Introdução
Um cappuccino, um par de grandes lentes circulares turvas e um cigarro apontado para fora das mechas em tom verde fluorescente olham para o vazio meditativo de uma cafeteria cuja música de fundo e os pôsteres na parede não flertam com Jimi Hendrix nem Janis Joplin, pelo contrário, invocam algo como Toquinho e Miúcha. Ao redor, algumas carecas de golas bem engomadas, aventais pretos e saltos pontiagudos fazem coro sutil à estrela de tom blasé que agora, descansa a xícara enfumaçada em cima de uma das pernas cruzadas.
A cena nada corriqueira que segue enquanto esboço as primeiras linhas deste artigo do lado oposto do café, é a personificação perfeita do Sharp Centre de Will Alsop. Emergindo na paisagem sobre pernas esguias, porém não menos incólumes, a grande caixa em pixels, toma para si os olhos curiosos de quem se atreve a passar por perto. Lá de cima, estática, parece ter acabado de se levantar do asfalto para, tediosa, se debruçar sobre a caretice urbana que lhe rodeia, sedenta de algo a mais.
Na cafeteria, pernas descruzadas, xícaras e pratas na mesa, óculos ainda turvos e blazer zebrado se divorciam do matrimônio fugaz com a bossa-nova para ir de encontro ao asfalto quente e som babélico que acompanha o cotidiano agitado da capital mineira. Se suas pernas dobrassem, a grande caixa, de certo, largaria a xícara de cappuccino em Grange Park, Toronto, para bebericar Bloody Maries nas telas de algum filme excêntrico de Wes Anderson, para onde, me arrisco, deve ter partido satisfeita a personagem sem nome.
Sharp Centre Building
Se o casamento da jovem anônima de cabelo radioativo com o violão de Toquinho durou poucos minutos, o lado rebelde de Sharp Centre se detém, ainda que por falta de pernas, ou asas, desde o seu principio em 2004, quando fora erguido, atrelado ao cônjuge de estilo vitoriano já previamente estabelecido no local, por intermédio de duas alianças: a primeira, uma vistosa escada vermelha que entrepassa ambos os volumes na diagonal. Extravagante, parece ter se projetado para baixo da espaçonave que lhe cobre, como se capturasse terrestres desatentos para então recolher-se rumo à ionosfera de algum astro cintilante e amebótico. No entanto, permanece estranhamente petrificada desde então, atuando como elo de um corpo fragmentado entre Dionísio e Apolo (Nietzsche, 1872). A segunda, um tanto mais tímida, parte do centro cartesiano de Apolo e, invisível aos transeuntes, que cruzam as ruas adjacentes, sobe, verticalmente, pintada de luto para o encontro fatal, onde permanece subordinada ao pitoresco.
Desenhada para ser uma extensão da escola de design OCAD – Ontario College of Arts and Design, a obra do arquiteto Will Alsop em parceria com o escritório Robbie / Young + Wright Architects, se projeta a, aproximadamente, 26m do solo em um grande paralelepípedo horizontal totalizando novos cinco mil e duzentos metros quadrados, divididos em dois pavimentos de 84m x 31m com três metros de pé direito.
Apesar da planta tradicional, o ideal plástico lúdico concebido ao edifício, se concentra no seu conjunto de excessos que perpassam outras atmosferas projetuais, dispares à volumetria, porém, não menos intensas que lhe trazem ineditismo e potencia frente à paisagem austera.
Construído com treliças de aço, a “Mesa” como é popularmente conhecida, se apoia, além da caixa oculta de elevador, em doze pilares metálicos diagonais, de tamanho idêntico e expressivo, livres de qualquer interferência, da calçada ao primeiro piso elevado da escola, funcionam como peça chave do enredo estético da obra. Sua forma de vareta, com as pontas finas e o corpo mais robusto, foram originalmente pensadas para trabalhar como peças de um gasoduto e dão leveza à estrutura ainda que possuam, cada uma, 8,1 mil quilos. Pintadas em tons vivos e variados, como amarelo, vermelho, azul e violeta, encenam algo semelhante à longas patas de um inseto saudosista e geométrico a despender grande parte de suas economias em brechós lustrosos da década de 1980.
Seu corpo, não menos intrigante que suas pernas, fora pensado inicialmente para ser revestido em um material translúcido que daria, à princípio, vasão à um grande mosaico abstrato e colorido interior, no entanto, em razão do alto custo, fora repaginado em uma estrutura metálica ondulada pintada sob a alusão de pixels apagados que se confundem com as janelas e dão uma “uniformidade disforme” ao prédio estabelecendo-o para além da figura intuitiva de edificação, a plainar solitário em uma nova definição cujo dicionário não alcança, entre o físico e o pictórico.
Entre perna e corpo, o vácuo que poderia autenticar a castidade do edifício é imediatamente ocupado por uma praça que sorve o público e o privado como uma grande janela a desaguar no parque Grange, vizinho à escola.
Como se não bastasse a proclamação pública de sua vivacidade agoniante e gigantesca à luz do dia em tons vivos e hercúleos, à noite, projetado para uma assimilação díspar, porém não menos impactante que à luz do dia, o prédio reflete canhões de luz azul na fachada branca e propala suas janelas desalinhadas, antes camufladas pelos pixels, agora iluminadas e sarapintadas, a lembrar a cidade, ainda que durma, que ele vive.
Apesar de conservar as mesmas diretrizes brutas da obra final e valor simbólico semelhante, o projeto inicial de Alsop para o Sharp Centre, possui uma série de diferenças, para além da fachada translúcida e colorida, que foram ruminadas a conter os gastos e melhorar a eficiência estrutural. Denunciados na maquete original, por exemplo, uma série de espaços fragmentados e independentes em arranjos orgânicos característicos do arquiteto em outras obras, articulavam-se através do corpo sistemático do edifício como órgãos de uma única identidade suspensa, por sua vez, apoiada em um número ainda maior de pilares, até então prateados.
Desejo e obra
“Deus está morto” foi uma das inúmeras frases polêmicas postuladas pelo filósofo alemão do século 19 que marca a ruptura com um modelo de pensamento idealista para a absorção do mundo real tal qual ele se apresenta aos olhos. Durante o mesmo período, no entanto, a arquitetura se paramentava para fazer valer a utopia modernista moldada sob o arquétipo cartesiano que estabelece a matemática, a padronização e o imutável como modelo que se abdica do caos real, do afeto, das pulsões e energias para se entreter, seguro, no mundo das ideias onde tudo é perene, incolor e inodoro.
Em razão do divino, do transcendente, renegam à Terra em uma forma de pensamento dualista pela qual o bem se apresenta contra o mal. Na arquitetura moderna, tal como nas estruturas de pensamento religiosas expostas em Nietzsche, a função e a racionalidade ganham vulto sobre o desejo e a expressão aleatória de uma potência interior para conter passado, presente e futuro em um mesmo tempo, sobre o qual não há mutabilidade, quanto menos indivíduo. A expressão se dá através da permanência de uma verdade, que por si só é metafísica no seu sentido dialético. Não há palavra capaz de conter a realidade, tal como não há arquitetura capaz de traduzir o espaço, ambos se movimentam para além do homem e adiante da pauta.
Arquitetar com ímpeto artístico ou dionisíaco, como sugere Tschumi em ensaio intitulado “Arquitetura do Prazer” é, até o momento presente, dois séculos após a inauguração da filosofia pós-moderna, um postulado execrado pela massa social. A morte de Deus fora mais uma vez postergada para o próximo século em nome dos discursos pasteurizados de um tecnicismo embriagado e uma ciência obcecada pela verdade fugaz, que nos escapa à retina antes de ser mirada no microscópio. A razão de ser, ou função primordial, preenche ainda grandes lacunas nas prateleiras verticais de livrarias em pé direito duplo. Atrás da figura heroica e transformadora do idealista, causas globais, divagações sobre sistemas políticos perfeitos, religiões e outras cartilhas morais, metafísicas que anulam a vitalidade individual em nome do divino, do grupo ou de ambos. A expressão atômica da inutilidade, por sua vez, é enterrada sob os pés daqueles que se vestem em bandeiras de amor a um mundo que não é nada, se não pura ideia, esperança do que não é, deslocamento existencial esquizofrênico, para um tempo que blasfema contra o desejo, vulgarização da potência de um corpo energizado em nome de um cosmo aristotélico que pragueja contra a psique individual pujante.
Emanado desta ideia, a construção de um edifício que desestabiliza as noções de verdade e se desenrola num apêndice quase puramente artístico, negando as expectativas conservadoras, transgredindo os limites do espaço e jogando com overdoses volumétricas, pitorescas e intraduzíveis verbalmente, é a materialização de uma desconstrução psíquica e social de uma moralidade enrijecida nas noções de ordem. Noções que negam a realidade numa fantasia modular de causa e efeito castos, em que obra e autor não se tocam, são elementos difusos imunes ao prazer e ao ódio, produtor e produção alienada de um universo a parte, segregados do lugar onde foram assentados.
O erotismo arquitetônico está no excesso, na fadiga do projeto em transpor para o espaço com todos os seus entraves físicos e sociais a sua razão de ser momentânea, que se sobrepõe a qualquer pretensão de transformação ou sugestão mental porque está ali e dialoga, provoca alguma coisa no momento presente e no espaço onde se situa, consome e produz energia a partir da experiência sensorial, exige reação à sua presença ainda que negativa e descortina a transformação da apatia para uma posição presencial.
Absurdo em pixel
A produção de Will Alsop em Toronto inaugura um embate estético violento com o entorno austero, formal e ideológico através de uma obra intensa que, apesar da formalidade cartesiana em planta, é provocativa e pessoal, reveladora de uma psique que se projeta em solo e cria vida própria ao se transformar com o decorrer do tempo e em função, além das intempéries, do outro que julga, experimenta e inevitavelmente, se deixa levar pela provocação que grita à frente de seus olhos trabalhando em favor do caos, ou em outras palavras, entendendo-o como realidade e vertendo-o em ganho de elã vital para se impor como personagem de expressão capaz de impactar e distorcer o que anteriormente se estabelecera como real.
Ainda que existam formas mais sutis de se trabalhar com “eu” na arquitetura no lugar da reprodução de um objeto insignificante e contrapor as regras vigentes escondendo o aspecto vivo do edifício nas suas entranhas lisas e incolores, Alsop opta, principalmente na obra em questão, por escancarar a pessoalidade do edifício para o público. Em um ato corajoso, o arquiteto tomba para si os holofotes e se apresenta cru, frente à plateia diária que pode agraciar ou rotular a obra simplesmente pela análise superficial que lhe apresenta de cara, o caos, a confusão mental daquilo que se diz edifício, mas se apresenta como outra coisa, o inclassificável, onde ironicamente se classifica a vida.
Vulgar e despretensiosa, a sensualidade do edifício de Alsop não possui maçãs do rosto coradas, não dança ballet, nem come strudels no café da manhã, é vigorosa e imprecisa como um trabuco medieval e não ambiciona promoção à arco e flecha. Ainda que desejem substituir os pixels pela imagem completa de um edifício vitoriano assentado no solo, tijolo por tijolo, a Mesa permanece posta a engendrar grandes estragos e desconcertar o que se diz concertado. Um ato de provocação em grande escala que trabalha contra a maior doença psíquica dos últimos tempos, a ordem estabelecida.
notas
1
NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: Antologia Teórica 1965-1995. 2ª Ed. Cosac Naify, ed. 2008.
2
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). L&PM Editores, ed. 2009.
3
FAUSTINO, Silvia. Derrida e a linguagem. Revista Cult, São Paulo, n. 117 Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/derrida-e-a-linguagem> (acesso em outubro de 2016)
4
WIKIARCTECTURA. Sharpe Centre for Design-Ontario College of Art and Design. Disponível em: <https://en.wikiarquitectura.com/index.php/Sharpe_Centre_for_Design-Ontario_College_of_Art_and_Design> (acesso em outubro de 2016
5
WIKIPÉDIA. OCAD University. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/OCAD_University> (acesso em outubro de 2016)
sobre o autor
Victor Augusto é estudante de graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
ficha técnica
projeto
Sharp Centre
autor
Will Alsop
localização
Toronto
cliente
OCAD University
área
7,800 m2
ano
2004
prêmios
2004 RIBA Worldwide Projects Award
2004 DX Design Effectiveness Award
2005 Toronto Architecture and Urban Design Award of Excellence – Building in Context