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projects ISSN 2595-4245


abstracts

português
Este artigo se propõe a discutir o registro de práticas domésticas e a conservação de um dos exemplos mais icônicos de arquitetura moderna doméstica: a Casa E1027, projetada por Eileen Gray em Roquebrune-Cap-Martin, França.

english
This essay aims to present the record of domestic practices and the conservation of one of the most iconic examples of modern domestic architecture: the E1027 House, designed by Eileen Gray in Roquebrune-Cap-Martin, France.

español
Este ensayo tiene por objeto presentar el registro de las prácticas domésticas y la conservación de uno de los ejemplos más emblemáticos de la arquitectura doméstica moderna: la Casa E1027, diseñada por Eileen en Roquebrune-Cap-Martin, Francia.

how to quote

GUIMARÃES, Thays Teixeira. Casa E1027. Sobre a residência projetada por Eileen Gray. Projetos, São Paulo, ano 20, n. 234.01, Vitruvius, jun. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/20.234/7782>.


A Casa E1027 é reconhecida como patrimônio do século 20 pelo governo francês desde os anos 2000, é um dos exemplos mais icônicos de arquitetura doméstica do período e a primeira obra arquitetônica projetada pela designer irlandesa Kathleen Eileen Moray Gray (1878-1976). A residência, construída entre 1926 e 1929, era a casa de férias localizada em Roquebrune-Cap-Martin, na França, de Eileen e seu parceiro, Jean Badovici. O nome da casa remete à ordem do alfabeto: E para Eileen, 10 para J (a décima letra do alfabeto), 2 para B e 7 para G.

Partindo de uma pesquisa bibliográfica, da visita de campo realizada pela autora em julho de 2019 e da participação na palestra Internacional do Iconic Houses de Tim Benton, no Het Nieuwe Instituut em Rotterdam, na Holanda, em outubro de 2018, este texto se propõe a discutir o registro de práticas domésticas e a conservação do imóvel após sua abertura para o público.

A casa, hoje preservada pela agência Association Cap Moderne, é passível de visitação por roteiros culturais específicos para grupos interessados. A agência de proteção do litoral comprou a casa e um primeiro restauro aconteceu coordenado pelo arquiteto Pierre-Antoine Gatier entre 2006 e 2010. Como muito trabalho restava ainda a ser feito, a agência passou a tarefa à Associação Cap Moderne e, inicialmente, à arquiteta Claudia Devaux. Nos últimos quase três anos, muito do esforço da Associação Cap Moderne foi direcionado ao restauro dos móveis da sala de estar da Casa E1027. Em 2018, a Associação lançou uma campanha de crowdfunding para a restituição dos mobiliários fixos e autônomos usando os métodos e materiais originais de Eileen Gray.

O projeto de restauro, além de seu resultado palpável, também tem o dever de desafiar muitos dos mitos que giram em torno da casa e das relações entre Eileen Gray, seu companheiro na época Jean Badovici e o arquiteto Le Corbusier. A casa foi completamente abandonada e destruída durante a Segunda Guerra Mundial, os mobiliários leiloados e Eileen Gray foi esquecida enquanto autora deste projeto durante muitos anos, assim como sua maior obra arquitetônica, que passou por vários proprietários diferentes após a mudança da artista em 1934.

Assim, como afirmou Tim Benton em sua palestra de outubro de 2018, o que o restauro da casa propõe é tentar responder à certas questões, como por que Eileen Gray foi uma designer tão única, o que está envolvido em tentar restituir seus móveis e por que estamos tentando fazê-lo?

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

A casa de férias projetada por Eileen Gray foi uma afirmação filosófica, pois, como será reforçado no texto, os mobiliários e a planta da casa propuseram uma nova forma de morar moderna, mais flexível e adaptada ao corpo humano e à seus movimentos. A Casa E1027 é um híbrido entre os princípios do modernismo e as concepções da artista sobre o corpo humano.

A influência da arquitetura modernista e sobretudo de Le Corbusier é evidente. A janela da sala de estar, por exemplo, apesar de ser uma parede de vidro que proporciona uma abertura completa para a paisagem, enquadra a vista do oceano como se fosse uma janela em fita, devido ao guarda corpo e a cobertura da varanda. A presença do terraço é outro ponto em comum com os princípios modernos, entretanto Eileen propôs um terraço acessível aos usuários apenas visualmente através da escada envolta por painéis de vidro que tem uma função primária de iluminação interna.

Os espaços e cômodos da casa são divididos pelo uso da luz natural, pela diferença de cor dos ladrilhos do pisos e pelas paredes amovíveis. Eileen Gray foi muito influenciada também pelo De Stijl, como pode-se observar pela parede amovível em técnica de laca (1) instalada na sala de estar e também pela descoberta de um tratamento policromático na parede da sala, pintada em branco por cima em 1929.

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

Beatriz Colomina afirmou em seu texto “War in Architecture” (2) que Le Corbusier – através de sua estranha mescla de admiração, desprezo e sexismo – ocupou, manipulou e desfigurou a Maison en Bord de Mer ao pintar oito murais com tema do nu feminino. Porém, apesar desta intervenção o restauro da casa que vemos hoje dá a atenção necessária a arquitetura de Eileen Gray, em detrimento dos murais. Assim como restauradas as paredes em branco, foi também escondido um dos murais de Le Corbusier mantendo a icônica visão da sala de estar da Casa E1027 apresentada pela primeira vez na revista L’architecture Vivante, em 1929, em uma fotografia tirada pela artista. Apesar dos murais ainda estarem na casa e não serem parte do design original, eles adquiriram um status de proteção.

Entre o restauro de 2006 e o que vemos hoje, alguns resultados ressaltam, como a técnica utilizada para confeccionar os tapetes marroquinos da sala de estar, o poster “Invitation au voyage”, as texturas e os tecidos das camas e das cortinas da salas de estar, os interruptores de tomadas transparentes com um enquadramento de vidro e a fiação de superfície.

Ao caminhar pela casa, o visitante se sente guiado pela própria arquiteta devido às curtas frases e palavras que Eileen Gray gravou pelas paredes como uma espécie de manual de instruções sobre como experimentar e descobrir a Casa E1027. Na entrada da casa, lê-se “entre lentamente” e “sentido proibido”, no hall, “permissão para rir”, na cozinha, “talheres”, “copos”, “pratos”, na estante do quarto, “papéis e cartas” e no lavabo, “coisas leves”. O restauro da casa permite também entender as ideias e percepções de Eileen Gray sobre arquitetura doméstica através da mistura de materiais, texturas e cores, mas também sua ideia de experimentação do espaço, de movimento, políticas de gênero, sexuais e domésticas.

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

Através da visita, fica evidente o distanciamento de Gray dos cômodos de serviço, como a cozinha, a qual não tem acesso interno ao restante da casa. A cozinha opera de forma a confundir a dicotomia público/ privado. Ela é um dos cômodos mais produtivos da casa para o sexo feminino e marcado pela empregada doméstica e a Casa E1027 foi projetada considerando a presença da empregada, que passa pelo “sentido proibido” para ir ao seu quarto no subsolo, também o menor cômodo da casa, sem grandes aberturas de vidro ou acesso direto ao exterior como todos os outros espaços.

No quarto do casal, vemos o toque exótico da arquiteta, a junção entre Arte Déco e Arte Moderna através dos tecidos em cima da cama. Um dos mais interessantes exemplos é como, através da pesquisa, os responsáveis conseguiram achar algo completamente autêntico como o pequeno banco do lavabo do quarto, feito com a mais antiga companhia de produção de móveis dentários da Grã Bretanha, Ash & Sons (3).

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

Eileen Gray fundiu os espaços domésticos tradicionalmente separados pelas políticas sexuais e de gênero. Ela posicionou seu próprio estúdio no quarto de casal e uniu-o com o boudoir – criando um boudoir-studio – espaço historicamente reservado à mulher, o que proporcionou à ela a privacidade masculina do estudar.

A visita a casa deixa evidente que a arquitetura de Eileen era íntima, sugestiva e ambígua, relacionada ao erotismo. O banheiro na sala estar com meias paredes e sem porta que permite uma visão completa do teto e, em frente, a alcova para dormir com a mesa pivotante de leitura, ambiente ao mesmo tempo reservado pelo corredor estreito, porém bastante exposto para sua função. Eileen afirma que a sala de estar também é um ambiente com múltiplas funções – um cômodo convertível – para moradores e para entreter convidados através das paredes amovíveis e a grande cama.

A hierarquia espacial criada pelas separações internas proporciona aos usuários uma sensação de independência. Em um desenho de 1923, pode-se ver que a artista pensou nas rotas de circulação dos habitantes, dos convidados e dos empregados e na orientação solar. Eileen também imaginou as futuras áreas de encontro e áreas de parada para realização de certa atividade (4).

Os móveis criam um senso espacial que dá a impressão de a casa foi criada a partir do interior, no entanto, nenhum detalhe externo foi ignorado pela artista. No exterior, vemos o solário restaurado: foram deixados alguns ladrilhos brancos originais no canto do solário enquanto os outros, brancos, pretos e marrons, foram substituídos por novos devidos ao péssimo estado em que se encontravam.

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

Igualmente interessante é considerar as questões e escolhas do restauro, como a Turning Table, localizada no quarto de casal, uma peça que foi refeita diversas vezes devido a sua fragilidade, até contemplar a proposta original de Eileen Gray em termos estéticos e materiais. Por enquanto, há cadeiras na sala de estar – Transat Chair, Bibendum Chair e o divã – fornecidas pela Aram (5), que são colocadas no local para que os visitantes possam se sentar durante a visita de duas horas, especialmente durante o verão extremamente quente. Afinal, os mobiliários de Eileen Gray dependem da experimentação, do movimento e do apelo estético.

A casa, assim como toda a proposta de design da artista, dependem também da experiência sensorial. Eileen usou muitos materiais para invocar as sensações dos habitantes e para sugerir camadas de contato com o corpo humano, como corrimãos de crômio e superfícies de metal brilhante [semelhante a Charlotte Perriand (6)] no banheiro para oferecer um arrefecimento para o clima mediterrâneo.

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

A abertura da casa ao público é um acontecimento muito importante, pois ela com certeza é reconhecida pela sua beleza estética e qualidade arquitetônica mas, também, pela raridade de ter sido projetada por uma mulher no século 20. Quando se estuda o gênero e a casa é comum que haja uma relação quase instantânea com a figura da mulher. Como a arquitetura define a domesticidade? Como os corpos de homens e mulheres e as características masculinas e femininas se projetam nessas premissas? A mulher e a domesticidade estão ligadas social, culturalmente e nos discursos arquitetônicos.

O restauro ainda não está terminado, os cômodos como o quarto de empregada e o quarto de hóspedes no subsolo não estão abertos para o público por enquanto. O restauro e conservação da casa moderna ainda são questões que estão sendo muito debatidas, estudadas e testadas, sobretudo em casos delicados como a Casa E1027 levando em conta toda a história oral e modificações pelas quais a casa passou ao longo dos anos.

Ao contrário do primeiro projeto de restauro, que almejava transformar a residência em um laboratório internacional, hoje, vê-se um projeto que prioriza as intenções projetuais de Eileen Gray mais também do que o palimpsesto, que envolvia os murais de Le Corbusier e algumas mudanças e adaptações feitas por Jean Badovici ao longo dos anos.

Le Corbusier construiu sua cabana – que Colomina descreve como não mais que apenas uma plataforma de observação – em 1952, acima da Casa E1027 e apenas a 20m de distância. Assim, hoje, a visita não inclui somente a Casa E1027, mas a Cabanon de Le Corbusier projetada para ele e a esposa, o restaurante Étoile de Mer e a Unité de Camping, também projetados pelo arquiteto. A visita dura duas horas e o visitante não tem nenhum tempo sozinho no local, só é possível sua locomoção dentro da casa quando acompanhado de um guia.

Ainda resta muito trabalho a fazer, desde a criação de alguns mobiliários e reinvenção de outros ao restauro dos cômodos restantes, toda essa proposta deve ser acompanhada cada vez mais por iniciativas que possibilitem entender quantas transformações aconteceram neste espaço que se tornou rodeado de mitos e anedotas. O restauro e abertura desta casa têm a função de recuperar sobretudo a memória de uma das maiores arquitetas e designers modernas, sem que Eileen Gray seja promovida apenas quando as mulheres “ausentes” na arquitetura são resgatadas do esquecimento histórico.

Casa E1027, Roquebrune-Cap-Martin, França. Arquiteta Eileen Gray, 1926-1929
Foto Thays Guimarães

notas

NE – Este texto trata das reflexões e conclusões resultantes da pesquisa de iniciação científica intitulada Gênero e preservação: diferentes expressões nos modos de morar, sob orientação da professora doutora Sabrina Fontenele, realizada pela autora entre 2017 e 2018 com apoio da Fapesp.

1
Em 1910, Eileen Gray abre seu atelier junto com o artesão japonês especialista na técnica da laca (l’artisan laqueur), Seizo Sugawara.

2
COLOMINA, Beatriz. War on Architecture: E1027. Cambridge: The MIT Press, n. 20, pg. 28-29, abril de 1993. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/3181684>.

3
BENTON, Tim. 4th Iconic Houses Lecture Tour Europe – Restoring Eileen Gray’s Villa E-1027. Youtube. 01 de Novembro de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Cfojlx-T1Os>.

4
E1027, rotas de circulação e orientação solar. 1926-1929. Riba Library drawing and archives collections.

5
Companhia inglesa que recebeu licença para fabricar e distribuir todos os designs de Eileen Gray a partir de 1973.

6
Foi a primeira designer a utilizar tal material e original ao trabalhar com alumínio, cortiça, aço tubular e celulóide.

ficha técnica

projeto
Casa E1027

local
Roquebrune-Cap-Martin, França

ano
1929

arquitetura
Eileen Gray

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