A cidade amiga das crianças

Considerando a tendência mundial de crescimento da taxa de urbanização, os avanços e novas descobertas nas áreas da pedagogia e neurociências, e os direitos e garantias da criança estabelecidos no Brasil, um novo paradigma parece surgir ao se pensar e produzir o espaço urbano: uma cidade “amiga da criança”.

O interesse multidisciplinar no tema vem contribuindo com uma nova abordagem, considerando as demandas e especificidades do início da vida. Tais estudos e circulação de ideais alimentam o pensamento arquitetônico e urbanístico, que vem paulatinamente incluindo a questão da cidade amigável à infância. Autores como Jane Jacobs (1), Kevin Lynch (2) e, mais recentemente, Jan Gehl (3), abordaram como pensar as cidades a partir da dimensão humana, resgatando visões de gênero e condição etária e de desenvolvimento.

Conforme a definição da Child Friendly Cities Initiative, rede internacional da qual a cidade de Fortaleza faz parte, uma “cidade amiga da criança é uma comunidade ou sistema de governança local comprometido em melhorar a vida das crianças, dentro de sua jurisdição” (4). Segundo o programa,

“A iniciativa foi lançada em 1996 pela Unicef e pela UN-Habitat para atuar na resolução aprovada durante a segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat II) para tornar as cidades lugares habitáveis para todos. A Conferência (...) declarou que o bem-estar das crianças é o indicador final de um habitat saudável, de uma sociedade democrática e de boa governança” (5).

Gehl, em Space to Grow (6), publicado com o apoio da Fundação Bernard Van Leer (7), elenca dez princípios “para apoiar famílias felizes e saudáveis em uma cidade lúdica e amigável”: 1. Tornar visíveis crianças pequenas e seus cuidadores, mapeando e coletando dados; 2. Nutrir a curiosidade, liberdade para explorar; 3. Se sujar, permitir interação com a natureza; 4. Melhorar o que está perto de casa; 5. Retomar a rua, garantir segurança viária, promover ruas de brincar; 6. Responsabilidade coletiva pelas crianças; 7. Co-criação, participação no projeto, obra e manutenção; 8. Coordenar diferentes setores da administração pública em prol da mesma agenda; 9. Medir, melhorar, repetir; e 10. fortalecer as melhores ideias, escalonar, propagar (8).

A partir das considerações de Gehl, as cidades devem dispor de espaços seguros e saudáveis à infância, para interações em um entorno seguro, instigante e motivador para brincar e explorar, visando seu desenvolvimento integral.

O exemplo de Fortaleza

Inauguração da sexta estação do programa Mini Bicicletar, Fortaleza
Foto divulgação [Prefeitura de Fortaleza]

Fortaleza, capital do Estado do Ceará, região nordeste do Brasil, apresenta relevantes políticas públicas, parcerias em programas e ações voltadas às crianças da cidade. Seu Plano Municipal pela Primeira Infância é pioneiro no Brasil (2014), embasado no Plano Nacional pela Primeira Infância (2010). Antecedeu o Marco Legal da Primeira Infância, promulgado em 2016, que prevê o plano municipal como instrumento para atender às demandas da infância. O Plano de Fortaleza estabeleceu a intersetorialidade das secretarias, visando o desenvolvimento pleno da primeira infância, com previsão para avaliações e monitoramento, revisão do plano e dotação orçamentária específica. Sofreu revisão em 2022 (9), estabelecendo como horizonte o ano de 2032, destacando a orfandade causada pela pandemia de Covid-19, e colocando a criança como prioridade, conforme prevê o artigo 227 da Constituição Federal do Brasil (10).

A cidade integra a rede Urban95 (11), uma iniciativa internacional “que tem por objetivo incluir a perspectiva de bebês, crianças pequenas e seus cuidadores no planejamento urbano”, convidando “a pensar as cidades sob a perspectiva de quem tem 95 cm – a altura média de uma criança de 3 anos” (12).

Mobilidade e segurança viária para crianças de Fortaleza

O poder da tinta: dando vida às ruas do Dragão do Mar, vista aérea da implantação no cruzamento da avenida Almirante Jaceguai e rua Dragão do Mar
Foto divulgação [Global Designing Cities Initiative]

A Ong Criança Segura (13) e o Data SUS apontaram em 2018 que a principal causa de morte de crianças de 0 a 14 anos no país foi atropelamento ou acidentes de trânsito. Crianças pequenas têm ritmo próprio de mobilidade, sua estatura as tornam invisíveis aos motoristas, estão mais expostas à poluição dos escapamentos dos carros.

Fortaleza integra o Programa Bloomberg Initiative for Global Road Safety (BIGRS), da NACTO-GDCI desde 2016, a fim de auxiliar cidades a melhorar a segurança viária e oferecer opções de mobilidade seguras. A Rua Almirante Jaceguai, por exemplo, além de um conjunto de intervenções lúdicas, apresenta estreitamento de faixa, redução de velocidade (30km/hora), bloqueio de trecho em concreto para veículos, sinalização e demarcação clara das vagas de estacionamento, canteiros com mudas de árvores para futuras áreas de sombra e bancos, para descansar, amamentar etc.

A cidade possui um programa de mobilidade ativa voltada às crianças, o “Mini Bicicletar”(14), implementado pela Prefeitura com apoio privado, um sistema de bicicletas compartilhadas para crianças semelhante aos aluguéis de bicicleta em São Paulo e outras capitais, incentivando autonomia e exploração dos espaços urbanos pelas crianças e cuidadores.

O Programa “Caminhos da Escola” (16) em 2021, no Bairro Granja Lisboa, tem por objetivo promover a segurança no trânsito junto às escolas, a fim de tornar o caminho de casa até elas lúdico e seguro, ao se readequar a velocidade e promover reparo de calçadas, nova pintura e demarcação de faixas de pedestres e instalação de lombadas e pinturas lúdicas na via. O projeto piloto do Programa foi implementado em 2019, no bairro Cristo Redentor, noroeste de Fortaleza.

O verde e o brincar urbano

Projeto Criança Segura Brasil, imagem do relatório institucional de 2020
Foto divulgação [Projeto Criança Segura Brasil]

A Urban95 e o Instituto Alana (17) atuaram em parceria com a Prefeitura de Fortaleza para implementar parques naturalizados, “aproveitando as características dos terrenos e construindo mobiliário e espaços de convívio com materiais naturais, como podas de árvore, terra bambu e outros disponíveis nos territórios” (18). Uma solução que aproxima crianças e toda a comunidade da natureza, e proporciona experiências sensoriais diversas.

Diferentemente dos playgrounds padronizados, com mobiliário e equipamentos em plástico ou metal, esses parques aproveitam materiais locais e as condições do sítio e do terreno, sendo uma solução sustentável e de baixo custo, criando espaços de convivência ao ar livre em localidades vulneráveis. Os microparques José Leon, na Cidade dos Funcionários, e o Seu Zequinha, na Barra do Ceará, bairro mais antigo de Fortaleza, são exemplos inaugurados.

“Em Fortaleza, fizemos um mapeamento e vimos que, embora existam grandes áreas naturais, como a própria orla, elas estão muito mal distribuídas. Quando olhamos para espaços onde mora muita gente, há uma enorme carência de verde. Por isso embarcamos na ideia de criar parques naturalizados, trazendo a natureza para perto das casas das pessoas, para perto das escolas” (19).

O maior jogo de amarelinha do Brasil fica também em Fortaleza, na Rua Almirante Jaceguai, Praia de Iracema. Com 180 metros de extensão e 400 quadradinhos (20), é uma intervenção da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania instalada em agosto de 2021, por ocasião da revitalização do entorno do Centro Cultural Dragão do Mar, que também possui uma estação do “bicicletar”.

Retomando as ruas

Projeto Caminhos da Escola
Foto divulgação [Global Designing Cities Initiative]

Desde 2014, na comunidade Jardim Iracema ocorre a ação “Pé na Rua”, que ocupa as ruas incentivando o direito ao lazer, promovendo brincadeiras populares e tradicionais e o resgate da cultural local. Durante o evento, há também estações esportivas temporárias.

Fortaleza conta ainda com a iniciativa “Pé de Infância”, promovendo a leitura e o contar de histórias nas praças. O projeto da Prefeitura “Uma criança uma árvore” entrega uma muda a cada criança que nasce no Hospital e Maternidade José Martiniano de Alencar, incentivando a responsabilidade das famílias na arborização da cidade; além de investir na expansão da rede cicloviária e caminhos de pedestres.

Há ainda a preocupação com as mulheres – o maior grupo de cuidadores de crianças pequenas. Está em curso um programa piloto da Prefeitura para melhorar a visibilidade, iluminação e a sensação de segurança das ruas, em áreas consideradas inseguras, com a participação da população feminina.

Fortaleza, no portal “Siga 2040”, manifesta o desejo de ser uma cidade “conectada, acessível e justa” (21) priorizando equidade territorial, uma comunidade acolhedora e saudável, que viva com qualidade ambiental, e promovendo a cultura do lazer e do bem-estar.

Considerações finais

O artigo traçou um panorama das ações implementadas em Fortaleza que cumprem a agenda urbana para crianças pequenas e cuidadores. A partir das iniciativas públicas expostas, e da parte de instituições não governamentais e da comunidade, na última década, com relação aos espaços públicos, é possível dizer que a cidade de Fortaleza trabalha para ser uma “cidade amiga da infância”.

notas

1
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009.

2
LYNCH, Kevin. Growing up in cities: Studies of the Spacial Environment of Adolescence in Cracow, Melbourne, Mexico City, Salta, Toluca and Warszawa. Cambridge, Massachussets and London, The MIT Press/Unesco, 1977.

3
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. Tradução Anita Di Marco, São Paulo, Perspectiva, 2013.

4
UNICEF. What is the Child Friendly Cities Initiative? 2022 <https://bit.ly/3UUDwQH>.

5
Idem, ibidem.

6
GEHL INSTITUTE. Space to grow. 2018. p. 3 <https://bit.ly/3g3Uo91>.

7
Fundação holandesa privada, que fornece apoio financeiro e expertise para parceiros de governos, sociedade civil e privada, atuando com foco na primeira infância.

8
GEHL INSTITUTE. Op. cit.

9
PREFEITURA DE FORTALEZA. Lei nº 11.238, de 17 de março de 2022 <https://bit.ly/3toKPV9>.

10
BRASIL. [CF]. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988 <https://bit.ly/3UND5I4>.

11
URBAN95. O que é a Urban95. 2022 <https://bit.ly/3hsGayK>.

12
Idem. ibidem.

13
ONG CRIANÇA SEGURA. Relatório Institucional 2020 <https://bit.ly/3AaKpW6>.

14
PREFEITURA DE FORTALEZA. Bem-vindo ao Mini Bicicletar. 2014 <https://bit.ly/3O5Fk7l>.

15
GLOBAL DESIGNING CITIES INITIATIVE [GDCI]. The Power of Paint: Bringing Life to the Streets of Dragão do Mar. 2018 <https://bit.ly/3hADq2s>.

16
PREFEITURA DE FORTALEZA. Prefeitura de Fortaleza inicia projeto “Caminhos da Escola” na Granja Lisboa. 2022 <https://bit.ly/3hCNgkt>.

17
Organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, com programas próprios voltados à infância, e com parceiros.

18
INSTITUTO ALANA. Com parceria, parques naturalizados se espalham pelo país! 2022 <https://bit.ly/3AaKNUy>.

19
Idem, ibidem.

20
URBAN95. O maior jogo de amarelinha fica em Fortaleza (CE). 2022 <https://bit.ly/3WYT4Fe>.

21
PREFEITURA DE FORTALEZA. Siga 2040. 2022 <https://bit.ly/3EuLfjn>.

sobre a autora

Juliana Santiago da Franca é mestranda em Arquitetura e Urbanismo (2021-atual) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Arquiteta e Urbanista (2010) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie.