns símbolos com a foice e o martelo tenham sido retirados dos mosaicos após o fim do regime comunista.
Na Estação Shulyavska, o mosaico representa uma fábrica e dois trabalhadores, com um deles segurando um machado e o outro um átomo, que simboliza a união entre o trabalho e a ciência. Já as estações construídas na década de 1980, como Minska, quando a crise política e econômica abalava a URSS, são mais simples e com uma linguagem mais moderna, com elementos Art Decô.
A estação Zoloti Vorota, considerada uma das mais bonitas do mundo, se destaca. A partir de um saguão central circular, partem corredores com cobertura em abóbada e com passagens em forma de arco, que se assemelha a um palácio, como era comum nas estações soviéticas. Mas a decoração destoa do realismo socialista, pois os mosaicos lembram o estilo bizantino.
Na paisagem urbana de Kiev se destacam várias fachadas cegas de edifícios decoradas com mosaicos exaltando a revolução, a força e musculatura dos trabalhadores e a crença na ciência, representada pelo átomo. Não deixam de ter interesse artístico, como um mosaico em altorelevo de 1980, um tanto afastado de uma linguagem de propaganda, que se sobrepõe a um interessante edificio modernista de esquina, ocupado pelo Instituto de Higiene e Ecologia.
A presença de símbolos da URSS em Kiev, quando a arte era instrumento de propaganda de um regime que oprimiu a Ucrânia e que provocou um genocídio como o Holomodor, seria motivo suficiente para muitos quererem destruí-los. Questão que se relaciona com a remoção de monumentos de bandeiristas em São Paulo.
Como os protestos nacionalistas de 2013/4, que derrubaram um governo aliado aos russos, também geraram murais e monumentos exaltando a chamada Revolução Laranja, essa questão poderá se recolocar, no sentido contrário, se um governo pró-Rússia se instaurar como um desdobramento da guerra.
As imensas redes metrô nas cidades soviéticas, embora fossem instrumentos de propaganda do regime e, talvez, pensadas também como refúgios de um ataque nuclear, deixaram um legado relevante que ainda hoje estruturam positivamente a mobilidade urbana nas principais cidades da Ucrânia.
nota
NE – publicação original de versão mais compacta do artigo: BONDUKI, Nabil. O metrô de Kiev, abrigo contra a guerra, é resultado da política de mobilidade e propaganda soviética. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 fev. 2022 <https://bit.ly/3IPNKfy>.
sobre o autor
Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário da Cultura de São Paulo.