Uma coisa é o lugar físico, outra coisa é o lugar para o projeto. E o lugar não é nenhum ponto de partida, mas é um ponto de chegada. Perceber o que é o lugar é já fazer o projeto.
Alvaro Siza Vieira
CircunstânciasEm meados de 2013 nos pedem para que estudemos rapidamente qual o número de leitos que caberiam no casarão para um novo hostel. Na primeira visita, além de comprovar o estado de abandono e maltrato que o casarão vinha recebendo fazia anos, apesar de estar “protegido” pelas normativas de preservação do patrimônio arquitetônico; também registramos que nos fundos do lote havia um espaço expectante e asfixiado pelas enormes e altas empenas de edificações construídas no século XX; flanqueado pela quase imperceptível presença da torre da igreja do “largo do Machado”.
Patrimônio Logo verificamos que a normativa definia para o casarão a conservação e restauração da volumetria externa original, assim como e sem precisão, orientava à recuperação dos seus interiores. A priori nenhuma construção nova seria permitida sem o acordo dos órgãos.
Devido aos altos custos que implicariam a recuperação do antigo casarão, propusemos uma nova edificação nos fundos destinada a um aumento no número de leitos (anexo novo). A nova construção, além de trazer viabilidade econômica, segundo nossos argumentos perante os órgãos de preservação, colaboraria a mitigar a presença das altas construções vizinhas e conformaria ou revelaria um novo pátio, um novo claustro.
Minuciosas negociações durante pouco mais de um ano aprovaram o projeto.
Novo AcessoO antigo casarão funcionava originalmente com dois acessos pela tranquila rua Gago Coutinho, o primeiro direto pela rua, e o segundo pelo pátio lateral. O projeto propôs concentrar o novo acesso exclusivamente pelo pátio lateral, conformando assim um único pátio de acesso. Duas decisões principais, cuidadosamente debatidas com os clientes e com o “patrimônio” definiram como seria o acesso: por um lado se idealizou um pergolado que absorveria um bar de uso público, de proporções e construção sensíveis às belas galerias laterais executadas em peças de ferro fundido no século XIX. Este contribuía para mitigar a presença do alto edifício vizinho e ao mesmo tempo para afirmar uma escala própria de generosidade com o espaço da rua. Por outro lado se nivelou o piso do pátio à altura do nível interno do casarão, já não mais destinado aos antigos coches e carruagens e sim a pedestres e outros tipos de acesso com rodas. O piso do pátio elevado uns 30cm se vincula por uma rampa suave com o nível da calçada pública.
Novo ClaustroNos fundos havia uma construção que chamamos de “anexo antigo”, a qual interrompia o passeio nas galerias que rodeavam parcialmente o antigo casarão. A partir de intervenções no encontro entre casarão e anexo antigo, e da integração com as circulações comuns no “anexo novo”, conseguimos prolongar e abraçar o novo claustro com novos passeios. Agora o vazio cobrava protagonismo rodeado por oportunidades de usufruir a perspectiva do casarão restaurado, assim como o claustro, não tão claustro, fugia como o fizeram Aalto e Le Corbusier em Saynatsalo e La Tourette. No novo claustro do Villa, como se fosse o “claustro da igreja”, as perspectivas fogem e descobrem a torre, em cantaria amarronada e paredes caiadas brancas, e as palmeiras da praça do Largo do Machado e, em outra direção, as magras e altas árvores da rua Gago Coutinho.
Quartos e Cabines No casarão antigo, de tetos altos, concentramos os quartos coletivos –cabines- e, para reforçar os passeios dos habitantes do Villa pelas fachadas, invertemos a circulação, convencionalmente disposta no centro da planta e sem iluminação natural. Como Kazuyo Sejima fez na casa S ou no edifício Gifu Kitagata no Japão, dispusemos as circulações de acesso às cabines nas fachadas e aproveitamos os altos tetos para trazer luz e ar acima das portas, conseguindo com isso que esses passeios se afirmassem também como lugar de encontros casuais.
No anexo novo, como já fizemos anteriormente no concurso do Porto Olímpico (Rio de Janeiro, 2011), voltamos a ensaiar uma seção que apelidamos de “corte Jaraguá”, em evidente citação e agradecimento ao projeto de Paulo Mendes da Rocha. No Villa 25, essa seção nos permitiu aproveitar uma altura entre lajes de 3,50m de altura para juntar a circulação aberta de 2,20m e um espaço para um terceiro leito, em cada quarto, com 1,30m de altura. Esta seção que hoje começamos a chamar “corte Gago”, além de promover o passeio pelas fachadas, também dribla a invasão sonora nos quartos.
Construção A construção do antigo casarão do XIX nos seduziu com as pesadas alvenarias complementadas com cantarias em granito, e um rico repertório de ornatos de manufatura artesanal e industrial, volutas, florões, capiteis etc. Especialmente na serralheria em ferro fundido, tudo configurava um tecido, cheios de linhas e nós, algo que buscamos revisitar a partir de novas métricas e novas ordens em diversos pontos da intervenção. Assim as proporções das fenestrações do anexo novo se inspiram nas altas portas do antigo casarão, buscamos revelar sua construção em aço em pequenos momentos. Preservamos o perímetro interno da casarão em alvenaria aparente, reservando para os interiores dos quartos as superfícies lisas. Copiamos a paleta cromática da igreja para sugerir um conjunto. Utilizamos uma lajota de barro de 10x10cm no piso dos pátios, que logo foi subindo qual altos rodapés em trechos dos anexos e evitando uma clara distinção entre “o novo e o antigo”.
Pergolado Em uma primeira instância do projeto, a área do pergolado absorvia o espaço da cozinha do bar e um pequeno depósito, buscando liberar a área, atualmente destinada à cozinha, para o espaço do café da manhã. O “patrimônio” questionou essas funções de apoio em lugar tão protagônico. Essa crítica fundamental nos permitiu pensar nesse pergolado apenas como um definidor espacial de áreas totalmente abertas.
O desafio consistia em estudar qual o desenho “certo” para uma peça em direta relação com a galeria em ferro fundido em 2 níveis altos. Iniciamos o desenho voltando a outro de nossos queridos patrimônios. Como se fosse a construção de uma laje de concreto armado, mas sem concreto, voltamos aos desenhos do catalão Toni Girones e à frase de Louis Kahn, que buscava revelar o “artesão oculto”. Revisitamos os pilares da Vila Mairea, de Aalto, e os da bilheteria dos jardins da bienal de Veneza, de Scarpa. Buscamos alinhar alturas de pisos, cornijas, fustes e capiteis da galeria existente para definir o novo desenho. Finalmente substituímos os pesados pilares em concreto armado que o século XX tivera instalado pelo medo do desabamento da galeria, por pilares iguais aos do novo pergolado. Uma vez mais, evitando a instantânea literalidade do novo e o antigo.
Encontros e AmbiguidadesA intervenção em um patrimônio declarado nos fez revisar a noção de intervenção e a noção dos tempos superpostos, qual camadas arqueológicas. Muitos dos encontros que nos inquietaram estudar no projeto e na obra do Villa se dedicaram a revisar, como já afirmamos, as claras e diretas distinções entre o novo e o velho, assim como a pureza do claustro ou do aparentemente inquestionável valor do original. Mas, um encontro nos exigiu especial atenção, foi este o que produzia a relação entre casarão e anexo antigo, nele achamos o maior problema, pois além das indelicadas intervenções do século XX, também havia registros confusos do que teria sido a construção original. Foi ali que propusemos a intervenção de maior escala, removendo parte da alvenaria e fenestrações construídas na edificação original do século XIX. Sutis rastros como o gradil antigo e o novo em vergalhões lisos, entre outros, são capazes de revelar a mão do século XXI.
Nos interessou pesquisar, através do desenho, um caminho onde buscamos dilatar um tempo, no qual muitos tempos podem conviver, reforçando algumas ambiguidades, algo como evitar as dicotomias do sim “ou” não, do branco “ou” do preto; pelo contrário, interessava abrir o tempo no qual o que vigora como oposto se entrelaça, onde o conflito é vitalidade, onde o sim “e” o não convivam.
ficha técnica
projeto
Hostel Villa 25
local
Rio de Janeiro RJ Brasil
áreas
Terreno: 600m2
Pré-existência: 800m2
Anexo novo: 400m2
ano
2013-2016
projeto de arquitetura
Rodrigo Calvino e Diego Portas (autores), Geraldo Filizola, Priscila Marques, Victor Lutte, Manuela Muller, Tamar Firer, Marta Sanchez, Carlos Zebulum (equipe) / C+P Arquitetura
equipe
Priscila Marques, Barbara Cutlak, Victor Lutte, Manuela Muller, Tamar Firer, Marta Sanchez, Carlos Zebulun.
colaboradores
Júlia Carreiro, Felipe Fernandes, Bruno Barrio
execução
Diego Portas, Rodrigo Calvino, Juan Alvite e Irvin Molinari
projeto de restauro
Diego Portas, Rodrigo Calvino / C+P Arquitetura
execução de restauro
Oikos / Marcos Borges e Claudio
demolição e fundação
Lafem engenharia
cálculo estrutural
Cerne engenharia e projetos
estrutura metálica
Inusa / Ferrobran
instalações sanitárias e elétricas
Instal engenharia / FWS projetos
ar condicionado e ventilações mecânicas
Artex
impermeabilização
Impermaster
gesso acartonado
Placo Center
marcenaria
Marvan / Marcenaria Wilton
projeto de Iluminação
C+P Arquitetura
fotos
Federico Cairoli
nota
NE – O júri do Prêmio Instituto Tomie Ohtake Akzo 2018, formado pelos arquitetos Adriana Benguela, Fábio Mariz Gonçalves, José Lira, Marcos Boldarini e Priscyla Gomes, selecionaram treze finalistas, publicados nos números 211 e 212 da revista Projetos do portal Vitruvius:
01. PRISCO, Alexandre; ANDRADE, Nivaldo. Casa do Carnaval. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 211.01, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.211/7056>.
02. MANGABEIRA, Daniel; COUTINHO, Henrique; SECO, Matheus. Casa 711H. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 211.02, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.211/7058>.
03. NITSCHE, Lua; NITSCHE, Pedro. Residência Piracaia. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 211.03, Vitruvius, jul. 2018 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.211/7059>.
04. O’LEARY, Fernando; DOMINGUES, Pedro; FARIA, Pedro. Vila Amélia. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 211.04, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.211/7060>.
05. TEIXEIRA, Carlos M. Casa no Cerrado. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 211.05, Vitruvius, jul. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.211/7062>.
06. VAINER, André. Residência em Gonçalves. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 212.01, Vitruvius, ago. 2018 <http://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.212/7063>.
07. VIGLIECCA, Héctor; QUEL, Luciene; SHIMIZU, Neli; WERNER, Ronald Fiedler. Parque Novo Santo Amaro V - Programa Mananciais. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 212.03, Vitruvius, ago. 2018 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.212/7064>.
08. MACIEL, Carlos Alberto; ITOKAWA, Ulisses Mikhail Jardim. Estúdios Ouro Preto. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 212.04, Vitruvius, ago. 2018 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.212/7065>.
09. CALVINO, Rodrigo; PORTAS, Diego. Hostel Villa 25. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 212.02, Vitruvius, ago. 2018 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.212/7071>.
10. JUNI, Anna; WINKEL, Enk te; DELONERO, Gustavo. Sede de uma Fábrica de Blocos. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 212.05, Vitruvius, ago. 2018 <http://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.212/7073>.
11. FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo. Cais do Sertão. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 216.02, Vitruvius, dez. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.216/7193>.
12. XAVIER, Cristina. Vila Taguaí. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 205.03, Vitruvius, jan. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.205/6859>.
13. ROCHA, Paulo Mendes; MOREIRA, Marta; BRAGA, Milton; FRANCO, Fernando de Mello. Sesc 24 de Maio. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 206.02, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.206/6886>.