Por ocasião do 152o. Encontro do Conselho Superior – COSU do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, que se realizou em São Paulo de 27 a 30 de setembro de 2017, foi programada uma visita guiada ao novo edifício do Instituto Moreira Sales – IMS, na Avenida Paulista, com o escritório Andrade Morettin arquitetos, que assina a autoria do projeto. A visita foi precedida por um debate, “Produção e desafios da habitação na arquitetura contemporânea em São Paulo”, no auditório do mesmo IMS, que contou com a presença de representante dos escritórios Andrade Morettin (o arquiteto Marcelo Morettin); do escritório BaseUrbana (a arquiteta Marina Grinover) e do escritório Biselli & Katchborian (o arquiteto Mario Biselli). A mediação foi feita pela arquiteta Luciana Royer, professora da FAU USP e vice-presidente do IAB/SP; que também contou com a ajuda da arquiteta Marta Bogéa, professora da FAU USP.
O debate foi sobre a recente produção de habitação de interesse social e urbanização de favelas no centro da cidade de São Paulo, um tema caro na história da rede do IAB, que desde pelo menos 1963 quando num seminário no Hotel Quitandinha em Petrópolis, os arquitetos defenderam a reforma urbana. Nessa ocasião, os arquitetos irmanados pela representação do IAB já defendiam que a urbanização de favelas deveria fazer parte da política habitacional do país, não sendo portanto um problema, mas na verdade uma solução. A questão permanece em debate na sociedade brasileira, e nunca pretendeu romantizar as favelas brasileiras, que são fruto claro da precariedade e da exclusão social, mas que, com a implantação de melhorias urbanas adequadas poderiam se incluir como áreas da cidade brasileira, com claras potencialidades. Mas apesar da relevância do assunto, esse texto de hoje se restringe a uma análise do novo edifício do IMS na Avenida Paulista do escritório Andrade Morettin Arquitetos Associados.
A primeira questão a ser destacada é o primor do detalhamento e da construção da edificação do IMS na Avenida Paulista, um padrão claramente acima da média nacional, e que certamente assinala a monumentalidade do programa. A edificação impressiona e se destaca pelo padrão de detalhamento e pela sua execução, frente a seu entorno imediato, fazendo com que o usuário, por antecipação tenha consciência da magnitude da proposta. Um certo descuido com o pavimento de acesso, no nível da Avenida Paulista, se justifica apenas pela proposição algo forçada e abstrata de construção da grande recepção do centro cultural estar localizada no quinto pavimento. Onde encontramos, a escultura Viúva Negra de Calder, pertencente ao IAB-SP, a pavimentação em pedra portuguesa, o não fechamento pelas esquadrias da edificação, conformando um avarandado, e as atividades de recepção, guarda-volumes, e loja de lembranças e café típicos dos controles de entrada de todos os centros culturais contemporâneos. Tal imposição arbitrária típica do projetar, se remete claramente ao corte da edificação, uma obsessão da arquitetura paulista depois de Vilanova Artigas, seu grande ideólogo, aqui nas palavras dos autores:
"O corte longitudinal esclarece a distribuição do programa, consolidado no ano e meio de desenvolvimento do projeto. Nele, visualiza-se a permeabilidade da calçada da Paulista com o interior do edifício, assim como o seu prolongamento no percurso iniciado por meio de duas escadas rolantes – a primeira com lance de seis metros e a outra, de 11 –, espécie de túnel de luz que conduz ao térreo elevado. Este, localizado no núcleo do prédio – desdobramento dos espaços públicos da Paulista –, é uma praça que abriga infinitas possibilidades de ocupação, “como se tirassem o vão livre do Masp e colocassem no meio do IMS, deixando a liberdade acontecer dentro do edifício”, menciona Marcelo Maia Rosa, arquiteto associado do escritório. A partir daí, tem-se acesso à área de exposições, nos três pavimentos acima, e à midiateca posicionada abaixo” (1).
Várias pessoas já discorreram sobre o significado do corte para a arquitetura paulista desde Vilanova Artigas, no emblemático edifício da escola de arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), a FAU, e em outras edificações do mestre. Enquanto, em Le Corbusier a planta é geradora da espacialidade arquitetônica, sintetizando as experiências que serão vividas, em Artigas, o corte é o que melhor concentra a proposição central da edificação. Tanto é assim, que o folder de visitação amplamente distribuído no centro cultural, se utiliza de um corte para se comunicar com os usuários. Tal atitude definidora da composição arquitetônica, além de se constituir numa plataforma privilegiada da tectônica, sempre também reforça a ideia de caixa autônoma da edificação, acabando por enfatizar a separação entre interior e exterior, enfatizando limites que parecem querer ao mesmo tempo doutrinar e se diferenciar do contexto. Basta lembrarmos da citação do próprio Artigas, enfatizando a interpretação do mestre de obras da própria FAU USP: “Doutor, por dentro é uma maravilha, por fora é uma fortaleza” (2).
Tal atitude metodológica apresenta uma tendência de autonomizar o objeto frente ao seu contexto, reforçando o isolamento da caixa arquitetônica, que no IMS-SP parece estar reforçada pela decisão de transplantar a portaria para o quinto pavimento. A estrutura, a tectônica, a adequação climática estão primordialmente bem resolvidas e concatenadas, mas a distribuição funcional e sua conectividade não são claras. Com isso, há um evidente problema de legibilidade na apropriação social da edificação, tornando a imagem ou o mapa mental da construção um pouco complicado, trazendo claros prejuízos na sua utilização. A perda da continuidade e contiguidade com o espaço convencional de maior ordem pública, a rua, a Avenida Paulista trazem claros problemas no registro afetivo da edificação. Tais condições são ainda mais enfatizadas pela ausência de um núcleo de circulação vertical bem dimensionado e bem localizado, que cumprisse o papel claro de reconecção entre galerias, auditório, mediatecas, hall e cidade. A escada frontal, que se conforma clara aos usuários, apenas no quinto pavimento, além de subdimensionada, não acessa o térreo, muito menos o nono andar, trazendo uma descontinuidade para a fruição do edifício, e o registro de um mapa legível. Nesse sentido, a edificação como um todo acaba comprometendo o registro do circuito de visitação, item fundamental para qualquer centro cultural.
notas
1
PERROTTA-BOSCH, Francesco. Um marco cultural. Andrade Morettin Arquitetos: Sede do Instituto Moreira Salles, São Paulo. Projeto Design, n. 408, São Paulo, 19 out. 2017 <https://www.arcoweb.com.br/projetodesign/tecnologia/andrade-morettin-instituto-moreira-salles-sao-paulo>.
2
ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 35.
sobre o autor
Pedro da Luz Moreira é arquiteto e doutor pelo Prourb (FAU UFRJ, 1983; 2007), professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Fluminense Federal, sócio fundador da Archi5 Arquitetos Associados.