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Parecer de tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico das antigas tecelagem Parahyba e fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo, projetos de Rino Levi e Roberto Burle Marx, assinado por Nivaldo Vieira de Andrade Jr.
ANDRADE, Nivaldo. Conjunto arquitetônico e paisagístico das antigas tecelagem Parahyba e fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo. Parecer de tombamento. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 264.02, Vitruvius, jul. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.264/8559>.
Introdução
Devo, inicialmente, registrar meu reconhecimento pelo admirável trabalho realizado pelos técnicos e técnicas do Iphan envolvidos na instrução deste processo de tombamento, em especial a arquiteta Olívia Malfatti Buscariolli, da Superintendência de São Paulo, que é autora do detalhado Parecer Técnico que fundamenta minha análise. Olívia me acompanhou na vistoria técnica realizada nos dias 18 e 19 de outubro ao objeto deste parecer, na qual também fomos acompanhados pelos arquitetos da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, da Prefeitura de São José dos Campos: Robson Bernardo, do Departamento de Patrimônio Histórico, e Sonia Vidal di Maio, da Gerência de Patrimônio Histórico. Sonia é, ademais, autora do “Inventário do Patrimônio Arquitetônico e Cultural – Complexo Tecelagem Parahyba”, realizado há quase 20 anos e que se constitui em fonte fundamental para a compreensão do bem, compondo o processo em tela. Foi realizada, também, reunião com o Diretor Presidente da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, Tom Freitas, que reiterou o compromisso da Prefeitura de São José dos Campos com a proteção deste conjunto e o interesse no seu tombamento pelo Iphan.
Devo registar ainda, nesta introdução, que, em função do Iphan ter sido condenado em ação judicial a concluir o processo de tombamento deste conjunto até o dia 1º de maio de 2020, sob pena de aplicação de multa diária, dispus de pouco mais de dois meses para a leitura das mais de 1.300 páginas do processo de tombamento, realização da vistoria técnica (em tempos de pandemia) e elaboração deste parecer, porquanto desde já me desculpo por quaisquer imprecisões ou lacunas que nele venham a existir, bem como pela minha incapacidade de síntese frente à complexidade do objeto.
2. Histórico do processo
O processo em tela tem início em 27 de maio de 1996, quando a então Prefeita de São José dos Campos, Angela Moraes Guadagnin, solicita ao Iphan o tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico formado pela “residência da família Gomes, o grande galpão de armazenamento de implementos agrícolas e industriais e outros edifícios projetados pelo escritório de Rino Levi, envolvidos pelos amplos jardins concebidos e executados por Roberto Burle Marx”, destacando o seu “significado [...] para a história do movimento moderno no país” e os “valores representados pelas características ambientais e dimensões do parque”. Na ocasião, a Prefeita informava que a Prefeitura havia desapropriado os terrenos e instalações da antiga Tecelagem Parahyba, incluindo os bens citados, e pretendia “transformar o local num grande parque público, abrigando a estrutura para a realização de atividades e eventos culturais”. (fl. 01-02)
O ofício da Prefeita era acompanhado de um documento de nove páginas, intitulado “Justificativa para desapropriação da Tecelagem Parahyba” e firmado por Célio Chaves e Antônio Luiz Dias Andrade, o “Janjão”, ex-Superintendente do Iphan em São Paulo.
Em 13 junho de 1996, a então Coordenadoria Regional do Iphan em São Paulo, Cecília Rodrigues dos Santos, encaminha a solicitação da Prefeita Angela Guadagnin ao Presidente do Iphan, Glauco Campello, endossando-a. (fl. 12). Assim, em 08 de julho de 1996, foi instaurado o Processo de Tombamento nº 1.368-T-96, referente ao bem denominado “Conjunto Arquitetônico e Paisagístico ‘Tecelagem Parahyba’”.
Embora o então Departamento de Proteção (Deprot) do Iphan tivesse solicitado imediatamente à 9ª Coordenadoria Regional do Iphan, em São Paulo, que instruísse o processo de tombamento nos termos da Portaria 11, de 11 de setembro de 1986, a correspondência constante do processo de tombamento demonstra que nada foi feito pelos três anos seguintes, embora o mesmo pedido tivesse sido reiterado pelo Deprot em outras ocasiões.
Em 20 de dezembro de 2000, visando contribuir com o andamento do processo de tombamento, o então Diretor Presidente da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, Antônio Gervásio de Paiva Diniz, encaminha ao Deprot o “Dossiê para Preservação e Tombamento – Complexo Tecelagem Parahyba”, com 89 páginas, aprovado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Paisagístico e Cultural do Município de São José dos Campos (Comphac).
Apesar da disposição da Prefeitura de São José dos Campos em municiar a Superintendência do Iphan na instrução do processo de tombamento, este, infelizmente, ficou sobrestado até 2019, por diversas razões que não cabem a este parecer avaliar. A partir de 2019, o processo é retomado, e os técnicos da Superintendência do Iphan em São Paulo, em especial a arquiteta Olívia Malfatti Buscariolli, realizam sucessivas vistorias ao conjunto e reuniões com a equipe da Fundação Cultural Cassiano Ricardo para tratar do assunto (19 de agosto e 06 de dezembro de 2019, 14 de fevereiro e 06 de março de 2020). Estas vistorias resultam em relatórios e notas técnicas, que compõem o processo em tela.
Dentre estes documentos técnicos que compõem o processo de tombamento, merecem destaque, pelas contribuições que aportam, o Parecer Técnico nº 132/2020/COTEC IPHAN-SP, firmado pela arquiteta Olívia Buscarolli, que apresenta o estudo de tombamento para o Conjunto “Tecelagem Parahyba”; a Nota Técnica nº 151/2020/COTEC IPHAN-SP, da analista de gestão ambiental Clarisse Pereira Nunes da Silva, na qual apresenta informações sobre o Parque Burle Marx; e o Ofício nº 298/2020/COTEC IPHAN-SP/IPHAN-SP-IPHAN, da coordenadora técnica Carolina Dal Ben Pádua, que recomenda a inscrições do bem nos Livros do Tombo Histórico, Arqueológicos, Etnográfico e Paisagístico e de Belas Artes, e sugere aprofundar os estudos das edificações cujo estado de conservação é ruim, além das manifestações da Procuradoria Federal junto ao Iphan.
O Edital de Notificação do tombamento do “Conjunto Tecelagem Parahyba” foi publicado no Diário Oficial da União no dia 07 de dezembro de 2020; três dias antes, a Presidente do Iphan havia notificado o Prefeito Municipal de São José dos Campos e o Governador do Estado de São Paulo do tombamento provisório.
3. Histórico da Tecelagem Parahyba e da Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo
Os documentos que compõem o presente processo informam que a Vila de São José do Paraíba foi fundada em 1767 a partir de um antigo aldeamento indígena, tornando-se cidade em 1864 e recebendo a atual denominação sete anos depois. A economia esteve baseada na produção agrícola, de algodão – exportado para abastecer a indústria têxtil inglesa – e café – cuja produção foi mantida até a década de 1930. As grandes transformações começam com a chegada à cidade da Estrada de Ferro Central do Brasil, na segunda metade do século 19, e com a fase sanatorial, a partir do início do século 20, quando dezenas de pessoas passam a buscar, na cidade, tratamento contra a tuberculose.
Em 1920, é criada no município uma comissão especial para avaliar a possibilidade de promover a industrialização da cidade, resultando em uma resolução, aprovada pela Municipalidade em 18 de maio do mesmo ano, que oferece incentivos e concessões para atrair a implantação de indústrias. Esses incentivos, associados ao baixo custo da mão-de-obra e da energia elétrica, à ferrovia como vetor de distribuição da produção e à proximidade com os grandes centros consumidores, atraíram os primeiros investidores. A primeira grande indústria instalada no município foi a Fábrica de Louças Santo Eugênio, em 1921; no ano seguinte, foi a vez da Cerâmica Santa Lúcia; em 1925, a Tecelagem Parahyba. São José dos Campos se transforma, assim, de “cidade-sanatório” em “cidade industrial”.
A Companhia Fiação e Tecelagem Parahyba, primeira indústria têxtil do município de São José dos Campos, foi criada em 14 de março de 1925, tendo como acionistas o arquiteto e engenheiro português Ricardo Severo da Fonseca Costa (sócio do arquiteto Ramos de Azevedo e um dos mais importantes defensores do estilo neocolonial no Brasil) e Carlos Leôncio Magalhães. Ao lado dos galpões reservados à produção, a companhia construiu, na segunda metade da década de 1920, uma Vila Operária com 26 casas e as casas da gerência e de hóspedes. Devido a entraves burocráticos na liberação dos incentivos fiscais para importação de equipamentos industriais, a Tecelagem só entrou em funcionamento em 1927, com a produção de tecidos de algodão em uma área construída de 7.491 metros quadrados no bairro Santana, ao lado da nova estação ferroviária da cidade, que havia sido inaugurada em 1925. Rapidamente, a Tecelagem Parahyba “Caracterizou-se como um dos marcos da industrialização no município, imprimindo-lhe fisionomia urbana e inserindo-se intensamente na vida social, econômica e cultural do município”. (fl. 55)
Em 1929, com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a companhia passou por dificuldades e entrou em concordata. Em 1930, o comerciante e agricultor Olivo Gomes, então funcionário de um banco privado, foi contratado para avaliar os ativos da empresa, visando a aprovação de créditos bancários para ampliação do capital. Ele termina sendo convidado, em julho de 1930, para assumir a gerência da fábrica e, três anos depois, já na condição de acionista, substitui seu amigo Ricardo Severo como presidente da empresa. Conforme registra Ademir Pereira dos Santos, Olivo Gomes lideraria a expansão da fábrica que, em 1938, passaria a contar com 1.200 funcionários, correspondendo a 8% dos 14.474 habitantes da zona urbana do município, produzindo mensalmente 170.000 cobertores e 180.000 metros de brim (1).
Com o lucro decorrente das exportações durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Olivo Gomes passa a investir também no setor agrícola e pecuário, e adquire a Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo. Ainda segundo Santos:
“Olivo Gomes iniciou então uma saga em busca do aperfeiçoamento científico da produção pecuária e da agricultura, tão bem incorporada pelos filhos que o sucederam. A inspiração vinha dos Estados Unidos [...].
Os projetos concebidos [...] do final dos anos 1950 até a metade dos anos 70, seja nas fazendas ou na própria Tecelagem, permitem comprovar as fortes preocupações políticas, sociais, culturais e artísticas que marcaram os empreendimentos dirigidos pelos filhos do patriarca [falecido em 1957]. Grandes nomes do Design Têxtil, da Moda, da Arquitetura e das Artes Plásticas foram convidados para conceber ou integrar projetos de expansão dos produtos, dos empreendimentos agrícolas e industriais do grupo. Projetos que se caracterizavam pelo esmero, pela qualidade técnica e conceitual. Combinam o paisagismo e as artes plásticas na humanização do ambiente de trabalho” (2).
A Tecelagem Parahyba vive seu apogeu nas décadas de 1960 e 1970, quando detinha cerca de 70% do mercado nacional de cobertores de mantas. Mais uma vez é Santos quem recorda:
“Produto de uma campanha publicitária pioneira, usando de forma inovadora o chamado marketing agressivo, a marca foi veiculada usando diversas mídias, tais como peças gráficas, rádio, cinema e TV. Popularizou-se a imagem do boneco, o desenho de uma criança de pijama, que seria então incorporado à marca dos cobertores, tornando-se um símbolo da própria Tecelagem Parahyba (“Já é hora de dormir, não espere a mamãe mandar...”). [...] A produção de cobertores foi diversificada, buscando novas fatias de mercado. A Tecelagem, por meio do pagamento de roaylties, passou a fabricar cobertores desenhados por Pierre Cardin, Pierre Balmain e Walt Disney” (3).
O fim do milagre econômico, na virada para a década de 1980, coincide com problemas familiares que afetam a administração da empresa. A crise leva à concordata, em 1983. A obtenção de empréstimos bancários e a hipoteca das propriedades rurais não foram suficientes para superar a crise. Clemente Gomes, filho mais velho de Olivo, se afasta da direção das empresas em 1992; meses depois, seu irmão Severo Gomes, senador pelo PMDB, falece em um acidente de helicóptero, junto com Ulysses Guimarães. No ano seguinte, Clemente falece.
Para quitar as dívidas da empresa, a Família Gomes transfere ao Governo do Estado de São Paulo o terreno e as edificações da antiga Tecelagem Parahyba, totalizando 126.000 metros quadrados. Em março de 1994, a Associação de Funcionários assume o controle da marca como forma de pagamento de parte da dívida trabalhista, através de uma cooperativa, implementada com o apoio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e do Governo do Estado. A Prefeitura de São José dos Campos, por sua vez, assumiu a dívida da família junto ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e, em contrapartida, tornou-se proprietária de uma área de 516.000 metros quadrados, onde estão localizados as Casas da Gerência e de Hóspedes, o Galpão para Máquinas e Equipamentos, a Residência Olivo Gomes e o jardim circundante. Em 27 de julho de 1996, dia do aniversário da cidade, o Parque Municipal Roberto Burle Marx, também conhecido como Parque da Cidade, foi aberto à visitação.
4. Elementos componentes do conjunto
Os elementos que compõem o conjunto encontram-se cuidadosamente identificados e descritos no processo em tela, com destaque para o “Dossiê para Preservação e Tombamento – Complexo Tecelagem Parahyba”, elaborado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em 2000; o “Inventário do Patrimônio Arquitetônico e Cultural – Complexo Tecelagem Parahyba”, de autoria de Sonia di Maio; e o parecer técnico da arquiteta Olívia Buscariolli, do Iphan-SP. O estado de conservação atual de cada um destes elementos foi analisado durante a vistoria técnica realizada por mim no último mês de outubro.
O conjunto é formado pelos seguintes elementos:
4.1. Instalações industriais da Tecelagem Parahyba: projeto de Vicente de Finis & Cia., construído a partir de 1925. Atualmente abriga instituições públicas municipais (Fundação Cultural Cassiano Ricardo, Centro Cultural Clemente Gomes, Projeto Guri, Arquivo Público do Município) e estaduais (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB), dentre outras. As edificações localizadas a leste estavam ocupadas pela Coopertextil (Cooperativa dos Trabalhadores da Indústria Têxtil de São José dos Campos), que foi desalojada pela Prefeitura três dias antes da vistoria realizada por mim. Muitos galpões estão desocupados ou subutilizados. A maioria das edificações industriais encontra-se em bom estado de conservação. O prédio da Caldeira (1925) está interditado pela Defesa Civil desde 2013; em 2014, parte da cobertura de um galpão ruiu; em 2016, um incêndio danificou parte de um galpão.
4.2. Conjunto de habitações unifamiliares para os funcionários da fábrica: projeto de Vicente de Finis & Cia., 1925. O conjunto é formado por 25 unidades geminadas e atualmente encontra-se sem uso, tendo em vista que o setor administrativo da Coopertextil ocupava essas edificações até ser desalojado pela Prefeitura no último mês de outubro. Encontra-se preservado, com diversas alterações internas e nas fachadas posteriores, decorrentes de acréscimos e ampliações.
4.3. Consultório médico: projeto e construção da Empresa “Construções e Terrenos Ltda.”, foi construído antes da aprovação do projeto pela Prefeitura, que ocorreu em 1948. A Coopertextil ocupava essa edificação com uma loja dos produtos da fábrica, até ser desalojado pela Prefeitura no último mês de outubro. Encontra-se em bom estado de conservação.
4.4. Ordenha mecânica: atualmente utilizada pelo “Programa Compostar e Plantar”, encontra-se em estado de conservação regular. Assim como os outros empreendimentos de Olivo Gomes, esta ordenha foi vanguardista no que se refere ao “maquinário” instalado, começando pelo inovador sistema de bebedouro que possuía um sistema de bloqueio de água, que só era liberada quando o gado o pressionava com o focinho. A tubulação aparente não é para a passagem e sim para a sucção do leite através do seu compressor de vácuo. Foi desativada na década de 1950.
4.5. Silos: possivelmente desenhados por Antonio Fischer, Felizardo Traversin ou Clemente Gomes, na década de 1960. Encontram-se sem uso e cobertos por vegetação parasitária, além de um deles abrigar uma grande colmeia de abelhas. São dois silos, pré-moldados em concreto e fabricadas pela própria Fazenda, sem valor arquitetônico significativo, porém com significativo valor histórico por representar uma importante função na fazenda, o armazenamento de ração para o gado, bem como possuem relevante papel na configuração da paisagem. Havia outros conjuntos de silos na fazenda, já demolidos.
4.6. Galpão de beneficiamento de arroz e café: construído na década de 1930, provavelmente. Desde 2019, abriga a Startup São José. Encontra-se em bom estado de conservação, embora se notem manchas de umidade e uma grande trinca na parede externa voltada para o sul, junto ao guarda-corpo do terreiro. Preservam-se, no interior, as máquinas de moer café e beneficiar arroz. A produção foi descontinuada em 1968, com a formação da previdência social para funcionários rurais, que tornou a produção antieconômica. O galpão se tornou, então, depósito de ferramentas e produtos utilizados na fazenda, função que manteve até a sua aquisição pela Prefeitura, em 1995.
4.7. Setor Administrativo da Fazenda, Fábrica de Ração e residência: abriga atualmente o ICMBIO e a guarda municipal. Encontra-se em bom estado de conservação e bem preservado, apesar de algumas intervenções no espaço interno.
4.8. Estábulo: construção simples, implantada em um desnível no terreno, com acesso pela cota superior. Abriga atualmente um grupo de escoteiros. Possui valor histórico.
4.9. Galpão para Máquinas e Equipamentos (Galpão Gaivota): projeto de Rino Levi e Roberto Cerqueira César, construído entre 1953 e 1957. Atualmente é usado eventualmente para eventos. Encontra-se em bom estado de conservação, ainda que apresente manchas de umidade descendente, devidas a danos em parte da cobertura em telhas metálicas. Alguns cabos tensores necessitam de reparos. Corresponde a uma das edificações mais interessantes do conjunto, com uma cobertura caracterizada pela sofisticada solução estrutural. Inclui um painel de Roberto Burle Marx, datado de 1960 e instalado no posto de gasolina, localizado na extremidade leste da fachada sul do galpão.
4.10. Usina de Força e casa de bombas e compressores a óleo: localizado ao lado do Galpão para Máquinas e Equipamentos, não possui o mesmo valor arquitetônico que este último, porém possui valor histórico, seja pela função original que desempenhou, seja pelo fato de, nos anos 1960, ter sido reformada para abrigar a Indústria de Tear Manual ou Indústria de Tecelagem Manual (ITM), empresa criada pela família Gomes para produzir tecelagem artística e que executou tapetes de lã natural desenhados por Roberto Burle Marx. Atualmente a edificação é utilizada para guarda de mobiliário público municipal.
4.11. Casa da Gerência: antiga residência neocolonial do gerente da fábrica. Foi a primeira residência de Olivo Gomes e de sua família quando ele assumiu a gerência da empresa, e nela permaneceu até a inauguração da casa projetada por Rino Levi, sendo então transformada em casa para hóspedes, denominada de “casa velha”. Em 1997, foi reformada para abrigar o Museu do Folclore de São José dos Campos, função que mantém até hoje. Apresenta alguns problemas pontuais de infiltração na cobertura.
4.12. Casa de Hóspedes: construção neocolonial próxima à Casa da Gerência e com linguagem arquitetônica semelhante. Abriga atualmente a administração do Museu do Folclore.
4.13. Depósito de Produtos Acabados (DPA): a gigantesca edificação foi projetada pelo escritório Rino Levi Arquitetos Associados em 1971. Erguida em concreto armado com vedação em alvenaria de tijolos e localizada próximo ao Grupo Escolar, foi construída apenas parcialmente. Há alguns anos, teve trechos demolidos e os remanescentes foram reciclados para abrigar o Centro de Formação do Educador (CEFE), ligado à Secretaria de Educação.
4.14. Grupo Escolar Tecelagem Parahyba: projetada pelo arquiteto Carlos Barjas Millan, provavelmente no mesmo período da residência para funcionários (1950-51), fazia parte do programa de obras de assistência aos operários da Tecelagem Parahyba. Continua abrigando um estabelecimento de ensino (Escola Municipal de Ensino Fundamental Vera Lúcia Carnevalli Barreto), porém a edificação sofreu muitas alterações significativas.
4.15. Muros remanescentes da antiga portaria: Nas margens da Av. Olivo Gomes, nas laterais do acesso à Travessa Constantino Pintus, encontram-se os dois muros remanescentes da antiga portaria de acesso à propriedade da família Gomes, projetada pelo escritório Rino Levi Arquitetos Associados em 1974. Trata-se de duas belíssimas estruturas executadas em tijolos cerâmicos dispostos de maneira intercalada, criando saliências e reentrâncias, encimados, nas extremidades, por placas de concreto aparente com letras vazadas, adotando uma tipografia singular. No muro da esquerda, inscreve-se “Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo S.A.”, enquanto no muro da direita, está escrito “Grupo Escolar Tecelagem Parahyba”. O resultado é uma composição magnífica que denota o cuidado artístico que caracteriza todo o conjunto e que, a despeito da demolição da antiga portaria, segue sendo importância referência na paisagem, especialmente pela localização, em uma avenida de grande movimento de veículos.
4.16. Usina de Leite Parahyba e sua portaria: projetadas por Rino Levi em 1963 e construídas em 1965, constituem dos poucos elementos do conjunto que são de propriedade particular atualmente. Possuía projeto paisagístico de Roberto Burle Marx. Trata-se de um empreendimento simbólico da diversificação das atividades da Tecelagem, voltado ao beneficiamento do leite produzido na fazenda, incluindo instalações de pausterização e engarrafamento de leite, produção e armazenamento de manteiga e queijo, casa de máquinas e administração. A edificação, de elevado valor arquitetônico, encontra-se em processo de arruinamento. Foi possível visitá-la e fotografá-la durante a visita técnica realizada no último mês de outubro, quando foi possível constatar que ainda preserva plenamente a sua leitura volumétrica e espacial. A edificação que abrigava a portaria e a cabine elétrica e a caixa d’água anexa encontra-se em processo de arruinamento. Os azulejos artísticos desenhados em 1965 por Luís Roberto Carvalho Franco que revestiam as faces sul e norte da portaria foram removidos e destruídos pelo proprietário em 2004.
4.17. Campo de Futebol do Clube ADC Parahyba: A nordeste da Usina de Leite Parahyba, localiza-se o Campo de Futebol da Associação Desportiva Classista Parahyba. Não foi possível vistoriar essa obra e as informações aqui apresentadas se baseiam naquelas constantes do processo de tombamento. Trata-se de propriedade privada, atualmente em litígio judicial. Embora Rino Levi tivesse elaborado um projeto para o clube em 1954, daquele projeto somente o campo de futebol foi executado. O salão e as piscinas existentes não correspondem àqueles projetados por Levi. Merece destaque a arquibancada com bancos de concreto assentados sobre os degraus da arquibancada.
4.18. Residência Olivo Gomes: projeto de Projeto de Rino Levi e Roberto Cerqueira César, executado entre 1949 e 1951. A escolha das cores adotadas na residência foi feita pelo artista plástico Francisco Rebolo. Trata-se, indiscutivelmente, da obra arquitetônica mais relevante do conjunto. Como se demonstrará mais à frente, trata-se de uma das residências modernas mais importantes realizadas no Brasil e que se encontra em bom estado de conservação. A edificação abriga três painéis de Roberto Burle Marx executados na década de 1950: um na fachada sul, próxima ao acesso principal, e as outras duas na fachada norte, ocupando as duas faces de um mesmo suporte: uma interna, no salão de jogos, e outra externa. O painel localizado na fachada sul possui 3,17 x 17,55 m e é formado por azulejos brancos de 20 x 20 cm pintados à mão criando uma abstração geométrica tipo xadrez com variações de tons de azul. Encontra-se em excelente estado de conservação, faltando apenas um azulejo localizado na extremidade inferior esquerda, no qual se encontrava a assinatura de Burle Marx. Os painéis localizados na fachada norte, nas duas faces de um mesmo suporte, possuem 2,24 x 12,87 m e são ambos abstrações geométricas formadas por pastilhas de vidro de 2 x 2 cm. Naquele localizado externamente predomina a cor vermelha, estando presentes ainda o cinza, preto, verde e azul anil. No painel localizado no interior, voltado para a sala de jogos, predomina a cor azul anil, estando presentes ainda o azul cobalto, branco, vermelho, bordô e cinza. Ambos encontram-se em excelente estado de conservação.
4.19. Jardins da Residência Olivo Gomes e viveiro de pássaros: projetados por Roberto Burle Marx a partir da década de 1950, encontram-se bem preservados. Nos anos 1950, foi executado o jardim a sul da residência, próximo aos dormitórios e salão de jogos, no nível inferior do terreno, marcado pelo amplo espelho d’água. Em 1966, Burle Marx projetou o jardim localizado a norte da residência, no nível superior do terreno, incluindo o anfiteatro e a piscina infantil. Em 2008, Haruyoshi Ono, do escritório Burle Marx & Cia. Ltda., elaborou o projeto de restauração dos jardins, que deverá ser implementado para a sua preservação. O antigo viveiro de aves, projetado por Rino Levi na década de 1950, localiza-se nos jardins do nível inferior, a oeste do bloco de dormitórios da residência. Foi construído em concreto aparente e possui um embasamento de pedra que corresponde a uma extensão do muro de contenção. A laje de cobertura, sustentada por pilares circulares de concreto armado, é vazada com pergóla de concreto e seu perímetro é fechado por uma tela de proteção. No seu interior, existe um pequeno lago. Esta pequena construção é utilizada hoje como viveiro de plantas e encontra-se bem preservada, embora a Prefeitura a tenha pintado de verde nos dias que antecederam a nossa vistoria técnica, no último mês de outubro. A pintura foi imediatamente revertida após solicitada da Fundação Cultural Cassiano Ricardo.
4.20. Casa da Ilha: antiga casa de operários da fábrica que já existia na década de 1930 e que foi reformada para servir de residência de Maria Lúcia “Malu” Gomes, neta de Olivo Gomes, após seu matrimônio. Abriga hoje o Centro de Referência Ambiental (CRA) de São José dos Campos. A Casa da Ilha localiza-se em uma ilha dentro de um lago situado a noroeste da residência principal. Não foi possível visitá-la durante a vistoria técnica, pois a pequena ponte que lhe dá acesso encontrava-se interditada. Não obstante, foi possível avaliá-la a partir do material constante do processo de tombamento. Trata-se de uma residência térrea, de autoria desconhecida e sem grandes méritos arquitetônicos, porém de relevante valor histórico no contexto da Tecelagem Parahyba e da Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo.
4.21. Ordenha: pavilhão isolado, localizado em meio à vegetação, e que se encontra sem uso e em processo de arruinamento. O pavilhão da Ordenha foi projetado por Rino Levi na década de 1950, a partir de antigas casas geminadas de empregados da fazenda, para fornecer leite para a Cooperativa de Laticínios de São José dos Campos. Funcionava também como estábulo e abrigava, além da ordenha mecânica, uma pequena maternidade, com quatro baias localizadas na entrada da construção, que terminaram sendo utulizadas para isolamento e tratamento de vacas doentes. A Ordenha possuía um sofisticado sistema de aspersão de água através de encanamentos instalados embaixo do piso e na estrutura nervurada elevada, voltado a refrescar as vacas, vindas da Europa e não completamente adaptadas ao clima tropical. A ordenha era feita mecanicamente, o que permitia que um único funcionário, controlando o equipamento, ordenhasse simultaneamente oito vacas. A ordenha foi desativada na década de 1980.
4.22. Olaria: pavilhão isolado, localizado em meio à vegetação, sem uso e em processo de arruinamento. Construído entre as décadas de 1930 e 1940 para fornecer os tijolos para as construções da fábrica, então em expansão. Os sete empregados moravam em frente à olaria, em casas iguais que foram demolidas ou aproveitadas em outras edificações. Deixou de produzir tijolos na década de 1950, quando o pavilhão foi sucessivamento transformado em depósito de ferramentas, casa de ração e cocheira.
4.23. Departamento de Inseminação Artificial: pavilhão isolado, localizado em meio à vegetação, sem uso e em processo de arruinamento. Construído em 1930 como casa de colono, foi reformada e ampliada para abrigar as atividades de inseminação artificial da fazenda. Possuía um inovador sistema de congelamento de sêmen, pioneiro no Brasil. Foi desativado em meados da década de 1970.
4.24. Residência de Carlos Millan: projeto de Carlos Barjas Millan, Luiz Roberto Carvalho Franco e Sidney S. Fonseca, à época estudantes do Mackenzie que eram amigos de Clemente Gomes. Eram duas casas idênticas, construídas entre 1950 e 1951 para servir de residência aos gerentes da Tecelagem Parahyba. Uma delas foi demolida e restou somente esta, que abriga atualmente a Casa de Cultura Caipira Zé de Mira. Localiza-se, hoje, a oeste da Avenida Olivo Gomes, cuja abertura segregou este imóvel do restante da fazenda, à qual pertencia originalmente. Encontra-se preservada, apesar de algumas intervenções pontuais, e em bom estado de conservação, com exceção do painel de blocos cerâmicos parcialmente destruído. Alguns anexos foram construídos no terreno. Embora a equipe da Superintendência do Iphan em São Paulo não tivesse ainda conseguido visitar este imóvel, conseguimos vistoriá-lo e fotografá-lo no último mês de outubro.
4.25. Capela Nossa Senhora da Conceição: projeto do arquiteto Ricardo Veiga, construída entre 1972 e 1973. Como a residência de Carlos Millan, localiza-se, hoje, a oeste da Avenida Olivo Gomes, cuja abertura segregou esta edificação do restante da fazenda. Encontra-se sem uso e em bom estado de conservação, preservando suas características arquitetônicas.
4.26. Vila Operária (“Vila Nova”): conjunto residencial de operários da Tecelagem, construído pelos próprios funcionários no extremo noroeste do conjunto e já bastante descaracterizado. Possui importância histórica como elemento relevante dentro do conjunto.
Deve-se destacar que, embora não tenha sido possível visitá-lo, o hangar para aviões, projetado pelo escritório Rino Levi Arquitetos Associados em 1965 e com uma interessante solução arquitetônica, publicado em revistas especializadas no Brasil e no exterior, que se localizava a nordeste do conjunto, nas proximidades do rio Paraíba do Sul, junto à pista de pouso, encontra-se quase que totalmente destruído. Por esse motivo, foi excluído do conjunto.
5. Valores atribuídos ao bem e justificativa para o tombamento federal
O conjunto já se encontra, em alguma medida, salvaguardado pelo Município (uma área bastante ampla) e pelo Estado (restrito à residência Olivo Gomes e jardins). Essas proteções, contudo, não têm sido suficientes para garantir a sua preservação, como demonstram as demolições realizadas pelo proprietário da Usina de Leite Parahyba naquela edificação e na portaria anexa, incluindo a destruição total do painel de azulejos da antiga portaria da Usina de Leite Parahyba, bem como o desaparecimento quase completo do antigo hangar de aviões e a demolição da Casa de Bonecas, após desabamento parcial, para citar alguns exemplos (4).
5.1. A Zona de Preservação Municipal
Em 05 de janeiro de 2004, através da Lei nº 6.493, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Paisagístico e Cultural do Município de São José dos Campos (COMPHAC) declarou como Zona de Preservação (ZP) o “complexo formado pela antiga Tecelagem Parahyba e a Fazenda Santana do Rio Abaixo”. Segundo a mesma lei, “As Zonas de Preservação são zonas que regulamentam o Uso e Ocupação do Solo em regiões envoltórias de bens de interesse histórico, cultural, arquitetônico, paisagístico ou ambiental, visando a sua valorização, proteção e preservação”. A Zona de Preservação em questão está subdividida em dois Setores de Preservação: Setor de Preservação da Tecelagem Parahyba (SP-TP) e Setor de Preservação da Residência Olivo Gomes (SP-ROG). Os imóveis, obras de arte e paisagismo incluídos nestes setores estão classificados como Elementos de Preservação (EP), divididos em 3 níveis de preservação: EP-1, que devem ser preservados totalmente; EP-2, que devem ser preservados mantendo-se as características básicas de sua arquitetura; e EP-3, nos quais devem ser preservadas as características do conjunto arquitetônico, urbano ou paisagístico. Os seguintes imóveis foram declarados como EP-1: a Residência Olivo Gomes e os três painéis integrados de Roberto Burle Marx, o viveiro para aves, a casa de bonecas, o paisagismo e o anfiteatro, todos incluídos no SP-ROG; e, no SP-TP, o painel de Burle Marx localizado no Galpão Gaivota e o painel da portaria da Usina de Leite. Estão classificados como EP-2 os seguintes imóveis: as instalações industriais de 1925, o conjunto de habitações unifamiliares (ambos no SP-TP), o Galpão para Máquinas e Equipamentos, a Usina de Leite Paraíba, o Depósito de Produtos Acabados, a Ordenha, a Capela Nossa Senhora da Conceição e a Portaria da Usina de Leite (elementos de preservação isolados). Estão classificados como EP-3 os seguintes imóveis: estrutura portante de taipa de pilão, arquibancadas do campo de futebol da ADC Paraíba, Escola Municipal Vera Lúcia Carnevalli Barreto (elementos de preservação isolados). Fora do perímetro da ZP, também estão preservados isoladamente o hangar para aviões e a residência localizada na Rua Rui Barbosa 936/970, projetada por Carlos Millan.
5.2. O Tombamento Estadual da Residência Olivo Gomes e seu parque ajardinado
Em 2013, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
do Estado de São Paulo (Condephaat) promoveu o tombamento da Residência Olivo Gomes e
seu parque ajardinado. Conforme a Resolução de tombamento SC 97, de 23 de outubro de
2013, as justificativas primordiais para o tombamento foram as de que, em concepção única de 1950, a residência de projeto do arquiteto Rino Levi e os painéis artísticos e o paisagismo desenhados por Roberto Burle Marx constituem um exemplar de destaque na produção de seus autores, reconhecidos por suas contribuições para a cultura brasileira do século 20 e em particular a história da arquitetura. Esta resolução ainda destaca que a Casa Olivo Gomes é remanescente de um programa de residência de lazer de elite da segunda metade do século 20, cuja solução integra espaços de residência, bosques, jardins, áreas de lazer e, com muita proximidade, espaços de produção fabril, além da paisagem que a circunda.
5.3. A heterogeneidade do conjunto como valor
O bem cujo tombamento ora analisamos é constituído por edificações, espaços abertos e paisagens heterogêneos, construídos em diferentes períodos e com distintas finalidades, resultando em um conjunto diversificado, que inclui: um complexo industrial construído a partir da década de 1920 e que preserva elementos da sua maquinaria; uma das mais importantes casas modernas brasileiras de meados do século 20, com três painéis integrados de excepcional valor artístico; um jardim projetado pelo mais renomado paisagista do mundo do período; dentre muitos outros elementos de interesse arquitetônico, histórico e paisagístico. Há que se registrar, igualmente, que estamos tratando de um conjunto que, originalmente, se encontrava na periferia urbana, no limite entre o urbano e o rural, e que atualmente está absolutamente integrado à cidade, tendo o jardim da antiga fazenda se transformado em importante parque público, intensamente frequentado pela população joseense.
A cidade é como um palimpsesto, isto é, resulta das contribuições de sucessivas gerações, que a transformaram e adaptaram continuamente para atender às suas demandas e aos seus valores. A cidade atual reflete essa superposição de tempos. Como bem lembrou o arquiteto e professor italiano Roberto Pane, não podemos “ignorar a evidente realidade histórica da estratificação que se realizou no passado, configurando, com os seus contrastes, o ambiente que desejamos salvar”; é preciso que “o ambiente seja percebido como uma obra coletiva a ser preservada enquanto tal; e, portanto, não como integral conservação de uma soma de particularidades, como se entende na conservação de uma edificação única” (5).
É desse modo que o conjunto em tela deve, a meu ver, ser compreendido. Para além da excepcionalidade de edificações como a residência Olivo Gomes, cujos méritos comentaremos mais adiante, é como obra coletiva que devem ser interpretados o valores deste singular conjunto arquitetônico e paisagístico: como resultado das contribuições tão diferentes de Vicente de Finis, Ricardo Severo, Rino Levi, Roberto Cerqueira César, Luiz Roberto Carvalho Franco, Carlos Barjas Millan, Roberto Burle Marx, Francisco Rebolo, Ricardo Veiga e tantos outros arquitetos e artistas de diferentes gerações, mas também operários e jardineiros anônimos e, evidentemente, os empreendedores que promoveram e financiaram sua construção e suas sucessivas transformações, como Olivo Gomes e seus filhos Clemente e Severo.
Não se trata, portanto, de compreender este conjunto apenas como um exemplar do patrimônio industrial, como a Vila Ferroviária de Paranapiacaba (SP), ou de conjunto urbano moderno, como Cataguases (MG) ou Vila Serra do Navio (AP), ou de um jardim histórico moderno, como as praças do mesmo Burle Marx em Recife (PE). É cada uma dessas coisas e, também, uma outra, resultante da coexistência e interação de todas elas; uma coexistência que não é apenas territorial, mas consequência da iniciativa empreendedora de uma mesma empresa ao longo de aproximadamente meio século.
5.4. Os valores atribuídos ao conjunto
A arquiteta Carolina Di Lello, no Parecer Técnico nº 23/2020/CGID/DEPAM, em que avalia a proposta de tombamento que ora analisamos, afirma que o Conjunto Tecelagem Parahyba se enquadra nos seguintes critérios previstos na Portaria do Iphan n° 375/2018, que Institui a Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan:
“Critério I – Representar a capacidade criativa dos grupos formadores da sociedade brasileira, com expressivo nível simbólico ou expressivo grau de habilidade artística, técnica ou científica – A tecelagem Parahyba possui valor artístico que se expressa por meio dos projetos arquitetônicos, paisagísticos e artísticos assinados por Rino Levi e Burle Marx (incluindo os painéis cerâmicos), projetos considerados exemplares de destaque no conjunto da obra de seus autores, reconhecidos por suas contribuições para a cultura brasileira do século 20, dentro do movimento moderno, em particular para a história da arquitetura.
Critério IV: Representar ou ilustrar um estágio significativo de grupos formadores da sociedade brasileira – O conjunto possui valor histórico por materializar a historicidade do espaço urbano, das próprias concepções da classe industrial paulista e de intermediação das relações de classe no país, expressas pelas concepções arquitetônicas de diferentes fases da industrialização durante o século 20.
Critério V: Representar a interação humana com o meio ambiente, com expressivo nível simbólico ou expressivo grau de habilidade artística, técnica ou científica – o conjunto da tecelagem possui valor paisagístico percebido como paisagem industrial bem preservada, resultado de várias fases do desenvolvimento econômico no século 20, pela qual compreende-se a dialética entre o homem e sua ação sobre a natureza, através da construção de seu território, implantação das edificações, bem como o próprio jardim de Burle Marx, caracterizado pela total integração da arquitetura à paisagem, assegurando qualidades estéticas e ambientais à uma atividade que sempre esteve envolta no imaginário urbano pelos ambientes insalubres e esfumaçados”. (fls. 775-776)
Estando de acordo com os valores artístico, histórico e paisagístico identificados no parecer técnico supracitado, considero importante a eles acrescentar outros valores identificados pelo professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses em seu artigo “O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas” (6).
Valores cognitivos
Segundo Meneses, os valores cognitivos são relacionados ao bem enquanto documento. Trata-se de “um valor de fruição basicamente intelectual”, existente quando o bem “constituir oportunidade relevante de conhecimento – qualquer conhecimento” (7).
Neste sentido, o conjunto em questão corresponde à materialização do processo de industrialização do Brasil e, mais especificamente, do estado de São Paulo. Embora São Paulo seja o estado mais industrializado do país, dentre os bens do patrimônio industrial paulista tombados pelo Iphan estão engenhos, estações e vila ferroviária, mas não há ainda um conjunto fabril. Trata-se, ademais, do reconhecimento do papel da indústria – e, mais especificamente, da Tecelagem Parahyba – na expansão e no crescimento da cidade de São José dos Campos.
Célio Chaves e Antônio Luiz Dias Andrade, o “Janjão”, no documento intitulado “Justificativa para desapropriação da Tecelagem Parahyba”, já defendiam, em 1996, quando do pedido de tombamento deste conjunto, que dentre os “principais de valores [que] podem ser atribuídos ao conjunto das instalações da Tecelagem Paraíba, capazes de justificar a proposta de sua desapropriação, para efeito da preservação, valorização e reutilização social de seus espaços e edifícios”, estava “o seu significado histórico, inscrevendo-se a indústria entre as pioneiras de São José dos Campos, havendo alcançado no tempo, prestígio e renome internacional, representando, outrossim, fator relevante para o desenvolvimento da cidade, imprimindo-lhe a fisionomia urbana e inserindo-se intensamente na vida social, econômica e cultural do Município”. (fl. 11)
Ademir Pereira dos Santos registra que “A Tecelagem Parahyba foi a segunda fábrica de grande porte a se instalar em São José dos Campos” (8). Implantada a partir de 1925, foi precedida pela Fábrica de Louças Santo Eugênio (1920). A partir dessas duas experiências pioneiras, inúmeras outras indústrias se instalaram na cidade, de áreas tão diferentes como laticínios (Cooperativa Central de Laticínios, em 1935, e Vigor, em 1943) e cerâmica (Weiss, em 1941). A partir da instalação da Rhodia (1946), chegam as grandes empresas estrangeiras, como a Johnson & Johnson (1954), Ericsson (1954), Kanebo (1956), General Motors (1957), Bendix (1961) e Kodak (1969), além de grandes empresas nacionais, como Alpagartas (1959) e as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (1962), para citar somente algumas daquelas implantadas em São José dos Campos até o final da década de 1960.
Valores formais ou estéticos
Segundo Ulpiano Meneses, os valores formais ou estéticos correspondem à percepção do bem como “oportunidade qualificada para gratificar sensorialmente e tornar mais profundo o contato de meu eu como o mundo externo ou transcendente” (9):
“Trata-se, no caso, do efeito da presença, nos objetos, de atributos capazes de aguçar a percepção, de levar a uma apreensão mais profunda, de induzir a produção e a transmissão mais amplas de sentidos – alimentados pela memória, convenções e outras experiencias – qualificando minha consciência e meu agir” (10).
Citando novamente Célio Chaves e Janjão, no caso específico da Tecelagem Parahyba:
“não nos é permitido desconhecer o conjunto das obras de arquitetura ali encontrado, quer considerando-se os edifícios remanescentes da antiga Tecelagem – testemunhos representativos e [sic] nossa primeira arquitetura industrial, reproduzindo os padrões clássicos europeus, das velhas fábricas de alvenaria aparente com suas respectivas estruturas metálicas que suportavam as indefectíveis coberturas serrilhadas em ‘sheds’, que marcaram os horizontes dos bairros industriais – quer consideradas as obras de Rino Levi e Burle Marx, pioneiros de nossa moderna arquitetura.
A participação de arquitetos, artistas, paisagistas comprometidos com o ideário de vanguarda em sua época, nos revela o interesse e o cuidado de seus proprietários, referindo-nos especialmente a Olivo Gomes e seus filhos, Severo e Clemente, em fazer da indústria, um modelo. Padrões que viessem não somente a representar fator de progresso e desenvolvimento social e econômico, mas também assegurar qualidades estéticas e ambientais a uma atividade que sempre esteve envolta no imaginário urbano pelos ambientes lúgubres e esfumaçados, ou como afirmou Lúcio Costa, certa vez, que o novo mundo descortinado pelo desenvolvimento moderno industrial pudesse vir a ser senão mais justo, mas também mais belo”. (fl. 11)
O conjunto inclui exemplares significativos de diversas expressões arquitetônicas e artísticas, do ecletismo das edificações industriais e das residências operárias dos anos 1920 ao modernismo das construções projetadas por Rino Levi ou Carlos Millan e aos painéis artísticos concebidos por Burle Marx nos anos 1950 e 1960, passando ainda pelas casas neocoloniais cujo desenho é atribuído a Ricardo Severo.
Do ponto de vista dos valores formais ou estéticos, merece destaque inconteste a arquitetura e o paisagismo modernos, em especial a exitosa parceria entre Rino Levi e Burle Marx no Galpão Gaivota e, sobretudo, na residência Olivo Gomes, como demonstra a fortuna crítica que estes projetos receberam, no Brasil e no exterior.
Henrique Mindlin, em Modern Architecture in Brazil, afirmava que
“Um industrial empreendedor [...] aqui deu ao arquiteto uma oportunidade plena de se autoexpressar”. Mindlin observa que, nesta obra, “Um espírito de investigação, despido de preconceitos e reforçado por fundamental bom senso, é adotado para buscar a integração em cada detalhe da construção, acabamentos e mobiliário” (11).
Em 1956, a revista Habitat, dirigida por Lina Bo Bardi, apresenta a residência Olivo Gomes como
“um dos pontos mais altos da produção do arquiteto, [...] que esmerou-se num gesto de plena liberdade criadora: não havia códigos e restrições edilícias nessa propriedade [...]”, complementando que “A integração orgânica na paisagem foi realizada, com um projeto excitante, mas contido na ordenação do espaço, formado sem limitações, senão na própria medida de sua grandeza” (12).
Yves Bruand, em seu livro sobre a arquitetura moderna brasileira, afirma que a residência Olivo Gomes era
“uma residência rica, isolada em pleno campo, consequentemente não submetida às limitações de toda ordem das obras urbanas; a liberdade de expressão dos autores do projeto era completa. Ora, bem longe de pensar numa criação intimista, voltada para dentro, Rino Levi e Roberto Cerqueira Cesar imaginaram uma obra amplamente aberta para a paisagem, onde ressurge todo o vocabulário apreciado pelo movimento brasileiro: blocos puros de contornos retilíneos, pilotis, paredes de vidro protegidas por grandes telhados salientes, terraço em balanço, escada em caracol e degraus suspensos, cerâmicas murais e jardim artificial de Burle Marx exercendo um papel de transição com o contexto natural, mas marcando bem a recusa de submeter-se cegamente a ele” (13).
Renato Anelli, na principal publicação dedicada até hoje à obra de Levi, afirma que “a casa é concebida como um posto de observação da paisagem”, já que “Sua estrutura linear permite que todos os ambientes se abram para a vista principal” (14). Anelli observa que foi neste projeto que o arquiteto e sua equipe
“realizam seu melhor exemplo de síntese das artes. Nada é supérfluo: desde o paisagismo e os painéis de azulejo e mosaico, feitos por Burle Marx, até o cromatismo das paredes, o mobiliário e a iluminação, tudo se articular organicamente, desempenhando alguma função na realização do partido do projeto” (15).
Anelli destaca ainda “O cromatismo das paredes, especialmente das internas”, com cores escolhidas pelo artista Francisco Rebolo, que “cumprem função arquitetônica ao destacar planos internos que qualificam o ambiente” (16).
O arquiteto e historiador do paisagismo Guilherme Mazza Dourado destaca as “sofisticadas paredes corrediças” dos dormitórios, “compostas a partir de painéis que recolhiam na vertical sobre o vão, possibilitando abri-los totalmente aos entornos” (17).
Quanto aos jardins da residência Olivo Gomes, o diplomata e crítico de arquitetura André Corrêa do Lago os inclui “entre as obras primas de Burle Marx”, junto com aqueles das residências de Odette Monteiro (1948), de Edmundo Cavanellas (1954) e de Clemente Gomes (1984) (18).
Segundo Guilherme Mazza Dourado,
“No capítulo das parcerias firmadas por Burle Marx, este encargo representou uma oportunidade excepcional, em que o paisagista pôde estabelecer uma intensa cumplicidade criativa com arquitetos, como raras vezes já havia sido possível e viria a acontecer. Burle Marx encontrava em Rino Levi e Roberto Cerqueira César interlocutores dos mais sensiveis às possibilidades que seu trabalho em paisagismo poderia oferecer na criação de entornos altamente qualificados para a arquitetura, numa perspectiva bem distinta da jardinagem como acessório ou do anódino embelezamento com plantas praticado frequentemente até então no âmbito residencial.
[...] Dever-se-ia considerar a necessidade de preservar as áreas domésticas da rotina fabril, providenciando-se um conveniente afastamento entre os setores, além de acessos independentes.
[...] Os jardins que envolviam a residência eram elementos destacados que graduavam múltiplas possibilidades de entendimento das paisagens e geografia da região. O lançamento de massas vegetais com desenhos curvilíneos e alturas controladas proporcionava sutis enquadramentos e formas de perceber o cenário natural a distância, sem buscar necessariamente mimetizá-los ou concorrer com suas vastas escalas, externando de maneira harmônica as diferenças e os contrastes entre os espaços ajardinados e o ambiente natural” (19).
A integração entre arquitetura, paisagismo e obras de arte integradas levou, na residência Olivo Gomes, a ideia de síntese das artes a um novo patamar. O próprio Burle Marx registraria que o painel de azulejos “Tinha papel importante na arquitetura e Rino Levi alertou-me para o fato de que a cor dos azulejos forçosamente ligava-se à cor das folhas e das plantas escolhidas. A dominante azul do painel unia-se aos ocres da arquitetura. Foram então utilizadas plantas de cor violeta e flores amarelas e vermelhas” (20). Edifício, mural e jardim são partes de uma mesma composição artística, como instrumentos de uma orquestra executando a mesma sinfonia.
O tema da síntese das artes foi fundamental na constituição da arquitetura moderna no Brasil. Para Lúcio Costa,
“o importante é que a própria arquitetura seja concebida e executada com consciência plástica, vale dizer, que o arquiteto seja, ele próprio, artista. Porque só então a obra do pintor e do escultor terá condições de integrar-se no conjunto da composição arquitetônica como um de seus elementos constitutivos, embora dotado de valor plástico intrínseco autônomo” (21).
O projeto da residência Olivo Gomes foi publicado, à época, nas principais revistas de arquitetura do mundo: Architectural Design, de Londres; Architectural Record, de Nova York; L’Architecture d’Aujourd’hui, de Paris; Domus, de Milão; Nuestra Arquitectura, de Buenos Aires; Arquitectura, de Montevidéu; além das principais revistas especializadas brasileiras, como Acrópole e Habitat, de São Paulo; Arquitetura e Engenharia, de Belo Horizonte.
O Galpão para Máquinas e Equipamentos (Galpão Gaivota) é outro importante exemplo da feliz integração entre arquitetura e arte e foi publicado em importantes periódicos especializados no Brasil e no exterior, como Acrópole, Habitat, L’Architecture d’Aujourd’hui e o espanhol Informes de la Construcción.
Os valores formais ou estéticos podem ser igualmente identificados em outras construções do conjunto, como a Usina de Leite Parahyba, a residência projetada por Carlos Millan, os muros laterais da antiga portaria e até mesmo o pequeno viveiro de aves, pela sua integração com os jardins.
Deve-se registrar que outras duas obras das quais Rino Levi é autor principal ou coautor foram tombadas, em anos recentes, pelo Iphan: o edifício sede do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo), em 2015, e o Teatro Cultura Artística, em 2016, ambos na cidade de São Paulo. Os jardins do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, e do conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte; o Sítio Roberto Burle Marx, no estado do Rio de Janeiro; e as praças do Recife são algumas das obras de Roberto Burle Marx tombadas pelo Iphan. Destaque para o Sítio Roberto Burle Marx, recentemente inscrito na Lista do Patrimônio Mundial Unesco.
Valores afetivos
Os valores afetivos são, segundo Meneses, “Os valores que costumamos chamar de históricos (mas relacionados à memória e não a conhecimento controlado)”. Estão relacionados com a “formulação de autoimagem e reforço de identidade. São afetivos, pois constam de vinculações subjetivas que se estabelecem com certos bens”; trata-se de “carga simbólica e de vínculos subjetivos, como o sentimento de pertença ou identidade”; “Envolve mecanismos complexos, como as representações sociais e o imaginário social” (22).
O arquiteto e professor italiano Marco Dezzi Bardeschi destacou que as antigas fábricas são, nas confusas paisagens urbanas e suburbanas contemporâneas, “novos monumentos, os Grandes Testemunhos da primeira era da mecanização e da engenharia territorial”; são “as catedrais laicas do trabalho”, que se tornam “os novos polos exemplares de referência da identidade histórica de um território” (23).
A importância do conjunto em questão para a comunidade joseense é indiscutível, devido ao papel que a Tecelagem Parahyba possui na constituição da memória coletiva dos habitantes locais, assim como à importância de alguns elementos do conjunto como marcos singulares da paisagem urbana de São José dos Campos. O fato de que a Fundação Cultural Cassiano Ricardo, ente municipal afeito às questões culturais, e o Museu do Folclore, dentre outras instituições do campo da cultura, estejam localizadas no complexo apenas reforça os valores afetivos e o papel deste conjunto arquitetônico e paisagístico no fortalecimento da identidade local.
Valores pragmáticos
Os valores pragmáticos, para Meneses, correspondem a compreender “como suas condições de uso disponível são capazes de relevantemente qualificar sua prática, por causa também de valores pragmáticos. [...] são valores de uso percebidos como qualidades. Tais valores são comumente marginalizados ou ignorados entre nós, com significativa frequência” (24).
O potencial de uso, de apropriação das edificações do conjunto que hoje se encontram desocupadas ou subutilizadas é imenso. Novamente recorremos a Dezzi Bardeschi, ao afirmar que “a transmissão às novas gerações de um patrimônio coletivo implica a consideração dos valores de uso compatíveis” pois “para conservar e transmitir ao futuro é necessário manter em uso o bem” (25).
A recente adaptação do antigo galpão de beneficiamento de arroz e café em Startup São José é um exemplo, no conjunto, de como um novo uso foi capaz de dar nova vida à edificação, sem prejuízo de seus valores históricos e arquitetônicos.
6. Proposta para o tombamento
Sou, portanto, de parecer favorável ao tombamento do bem denominado “Conjunto Arquitetônico e Paisagístico das antigas Tecelagem Parahyba e Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo”, localizado em São José dos Campos, no estado de São Paulo.
Sobre a denominação do bem, me parece pertinente acrescentar à “Tecelagem Parahyba” a referência à Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo, considerando que, ainda que correspondessem a empreendimentos vizinhos e pertencentes à mesma família, eram complementares e mantinham certo grau de independência. Até mesmo os elementos remanescentes dos antigos muros da antiga portaria de acesso à fazenda denunciam essa duplicidade: o muro do lado esquerda assinala o acesso à Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo S.A., enquanto o muro do lado direito sinaliza o Grupo Escolar Tecelagem Parahyba. As distintas ambiências encontradas no núcleo original da tecelagem, densamente construída, e na área da fazenda, pouco construída e densamente vegetada, também justificam essa diferenciação. O fato de que é na fazenda que se encontram alguns dos bens arquitetônicos mais relevantes do conjunto, como a residência Olivo Gomes e os jardins de Burle Marx, reforça a importância de incluir a “Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo” na denominação do bem a ser tombado.
6.1. Sobre a inscrição nos Livros de Tombo
No Parecer Técnico nº 23/2020/CGID/DEPAM, da então Coordenadora-geral de identificação e reconhecimento, a arquiteta Carolina Di Lello, recomenda-se que seja feita a inscrição do bem nos seguintes livros de tombo:
Histórico – por materializar a historicidade do espaço urbano, das próprias concepções da classe industrial paulista e de intermediação das relações de classe no país, expressas pelas concepções arquitetônicas de diferentes fases da industrialização durante o século 20.
das Belas artes – por possuir valor artístico que se expressam por meio dos projetos arquitetônicos, paisagísticos e artísticos assinados por Rino Levi e Burle Marx (incluindo os painéis cerâmicos), considerados exemplares de destaque no conjunto da obra de seus autores, reconhecidos por suas contribuições para a cultura brasileira do século XX, dentro do movimento moderno, em particular para a história da arquitetura.
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico – por seu valor paisagístico percebido
como paisagem industrial bem preservada, resultado de várias fases do desenvolvimento econômico no século 20, pela qual compreende-se a dialética entre o homem e sua ação sobre a natureza, através da construção de seu território, implantação das edificações, bem como o próprio jardim de Burle Marx, caracterizado pela total integração da arquitetura à paisagem, assegurando qualidades estéticas e ambientais à uma atividade que sempre esteve envolta no imaginário urbano pelos ambientes insalubres e esfumaçados. (fl. 776)
A Procuradora Federal junto ao Iphan Genésia Marta Alves Camelo, no Parecer nº 00214/2020/PROC/PFIPHAN/PGF/AGU, datado de 23 de junho de 2020, recomenda que, com relação à proposta acima, “a área técnica fundamentadamente verifique se de fato se mostra adequado proceder ao tombamento de todo o Conjunto Tecelagem Parabyba [sic] nos livros de tombo histórico, bela artes e arqueológico, etnográfico e paisagístico ou se mostra adequado especificar quais os bens integrantes do Conjunto Tecelagem Parayba [sic] contemplam de fato os valores pertinentes a cada livro, especificando os que devem ser inscritos em cada livro”, recordando ainda que “cabe ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural proceder à valoração da motivação para a realização do ato administrativo de tombamento”. (fl. 793)
Isto posto, sou de parecer que a totalidade do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da antiga Tecelagem Parahyba e Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo deva ser inscrito no Livro de Tombo Histórico e no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Mesmo as edificações arruinadas, como a ordenha, a olaria e o Departamento de Inseminação Artificial (DIA), devem ser incluídas no conjunto tombado por constituírem importantes testemunhos da diversidade de atividades desenvolvidas na fazenda e, no caso do DIA, porque foi pioneiro no Brasil na adoção da inseminação artificial. Esse é o mesmo motivo para a inclusão, no conjunto tombado, de edificações que se encontram, hoje, em grande medida descaracterizadas, como o Grupo Escolar Tecelagem Parahyba, o antigo Depósito de Produtos Acabados e a Vila Operária, assim como de edificações desprovidas de valores arquitetônicos significativos, como os silos, a Usina de força/casa de bombas e o estábulo.
Entendo, contudo, que no Livro de Tombo de Belas Artes devem ser inscritas apenas as obras e elementos de maior valor artístico e que se encontrem preservadas em suas características, a saber: as instalações industriais da Tecelagem Parahyba; o conjunto de habitações unifamiliares construído para os funcionários da fábrica na década de 1920; o antigo consultório médico; o galpão de beneficiamento de arroz e café; o Galpão para Máquinas e Equipamentos (Galpão Gaivota), incluindo o painel de Burle Marx; a Casa da Gerência; a Casa de Hóspedes; os muros remanescentes da antiga portaria; a Usina de Leite Parahyba; a residência Olivo Gomes, incluindo os três painéis de Burle Marx; os jardins da residência Olivo Gomes, incluindo o antigo viveiro de pássaros, os espelhos d’água e o anfiteatro; e a residência de Carlos Millan.
A decisão de não inscrever a totalidade do conjunto arquitetônico e paisagístico no Livro de Tombo de Belas Artes decorre do grau de descaracterização em que se encontram, hoje, alguns edifícios; do estado de arruinamento em que se encontram outros; e da ausência de valores arquitetônicos significativos em outras edificações do conjunto. Embora a descaracterização, o arruinamento ou a ausência de valores arquitetônicos não comprometam o valor histórico destas edificações como elementos essenciais deste empreendimento excepcional que foi a Tecelagem Parahyba, associada à Fazenda Sant’Ana do Rio Abaixo, nem anulem sua participação determinante na configuração paisagística do conjunto, elas inviabilizam, no meu entendimento, a inscrição da totalidade do conjunto no Livro de Tombo de Belas Artes.
6.2. Delimitação da poligonal de tombamento e da poligonal de entorno
Sou favorável à proposta de delimitação da poligonal de tombamento e da poligonal de entorno constante do Parecer Técnico nº 132/2020/COTEC IPHAN-SP/IPHAN-SP, às folhas 541 a 543 do Processo de Tombamento, propondo ainda a incorporação à poligonal de tombamento dos seguintes imóveis que não constam desta poligonal:
7. Recomendações finais
Por fim, apresentamos algumas recomendações de ações futuras visando à adequada salvaguarda do conjunto:
– Elaboração de um inventário dos bens móveis e integrados do conjunto, com especial atenção – além dos quatro painéis de azulejos de Burle Marx, já citados – à maquinaria das antigas instalações industriais e aos documentos históricos da Tecelagem Parahyba, considerando o que estabelece a Carta de Nizhny Tagil sobre o patrimônio industrial, elaborada pelo Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH) em julho de 2003. Ainda que o antigo galpão de beneficiamento de arroz e café preserve suas antigas máquinas e diversos teares ainda possam ser encontrados dentro das instalações da antiga Tecelagem Parahyba, muito da maquinaria já se perdeu e a ausência desse inventário certamente permitirá novas perdas.
– Criação de um Conselho Interinstitucional de Gestão do conjunto, reunindo Iphan, Condephaat, Fundação Cultural Cassiano Ricardo e outros órgãos do executivo municipal e estadual que estão abrigados no conjunto, entidades da sociedade civil organizada e outros interessados. Mesmo com toda a dedicação e comprometimento da equipe da Diretoria de Patrimônio Cultural da Fundação Cultural Cassiano Ricardo e mesmo com os tombamentos estadual e municipal, não tem sido possível fazer frente a intervenções equivocadas, em alguns casos realizadas pela própria Prefeitura, como foi a pintura na cor verde, realizada às vésperas da nossa vistoria, da estrutura em concreto aparente do viveiro de pássaros, ou mesmo ao desaparecimento, por arruinamento ou vandalismo, de estruturas importantes, como o hangar de aviões. Somente uma ação contínua e interinstitucional, com a participação da Prefeitura e, também, da sociedade local permitirá garantir a efetiva preservação deste conjunto.
– Elaboração de um Plano de Gestão para o conjunto. Por exemplo, frente à grande quantidade de edificações desocupadas ou subutilizadas e ao imenso potencial de uso que possuem – ou aos seus valores pragmáticos, como bem conceituou Ulpiano Meneses, faz-se necessário estabelecer parâmetros de intervenção para o conjunto. O Plano Diretor poderá, igualmente, contribuir na identificação de novos usos compatíveis com cada uma das edificações desocupadas ou subutilizadas. A intervenção recentemente realizada no antigo galpão de beneficiamento de arroz e café, em que os novos usos e os mezaninos metálicos incorporados convivem harmoniosamente com a velha edificação e com a antiga maquinária, demonstra o potencial dessas ações. Os pavilhões em ruínas podem ser objeto de intervenções que os adequem a novos usos sem que o caráter de ruína seja perdido, como ensinam diversos exemplos recentes de intervenção em edificações arruinadas, no Brasil e no exterior – citemos apenas o recém-inaugurado Casarão da Inovação Cassina, no Centro Histórico de Manaus, em que as ruínas de uma edificação do final do século 19 foram adaptadas em uma incubadora de empresas da economia digital, que acaba de se sagrar vencedor do prêmio internacional Architecture Masterprize, na categoria patrimônio.
notas
NE – Parecer de tombamento (Processo de Tombamento nº 1.368-T-96 / Processo 01458.000664/2011-24) de Nivaldo Vieira de Andrade Jr., emitido em Salvador, em 10 de novembro de 2021.
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SANTOS, Ademir Pereira dos. Arquitetura industrial: São José dos Campos. São José dos Campos, Edição do Autor, 2006, p. 88.
2
Idem, ibidem, p. 89-91.
3
Idem, ibidem, p. 92.
4
A Casa de Bonecas era uma pequena construção em taipa de mão com cobertura cerâmica em duas águas que foi construída pelos funcionários da tecelagem para a neta de Olivo Gomes. Em 2007, após o arruinamento parcial, foi completamente demolida.
5
PANE, Roberto; ANDRADE JUNIOR, Nivaldo Vieira de (Tradução). Cidades antigas edilícia nova. Thésis, v. 2, n. 4, Rio de Janeiro, 2017, p. 284 <https://bit.ly/3dyUTXa>.
6
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. In: I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Sistema Nacional de Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão. Brasília: Iphan, 2009, p. 25-40 <https://bit.ly/3SPryI6>.
7
Idem, ibidem, p. 35.
8
SANTOS, Ademir Pereira dos. Op. cit., p. 84.
9
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Op. cit., 35.
10
Idem, ibidem, p. 36.
11
MINDLIN, Henrique E. Modern Architecture in Brazil. Nova York, Reinhold, 1956, p. 70. Tradução do autor.
12
Revista Habitat n. 30, de maio de 1956, citada na folha 82 do Processo de Tombamento ora em análise.
13
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 281.
14
ANELLI, Renato; GUERRA, Abilio; KON, Nelson. Rino Levi, arquitetura e cidade. 2a. edição. São Paulo, Romano Guerra, 2019, p. 129.
15
Idem, ibidem, p. 129.
16
Idem, ibidem, p. 130.
17
DOURADO, Guilherme Mazza. Modernidade verde: jardins de Burle Marx. São Paulo, Senac São Paulo/Edusp, 2009, p. 243.
18
CORRÊA DO LAGO, André. Três jardins particulares de Roberto Burle Marx. In: CAVALCANTI, Lauro; El-DAHDAH, Farès (Orgs.). Roberto Burle Marx: a permanência do instável, 100 anos. Rio de Janeiro, Rocco, 2009, p. 175.
19
DOURADO, Guilherme Mazza. Op. cit., p. 241-243.
20
Idem, ibidem, p. 244.
21
COSTA, Lucio. Arte, manifestação normal da vida. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 267.
22
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Op. cit., p. 36.
23
DEZZI BARDESCHI, Marco. Dall’archeologia al patrimonio industriale: un passaggio obbligato. Restauro: due punti e da capo. Milão, FrancoAngeli, 2004, p. 191. Tradução do autor.
24
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Op. cit., p. 37.
25
DEZZI BARDESCHI, Marco. Op. cit, p. 218. Tradução do autor.
sobre o autor
Nivaldo Vieira de Andrade Jr. é representante do Instituto de Arquitetos do Brasil no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.