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João Masao Kamita, professor, pesquisador e crítico de arquitetura, resenha sua visita à Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, onde conheceu a escultura “Walking is Measuring” realizada por Richard Serra especialmente para o local.

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KAMITA, João Masao. Serra em Serralves. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 206.03, Vitruvius, fev. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.206/6890>.


Tão logo adentrarmos ao Museu de Arte Contemporânea da Fundação Serralves (1991-1999), projeto do famoso arquiteto português Álvaro Siza, passando pelo pórtico de entrada, vislumbramos à direita uma escada ladeando o alto muro que delimita a propriedade à oeste. Trata-se de uma via secundária, na medida em que se coloca lateralmente ao acesso principal que leva aos espaços do museu. Ademais, o parque e a antiga mansão se desenvolvem do lado oposto, com seus jardins geometrizados entremeados por caminhos pitorescos, esculturas contemporâneas e cenográfica vegetação.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, acesso à obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Justamente aí, nesse caminho esquecido, subalterno, vemos em meio aos alámos e arbustos uma placa de aço vertical elevar-se, interpondo-se à passagem. Ela parece interromper o caminho, mas ao nos aproximarmos vemos que há estreitas passagens laterais, uma do lado do muro alto, outra no lado oposto, no limite do corte para o nível inferior da via que dá acesso de serviço do museu. Por estas frestas, olhando com mais atenção vislumbramos o que se dá mais além: na extremidade oposta uma segunda placa de aço fincada no solo. Atravessamos por uma das laterais, vemos abrir-se o longo caminho de chão batido, cuja perspectiva se interrompe justamente com este segundo elemento. Assim, iniciamos a caminhada seguindo em frente, vendo a placa retangular se aproximar à medida que avançamos, mas a todo momento, viramos para trás para checar o afastamento da outra. Uma cresce, outra diminui, nesse ritmo prosseguimos até mais ou menos o centro, quando as duas referências se equilibrariam, em tese. Mas justamente no ponto central, quando vislumbramos quase imediatamente as duas extremidades, num giro rápido de um lado e de outro, aí, percebemos que não se tratam de placas de tamanhos idênticos, tal como a primeira impressão passara. A primeira é mais alta que a segunda (532 x 244 x 15cm; 386 x 244 x 15cm). Este fato nos causa estranheza na medida em que os pontos de referência que reforçam a imagem de semelhança se mantém. Quais são eles? A posição vertical, a cor e textura, a largura e espessura, as frestas laterais e o alinhamento à altura do muro. As dimensões aparentemente são contraditórias ao que diz a percepção, mas só caminhando é que tais diferenças se tornam evidentes.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

“Walking is Measuring” (Caminhar é Medir) – primeiro trabalho realizado por Richard Serra em 2000 para a Fundação Serralves – faz todo sentido, uma vez que o revelar se dá na continuidade entre percepção e mobilidade.

O que poderia justificar essa sensação de discrepância mesmo quando nossos olhos em princípio nos dão outra impressão?

Serra (1) ressalta que em referência às qualidades formais, as peças são discretas e pouco expressivas, pois o que interessa é o ato de caminhar por entre elas e desse modo poder experimentar esse espaço de modo diferente, adquirindo uma consciência mais apurada das relações que o constituem. É precisamente essa sensação de inadequação ao que se dá à primeira vista que nos impele a reavaliar as relações entre espaço e escultura.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Entre as duas placas, o caminhar se dá na interação com os elementos existentes, em isolamento e quietude. A intimidade com o lugar oferece a condição de uma percepção mais atenta. Aí começamos a avaliar melhor a situação. Passado o impacto da interposição da primeira chapa de aço, vemos que o plano de chão apresenta uma leve curvatura, com o ponto de tangente, em princípio, mais ao centro. Na minha interpretação, a topografia é o ponto crucial para entender as articulações da intervenção, na medida que é pela avaliação das cotas que se explicaria a diferença de altura das chapas. Um degrau abaixo do caminho, vemos a cota do museu, tendo como espaço de transição a cinta de álamos e arbustos. Reconhecemos então as decisões que levaram à implantação da edificação, em cota baixa, e a distribuição do programa – decomposto e fragmentário no início, concentrado e unificado ao fundo, conforme justificativas do arquiteto (2), para não incomodar ou perturbar com sua presença o parque e o casarão antigo.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

No limite oposto é a grande muralha vertical a impor-se. Mas aqui se infiltra uma referência diferenciada, não restrito ao aspecto material que evidentemente se integra na sintaxe escultórica da intervenção. Refiro-me à condição semântica do muro como elemento revelador das relações socioespaciais, mais exatamente da dupla condição, qual seja a diferença entre intra e extramuros. Embora o caminhar se dê dentro do parque, justamente pela presença imponente do muro, o espaço exterior é também convocado a participar da experiência e este, me parece, o grande salto da escultura de Serra.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Voltando às relações entre cotas, notamos que borda superior do muro é a cota final a ser mensurada, cuja variação começa a se tornar visível pelo forte escalonamento de planos para dentro do terreno em relação à inclinação constante da rua limítrofe. E está é perceptível no topo, que marca em intervalos regulares degraus para acompanhar a inclinação da rua. Desse modo, mantendo-se a premissa de alinhar a altura das placas com a do muro, este sendo não retilíneo, senão escalonado, é lógico que as chapas de aço terão alturas distintas, justamente por seguirem o movimento do chão em relação ao muro, cujas alturas variam de 3,5 a 5,5m. De fato, esse movimento de topo é claramente perceptível se tomarmos a perspectiva do lado da rua, ali vemos como a via está em cota bem mais baixa na direção da entrada do Museu e vai subindo em direção oposta. A diferença de 2 metros parece muito, mas devido a longa extensão do limite (ao contrário do declive mais acentuado na área do bosque e do museu), tal variação surge diluída na paisagem. A via em questão é a Rua Dom João de Castro. Na calçada do lado da Fundação, há apenas o muro e carros estacionados, do outro lado, mansões da primeira metade do século 20 decadentes. A rua é tão só um lugar de passagem, repetindo de certo modo a situação de marginalidade que se encontra o caminho da escultura, condição que praticamente se repete em todo o vasto contorno do local. O Parque, assim, se revela um microcosmo verde em meio ao entorno urbano, que sobrevive pelo abrupto isolamento.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

“Caminhar é Medir”, tal como indica a proposição do título da peça, em Serra não se resume à mensuração de dimensões lineares, não se restringindo, enfim, aos índices geométricos entre as placas de aço cortem; vai além, assume uma dimensão estrutural, rumo à condição efetivamente urbana. O que só se torna relevante a partir da consideração das práxis social e contextual envolvida na situação, num plano de entrelaçamento entre linguagem e percepção. A fenomenologia implicada nesse raciocínio incide contra o modo de apreensão sensorial imediatista e irrefletida, aquela da qual se alimenta o senso comum. Por esta razão avança para além dos dados perceptivos e os cruza com os códigos semânticos que ditam as relações sociais.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Walking is Measuring, obra de Richard Serra
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, vista externa a partir da Rua Dom João de Castro
Foto Masao Kamita

Referimo-nos no início do texto ao caráter marginal do caminho escolhido para a intervenção. É lícito supor que antes, deveria ser um passeio integrado ao velho parque, na medida em que deixava ver nessa parte um traçado mais romântico de massas verdes informais, em oposição ao classicismo geometrizante dos jardins do lado da mansão. Contudo, a implantação do novo museu onde havia um antigo pomar tornou essa alameda desfuncionalizada, colocando-a numa condição de invisibilidade e de irrelevância, contradição que a instalação teria apontado.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, vista externa a partir da Rua Dom João de Castro
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, vista externa a partir da Rua Dom João de Castro
Foto Masao Kamita

A práxis escultórica de Serra continuaria mantendo-se, como se vê, firme aquela premissa (3 em relação ao modo como uma arte se relaciona com a outra. Contrariando a tese clássica de Clement Greemberg de que uma arte deve realizar sua própria autocritica, a premissa do escultor americano seria: uma arte serve para criticar outra. O confronto entre a escultura de Serra e a arquitetura sempre traz reflexões interessantes para os dois campos.

A crítica de Serra parece direcionar-se para o fato da arquitetura, tanto o museu contemporâneo como o casarão antigo, se voltarem exclusivamente para sua interação com o parque, ou seja, para dentro de seus limites internos. Apesar do hábil jogo entre totalidade e fragmentação, que permite abrir e entrelaçar o museu nos espaços do jardim, com a inclusão de pátios e grandes planos de vidro de modo a afirmar e ao mesmo tempo torná-lo uma presença discreta em relação ao preexistente, o projeto se resolveria na sua relação com o “conteúdo”, deixando o “continente” separado. “Caminhar é medir” pretende reinstituir, tal como é característico de Serra, a conexão com o entorno urbano em toda sua extensão e complexidade.

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, vista externa a partir da Rua Dom João de Castro
Foto Masao Kamita

Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, vista externa a partir da Rua Dom João de Castro
Foto Masao Kamita

Independente de se concordar ou não com tal crítica, o interessante é que a obra de Richard Serra no Museu de Arte de Serralves permite vislumbrar o encontro de duas tradições: o empirismo desviante e melancólico de Álvaro Siza e o pragmatismo americano de Serra. Em termos artísticos, isso significa a possibilidade de flagrar as similitudes e diferenças entre as estratégias do contextualismo arquitetônico e a lógica pós-minimalista do site-specific.

notas

1
A esse respeito, ver: FARIA, Óscar. Uma escultura pública de Richard Serra em Serralves. Público, Lisboa, 29 nov. 2000 <https://www.publico.pt/2000/11/29/jornal/uma-escultura-publica-de-richard-serra-em-serralves-151875>

2
A esse respeito, ver: SIZA, Alvaro. Imaginar a evidência. São Paulo, Estação Liberdade, 2012. Para uma apreciação detalhada do projeto ver: CECILIA, Fernando Marquez. Álvaro Siza 1958-2000. El Croquis, n. 68/69+95, 2007.

3
Ver o catálogo da exposição “Rio Rounds”, volume 2 (1999), que contém a palestra proferida por ocasião da exposição de Richard Serra no Centro de Arte Hélio Oiticica, em 1997.

sobre o autor

João Masao Kamita é arquiteto, formado pela Universidade Estadual de Londrina, Mestre em História Social da Cultura/PUC-Rio e Doutor em Arquitetura pela FAU-USP. É autor de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2000) e um dos organizadores de Um modo de ser moderno: Lucio Costa e a crítica contemporânea (Cosac Naify, 2004). É professor da PUC-Rio, atuando no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura e nos Cursos de Graduação em História e em Arquitetura e Urbanismo.

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