O Estádio do Pacaembu, projeto do Escritório Técnico Severo Villares, com suas arquibancadas laterais erguidas sobre os taludes íngremes do vale, mantém uma peculiar relação com o sítio natural. Como uma prótese geográfica, o edifício art decó – solene fachada urbana voltada para a Praça Charles Miller – une as arquibancadas. Se o estilo conservador, enaltecido pelas colunas gigantescas que emolduram o portão monumental, expressava o gosto oficial do ano 1940 de sua inauguração, a imponente estrutura de concreto armado demarca o avanço técnico da engenharia da época de sua construção. São faces de uma mesma moeda, que expressam as ambigüidades do processo de modernização sob o autoritarismo do Estado Novo de Getulio Vargas.
Revelar e acentuar tais qualidades é a estratégia adotada pelo arquiteto Mauro Munhoz na concepção do Museu do Futebol, instalado no edifício frontal. As decisões de projeto oscilam entre opostos: a radicalidade das demolições em grande escala – com a desaparição de lajes, paredes, vigas e escadas revelando a espacialidade e a lógica estrutural escondidas; e a economia de gestos nas intervenções pontuais, com prescrição moderada de materiais legíveis (aço, madeira, vidro) e instalações expostas (dutos e calhas infraestruturais, escadas fixas e rolantes, placas acústicas). O espaço resultante abriga convenientemente projetores, telas, displays e tabiques previstos no projeto expositivo assinado por Daniela Thomas e Felipe Tassara, que tem seus melhores momentos no uso intensivo da tecnologia eletrônica, adequada à emoção e à magia do futebol, esporte cuja memória foi registrada em sons e imagens dinâmicas pelo rádio, TV e cinema.
O resultado é uma surpreendente pedagogia do olhar, com o aporte conceitual se revelando pouco a pouco ao visitante durante o percurso, através de pequenas ou grandes surpresas que estimulam a sensibilidade lúdica e, às vezes, onírica própria do futebol. Aonde havia maciças paredes de fechamento voltadas para a Praça Charles Miller, temos agora – ampliando o caráter urbano do edifício – acessos diversos ao campo, museu, loja comercial e restaurante. No interior, tanto no saguão como em algumas áreas expositivas, os quatro pavimentos estão integrados espacialmente, com a possibilidade de visadas cruzadas entre ambientes e cotas distintas. O campo de futebol, incrustado no vale e coroado pelas arquibancadas, se apresenta ao visitante do museu em aberturas diversas, a mais surpreendente delas um antigo acesso do público às arquibancadas convertido em visor para o gramado. Um dos espaços emparedados entre arquibancada e edifício, cujos pilares e vigas descuidados de preocupações plásticas mergulhavam na escuridão e umidade saturada, foi invadido e convertido em cenário impressionante para projeções de filmes com torcidas de futebol.
No meio do percurso, surge algo inesperado: uma ponte suspensa de madeira, sustentada por pilares metálicos atirantados na laje superior, articula os dois lados do museu dividido pelo portão monumental. Ao caminhar por ela, o visitante avista novamente a praça, agora emoldurada pelo bairro do Pacaembu que se ergue no horizonte.
nota
NE
Publicação original do artigo: GUERRA, Abílio. Sensibilidade onírica. Projeto Design, São Paulo, n. 371, p. 70-71.
sobre o autor
Abílio Guerra é arquiteto, professor da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora