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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Este artigo tem por objetivo analisar as relações de apropriação e reinvenção do espaço urbano na praça da Matriz, em Porto Alegre, sob a perspectiva do skatista.

english
This paper aims to analyze the relations of appropriation and reinvention of the urban space in praça da Matriz, in Porto Alegre, from the perspective of the skater.

español
Este artículo tiene como objetivo analizar las relaciones de apropiación y reinvención del espacio urbano en la praça da Matriz, en Porto Alegre, desde la perspectiva del patinador.

how to quote

FERNANDES, Laura; ALMEIDA, Eneida de. Pela rua. Praça da Matriz, apropriação do espaço público pelo skateboarding. Minha Cidade, São Paulo, ano 23, n. 276.02, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/23.276/8845>.


Skatista realizando manobra no piso referenciado da praça da Matriz, Porto Alegre RS [Acervo das autoras, 2022]


A praça Deodoro Machado, mais popularmente conhecida como praça da Matriz, está inserida no centro de um dos recortes mais emblemáticos da cidade, rodeada por prédios históricos e de grande importância, onde se encontram as representações de religiosidade, poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, e um dos grandes templos da cultura de Porto Alegre, o Teatro São Pedro.

Localizada no centro de Porto Alegre, recentemente reformada, a praça da Matriz, tombada a nível federal pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional — Iphan (2007), recebeu a renovação da pavimentação, renovação e complementação do mobiliário urbano e da iluminação entre outros aspectos. As transformações, segundo informações contidas no site da prefeitura, foram realizadas com recursos do Programa de Aceleração de Crescimento — PAC Cidades Históricas do Iphan, tendo em vista que a utilização desse espaço público se deu de diversas maneiras ao longo do seu tempo de existência e apresenta nos dias de hoje diversos tipos de utilização pelos mais distintos públicos presentes no local.

Nesse sentido, partindo da perspectiva de José Guilherme Magnani (1), podemos considerá-la uma mancha de lazer, uma vez que se enquadra na seguinte classificação: muitas práticas e atividades eventualmente competem ou se articulam para se apropriarem de um espaço público estável na paisagem urbana. Como assinala Magnani, o método etnográfico corresponde a um processo de observação “mais de perto e de dentro” das dinâmicas urbanas apto a identificar as famílias terminológicas: pedaço, trajeto, mancha, que atribuem relevância ao uso do tempo livre no cotidiano dos cidadãos, evidenciando a criação de diferentes padrões comportamento, que transformam não só os usos, mas a própria paisagem urbana (2).

Esse local de grande poder para a cidade não carrega apenas a história do lugar, mas também a história de uma modalidade de utilização do espaço público que outrora não havia sido pensada. É a inserção de um agente urbano, que observa o mobiliário e a cidade através do viés de obstáculos e barreiras a serem explorados, e quebrados. O skatista como cidadão, interage com o meio em que transita de uma forma divergente daquela que outrora havia sido projetada, pensada e imposta por arquitetos e planejadores.

Skatista na praça da Matriz, Porto Alegre RS [Acervo das autoras, 2022]

O surgimento do skate em Porto Alegre ocorre no final dos anos 1970 como uma prática inicial do esporte e é possível acompanhar sua evolução histórica em conjunto com os locais ocupados em determinadas épocas. Nesse sentido, no final da década de 1980, com a decadência da prática e o desaparecimento de diversos locais que eram tidos como destinados ao skate, o street skate, ou skate de rua, surgiu em um âmbito cultural e urbano no qual o skatista fazia o uso e se apropriava de espaços públicos, vias, calçadas, transformando a cidade, sem restrições, em seu grande playground, como uma forma de manifestação cultural.

Corroborando com as ideias de Leonardo Brandão (3), a cidade passa a ser um grande playground no qual mobiliários urbanos e outros elementos são reconhecidos por essa tribo de skatistas como meios de interação entre skate e cidade. É de estrema importância que o skatista reconheça o território em que está inserido para que a prática do esporte ocorra de maneira confortável e segura.

A apropriação do espaço urbano pelos skatistas é abordada por Iain Borden (4), quando afirma que ao percorrer a cidade, os esportistas executam manobras e utilizam elementos da arquitetura a partir de recortes do espaço. Do ponto de vista dos skatistas, eles não estão diante de uma composição de materiais e espaços dispostos a partir de uma lógica imposta pelos planejadores da cidade, mas sim em contato com um conjunto de elementos dinâmicos que podem ser combinados ou isolados de forma interativa e criativa.

Considerando o necessário reconhecimento do local de apropriação, o presente artigo parte de uma linha de investigação metodológica de observação e de realização de uma walkthrought proposta a dois skatistas que estavam presentes na praça da Matriz para reconhecimento de quais elementos eram utilizados para a prática do esporte neste local e no seu entorno, tendo em vista que o skatista usualmente cria caminhos e traços viários a partir do momento que se torna um pedestre sobre rodas.

De acordo com Giancarlo Machado (5), visando a perspectiva dos praticantes, um corrimão não serviria somente para dar segurança a quem utilizava uma escada, mas também, para ser deslizado com o skate. A escada, por sua vez, não era apenas para se passar de um nível ao outro, mas para ser pulada constituindo assim obstáculos para testar as habilidades técnicas.

É possível observar, durante a presença no local, diversas tentativas de ascensão de um patamar a outro da praça por meio de um descolamento do skate do solo constituindo assim uma manobra quase que aérea.

Skatista realizando manobra no solo para ascensão de degraus na praça da Matriz, Porto Alegre RS [Acervo das autoras, 2022]

A materialidade do espaço, adotada para favorecer a utilização por pedestres em geral, foi aprovada pelos skatistas, à procura de um piso liso para suas manobras. Assim, eles ocupam esse espaço destinado ao cidadão comum não apenas como uma quadra de esportes pública, mas exploram o seu caráter mutável e de múltiplas funções, na medida em que passam a utilizá-lo para socializar e interagir não exclusivamente com os praticantes do skate. Esse uso compartilhado propicia a ativação de uma nova dinâmica de uso do próprio espaço e uma maior interação dos cidadãos, sejam skatistas ou não, com a urbe.

Tal materialidade empregada nos pisos urbanos para favorecer a acessibilidade universal, contribui também para a utilização dessa tribo. A exemplo de tal situação, a pista de skate do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários — IAPI, como ficou conhecida, é uma das maiores referências em street skate no Brasil e o piso utilizado em sua construção faz alusão ao piso utilizado na praça da Matriz.

Desse modo, elementos do espaço construído são referência para a construção de espaços destinados a prática do esporte, corroborando a ideia de que os skatistas são usuários particulares da cidade atentos ao espaço físico, aos seus atributos, de modo a extrair o melhor proveito possível de suas características para o exercício da sua atividade.

Ainda que a praça da Matriz tenha se transformado no reduto desta tribo, é possível observar que o entorno do recorte apresenta lugares igualmente ocupados por skatistas, partindo da ideia que ao se deslocar pela cidade, acabam por encontrar e apropriar-se de locais dispostos ao longo do circuito.

Entretanto, a prática do esporte na cidade acarreta conflito entre os skatistas e a população, de modo geral. Os conflitos se acirram, em especial, nos casos em que há embate entre skatistas e agentes do poder público ou do setor privado. Em observações realizadas, foi possível constatar a presença de skateblocks (equipamento arquitetônico que visa barrar a utilização de determinado lugar) e a atuação de seguranças impedindo a realização de manobras em determinados espaços, no entorno do local de estudo.

Sob a perspectiva de Borden (6), tal atitude é compreendida como autoritária, uma vez que, segundo o autor, é impossível determinar que a prática do esporte em espaços públicos seja considerada verdadeiramente uma atividade ilegal, tendo em vista que a apropriação do espaço público tende a apresentar diversos benefícios, entre os quais cito aqui a questão de segurança pública, considerando que espaços ociosos são ocupados ao longo do dia.

De tal forma, o skatista como cidadão acaba por colaborar de diversas formas para a manutenção da cidade, e para a ativação dos espaços públicos, dado que ocupa e se apropria de lugares e recortes do meio urbano para que a prática do esporte seja realizada. As manobras realizadas configuram um poder de apropriação sobre o espaço como quem reconhece todas as materialidades e as possibilidades de reinvenção do urbano. Resta indagar se a prática do skate impede ou compete com outros usos, ou permite a convivência com outras apropriações.

Muito mais do que um pedestre sobre rodas, essa tribo visa relacionar-se de uma forma quase simbiótica com a cultura e o local em que ocupa apresentando diversos benefícios com a sua presença nas ruas. Qualificar o skatista como um citadino sobre quatro rodas é, além de reinventar uma finalidade de utilização do mobiliário, sobretudo identificar uma nova forma de uso de uma parcela da população que tem sede de vivenciar a urbe.

notas

1
MAGNANI, José Guilherme. Da periferia ao centro: pedaços e trajetos. Revista de antropologia, v. 35, São Paulo, USP, 1992, p. 191–203.

2
Idem, ibidem.

3
BRANDÃO, Leonardo. Corpos deslizantes, corpos desviantes: a prática do skate e suas representações no espaço urbano (1972–1989). Dissertação de mestrado. Dourados, PPGH UFGD, 2006.

4
BORDEN, Iain. Skateboarding and the city: a complete history. London, Oxford: Bloomsbury Visual, 2019.

5
MACHADO, Giancarlo. De carrinho pela cidade: a prática do skate em São Paulo. São Paulo, Intermeios/Fapesp, 2014.

6
BORDEN, Iain. Op. cit.

sobre as autoras

Laura Fernandes é graduada em Arquitetura e Urbanismo (Centro Universitário Metodista do Sul — IPA, 2014) especialista em Design de Interiores (Faculdade Ritter dos Reis, 2018) e mestranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.

Eneida de Almeida é arquiteta (FAU USP, 1981), mestre (Università degli Studi di Roma La Sapienza, 1987) e doutora (FAU USP, 2010). É professora do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu e coeditora da revista eletrônica arq.urb, do PGAUR USJT.

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