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Depois de explorar as guaritas de vigilância paulistanas, Laura Belik se detém sobre os pequenos quiosques que abrigam chaveiros no Rio de Janeiro.
BELIK, Laura. Chaveiro carioca. Minha Cidade, São Paulo, ano 23, n. 275.01, Vitruvius, jun. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/23.275/8842>.
Depois de refletir sobre as guaritas paulistanas (1), em uma recente visita ao Rio de Janeiro não pude deixar de notar a constante aparição de abrigos semelhantes, principalmente em bairros da Zona Sul. Apesar da correspondência formal, o uso das guaritas cariocas muito difere daquelas em São Paulo: o guardinha da guarita carioca é, no caso, um chaveiro. A coincidência temática da funcionalidade destes espaços peculiares ligada à motes de segurança e privacidade lembra a simbologia do galpão decorado, onde o edifício anuncia seu conteúdo, um fenômeno e teoria urbana discutidos por Denise Scott Brown, Robert Venturi e Steven Izenour em Aprendendo com Las Vegas (2), de 1972. Justamente por seu formato acarretar a ideia de fortificação e isolamento, fica evidente a comparação de uma guarita de um guardinha à uma guarita (cabine ou quiosque) de um chaveiro.
A julgar pela quantidade de chaveiros no Rio de Janeiro, perder as chaves nessa cidade deve ser um ato cotidiano. Fico imaginando na minha memória de praia antes do pix, como levávamos notas de dinheiro presas ao maiô, e voltávamos do mar ou pagando pedagio à Iemanjá, ou saiamos do jacaré com uns trocados alheios para comprar aquele sorvete. Talvez algo semelhante aconteça com o molho de chaves nesta cidade. Ou quem sabe as chaves, assim como eu, derretam depois que passa dos 40 graus Celsius.
Brincadeiras e jargões à parte, o Rio de Janeiro, de acordo com a Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae, é a capital brasileira com a maior quantidade de chaveiros por metro quadrado (3). Para se abrir um quiosque, o investimento (dependendo da localização) é relativamente baixo dado o tamanho do negócio e o rápido retorno financeiro, e, apesar da concorrência, um serviço considerado essencial à população. Os chaveiros acabam fazendo parcerias com outros prestadores de serviço e tornam-se fontes de confiança para indicação de reparos em geral. Em Copacabana, a justificativa de tamanha incidência destes profissionais é devida a alta taxa de idosos no bairro, e de salões de beleza afiando seus instrumentos de cutelaria nestes quiosques.
O funcionamento do ponto comercial do chaveiro se dá assim como um ponto de táxi, ou uma banca de jornal. Se a guarita do guardinha paulistano é implantada clandestinamente, do dia para noite, como um banheiro químico colado a um muro particular, os quiosques dos chaveiros cariocas seguem uma certa formalidade e regras da municipalidade e necessitam de licenciamentos e alvarás (4). Isso é claro, não significa que historicamente aquele espaço público não tenha sido um dia algo não regulamentado, como é o caso dos inúmeros camelôs e vendedores ambulantes da cidade, ou que os chaveiros talvez não estejam sujeitos e submetidos à mafias, milícias ou facções locais (assim como os guardinhas paulistanos).
Os quiosques dos chaveiros fazem parte do mobiliário urbano da cidade, caracterizado como artefatos fixos ou móveis, implantados nos espaços públicos da cidade, quase sempre de natureza utilitária, de interesse urbanístico, paisagísticos e permeados por valores simbólicos ou culturais, segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura do Rio de Janeiro (5). A padronização das casinhas dos chaveiros segue (ou deveria seguir), portanto, regras para sua implementação na chamada faixa livre das calçadas. Existe inclusive um modelo padrão de quiosque para chaveiros (6). Em uma cidade conhecida por sua informalidade, seguindo ou não a padronização sugerida pela Secretaria de Urbanismo, os espaços dos chaveiros têm um modelo estético reconhecível, e sua banalidade muitas vezes passa despercebida ao olhar cotidiano do carioca.
Em um momento em que muitas outras bancas nas calçadas públicas tentam se reinventar e manter o funcionamento do seu ponto comercial, as guaritas dos chaveiros especificamente seguem com o mesmo uso desde sua chegada, muito provavelmente justamente pela grande demanda contínua por este serviço. Enquanto isso, floriculturas passam a vender drinks a noite após o expediente, bancas de jornal se reinventam dado a ascensão das mídias digitais, e tornam-se lojas de conveniência, tabacarias, e até galerias de arte independente. Estas questões não são exclusivas ao Rio de Janeiro, é claro. Mas justamente o passeio pela Zona Sul surpreende o olhar estrangeiro não pela transformação das bancas e quiosques, mas sim pela permanência e singularidade dos espaços dos chaveiros, que se mantém inalterados, guardados a sete chaves.
notas
1
BELIK, Laura; CESTARI, Caio. O apito do guardinha. Vigilância urbana em cidades desiguais. Minha Cidade, ano 21, n. 249.02, São Paulo, Vitruvius, abr. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.249/8061>.
2
VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
3
URBIM, Emiliano. Rio é a cidade do país com o maior número de chaveiros. O Globo, Rio de Janeiro, 02 nov. 2014 <https://urlscurta.com/VOitu>.
4
RIO DE JANEIRO (Município). Solicitação de alvará. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Fazenda/Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização <https://urlscurta.com/AjErd>.
5
FONTI, Letícia Nóbrega; CASTRO, Claudia Grangeiro da Silva; HEIZER, Lucia Quadra; DIAS, Teresa Quiroga; OURO, Cátia. Caderno calçadas cariocas: conceitos, parâmetros e normas. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Secretaria Municipal de Urbanismo, 2019 <https://urlscurta.com/GbNJw>.
6
RIO DE JANEIRO (Município). Resolução SMU n. 27. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Secretaria Municipal de Urbanismo, 12 ago. 1996.
sobre a autora
Laura Belik é doutoranda em Arquitetura na University of California, Berkeley, Mestre em Design Studies pela Parsons – The New School (Nova York, 2016), e formada como arquiteta e urbanista na Escola da Cidade (São Paulo, 2013).
legendas
Guarita de chaveiro, Rio de Janeiro, fevereiro de 2023
Foto Laura Belik