Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

projects ISSN 2595-4245


abstracts

português
O Conjunto Habitacional Pedregulho recebeu aclamação internacional, mas o que é talvez menos conhecido do público mundial é o papel singular que Carmen Portinho desempenhou na concepção e realização do projeto.

english
Pedregulho Housing Complex received international acclaim, but what is perhaps less known to the world audience is the unique role that Carmen Portinho played in the design and realization of the project.

español
El Complejo de Viviendas Pedregulho recibió elogios internacionales, pero lo que quizás sea menos conocido para la audiencia mundial es el papel único que desempeñó Carmen Portinho en el diseño y la realización del proyecto.

how to quote

ALMINO, Letícia Wouk. Pedregulho e Carmen Portinho. Pioneira do modernismo brasileiro. Projetos, São Paulo, ano 20, n. 240.02, Vitruvius, dez. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/20.240/8097>.


O complexo habitacional brasileiro Pedregulho foi concluído no Rio de Janeiro em 1954. Projetado por Affonso Eduardo Reidy, o conjunto foi destinado a funcionários públicos de baixa renda e incorporou uma escola, um ginásio e projeto paisagístico de Roberto Burle Marx. O projeto recebeu aclamação internacional, mas o que é talvez menos conhecido do público mundial é o papel singular que Carmen Portinho desempenhou na concepção e realização do complexo Pedregulho. Portinho já era conhecida por ter gerenciado e entregue o projeto do Museu de Arte Moderna do Rio, mas seu nível de comprometimento pessoal é mais evidente nos projetos habitacionais. Ela teve que lutar incansavelmente contra as dificuldades administrativas persistentes impostas pelo complexo sistema burocrático e político do Rio de Janeiro. Gostaria de focar em seu papel como primeira diretora do Departamento de Habitação Popular – DHP, e como sua agenda em favor do modernismo brasileiro diferia dos projetos de habitação social que vieram antes.

Carmen Portinho: os primeiros anos

Carmen Portinho (1903-2001) chegou ao Rio de Janeiro aos cinco anos de idade, vinda de sua cidade natal, Corumbá, no Mato Grosso do Sul, na região Centro-Oeste do país, longe do litoral. Para ela, o Rio de Janeiro deve ter parecido uma cidade de sonhos. Era o centro cultural e político do Brasil. Na época, o Rio passava por uma grande renovação urbana sob a direção de Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro, que considerava o trabalho de Haussmann, em Paris, como referência. Portinho continuaria a pavimentar o caminho para um novo modernismo, revolucionando o que significava ser uma pessoa moderna numa sociedade em mutação. O Rio de Janeiro passava por uma rápida transformação, e Portinho desempenharia um papel significativo na configuração de seu ambiente construído, principalmente liderando o Museu de Arte Moderna e o Pedregulho, ambos projetados por Reidy.

Primeiro, gostaria de chamar atenção para outras realizações importantes e precoces de Portinho. Ela foi a terceira mulher no Brasil a se formar como engenheira civil e foi a primeira mulher a receber o título de urbanista da Universidade do Distrito Federal. Mulher de caráter forte, Portinho foi uma ardente defensora dos direitos das mulheres e participou do movimento sufragista brasileiro em 1919. Mais tarde, em 1932, convenceu o presidente Getúlio Vargas a permitir o voto da mulher no Brasil. Ela criou a União Universitária Feminina com o objetivo de ajudar a melhorar as carreiras das mulheres e combater a discriminação sexual (1).

Portinho era uma mulher à frente do seu tempo, que continua a servir como um exemplo expressivo de empoderamento feminino. Diante de desafios políticos e burocráticos, a força de vontade de Portinho, ou um teimoso sentido de dedicação, fez da realização do complexo habitacional Pedregulho um sucesso, ajudando a posicionar o Brasil como líder do movimento modernista. Nos tempos atuais, quando as agendas políticas conservadoras parecem tão desalinhadas dos ideais democrático-socialistas, é importante destacar figuras como Portinho que, apesar da administração política conservadora, conseguiu encontrar maneiras de trabalhar com os poderes da época para promover seus valores ideológicos.

Getúlio Vargas: um Brasil moderno

O Brasil tornou-se uma democracia constitucional em 1889. O período da República Velha continuou até 1930, quando o golpe de estado de Getúlio Vargas derrubou o antigo regime das oligarquias rurais. Embora burocrático e autoritário, o novo regime iria iniciar um programa de reconstrução nacional. Vargas queria modernizar o país, instituir um estado de bem-estar social e estabelecer o Brasil como uma nação industrializada. O meio de realizar esta missão foi o patrocínio político da cultura e da arquitetura modernistas. A habitação social tornou-se uma questão cada vez mais importante à medida que a industrialização e a urbanização levaram ao rápido crescimento das cidades brasileiras (2). Os métodos de produção em larga escala eram necessários para atender às demandas da população urbana. Durante seu mandato como presidente, de 1930 a 1937, e mais tarde como ditador, de 1937 a 1945, Vargas promoveu a intervenção em questões sociais e uma nova concepção de habitação de interesse social. Em um discurso proferido em 1938, Vargas instruiu o Ministério do Trabalho para projetar e construir unidades habitacionais modestas, mas confortáveis, e adquirir vastas áreas de terra com acesso a transporte para os centros das cidades. O governo pretendia reduzir o custo da construção por meio da eficiência e da produção vertical, promovendo a ideia de que a habitação poderia ser algo diferente de uma unidade unifamiliar isolada. A produção de habitação de interesse social durante o regime de Vargas seria importante na consolidação do modernismo brasileiro.

Mas a agenda de "ordem e progresso", estampada na bandeira brasileira, permaneceu sob os preceitos de um regime autoritário. Nabil Bonduki argumenta que o governo Vargas acolheu um ambiente moderno, onde o novo homem brasileiro poderia florescer, mas apenas dentro da restrição de instalações sociais estatais que "funcionavam como instrumentos de controle e normalização de comportamento (3). "É um processo que Boris Fausto chama de "modernização conservadora" ou a que Néstor García Canclini se refere como "modernização incompleta." Este conservadorismo foi o clima político com que Portinho teve de lidar para levar os seus projetos até o fim.

Lúcio Costa e Le Corbusier

Antes de 1930, a educação arquitetônica no Brasil estava confinada ao currículo científico das politécnicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, para uma formação profissional em engenharia, ou ao currículo de artes plásticas da Escola Nacional de Belas Artes – Enba no Rio de Janeiro, que adotava o estilo neoclássico. Até quando em 1930, Lúcio Costa, que cresceu na Europa e regressou ao Rio de Janeiro aos 28 anos para estudar arquitetura, foi nomeado como novo diretor da Enba e desviou o foco do classicismo. Costa olhou para a vanguarda europeia como uma nova orientação para a escola, e a Bauhaus, com sua ênfase em arte e tecnologia, tornou-se o modelo de Costa. Para uma nação jovem que tentava definir-se, o modernismo europeu tornou-se o ponto de referência ideal. Os escritos de Le Corbusier também se tornaram o foco da educação arquitetônica, juntamente com o interesse pelo barroco brasileiro (4). Costa convidou Affonso Eduardo Reidy, que tinha acabado de terminar seus estudos na Enba, para se juntar ao corpo docente, ao lado de Warchavchik e Roberto Burle Marx. Embora Costa tenha sido forçado a renunciar ao cargo no ano seguinte pelo grupo conservador, sua breve influência na escola teria repercussões duradouras.

Para a construção do novo Ministério da Educação e Saúde (construído entre 1937 e 1943), o progressista Ministro da Cultura, Gustavo Capanema, encomendou a Lúcio Costa a elaboração de uma proposta. Costa reuniu uma equipe composta por Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer. O grupo recomendou que Le Corbusier fosse convidado ao Brasil para dar consultoria sobre o edifício do ministério (5). Embora Le Corbusier tenha apresentado duas propostas que não foram adotadas, ele tentou levar o crédito pelo projeto em diversas ocasiões posteriores. Todos os cinco elementos apresentados por Le Corbusier (pilotis, planta livre, fachada livre, janelas horizontais, jardim no teto) estavam presentes no projeto construído. Esses elementos encontraram um ambiente natural em um clima tropical, em que os pilotis ao nível do solo forneciam sombra e brisas frescas (6), e o brise-soleil na fachada norte modulava a intensidade do sol. Bonduki afirma que Le Corbusier foi uma influência decisiva para trazer o modernismo para o Brasil, mas também foi importante o fato de que profissionais brasileiros viajaram para o exterior, mais notadamente Carmen Portinho, que morou algum tempo na Inglaterra após a Segunda Guerra Mundial. Le Corbusier já havia visitado o Brasil em 1929, quando em pleno voo produziu um projeto no Rio de Janeiro (assim ele afirma em Précisions). O projeto consistia em um viaduto de 100 metros de altura – com uma via expressa no topo de dez andares de unidades habitacionais – serpenteando ao longo dos contornos dos locais geográficos importantes do Rio, pairando sobre a cidade em pilotis de 30 metros de altura. O projeto fala mais do desejo de Le Corbusier de competir com a paisagem, em vez de se integrar a ela (como Reidy faria mais tarde com sucesso no Pedregulho). A geografia surge genericamente e reflete a autopromoção de Le Corbusier como um ‘planejador aéreo’. Foi mais ainda a influência de seus escritos e a série de palestras ministradas por ele enquanto esteve no Rio, que iriam informar muito sobre o pensamento em torno da arquitetura moderna brasileira.

Carmen Portinho e a habitação social brasileira

Carmen Portinho foi enviada como delegada a Paris para se encontrar com Le Corbusier, a fim de lhe mostrar fotografias do projeto concluído do Ministério da Saúde e Educação. Em 1944, ela viajou para a Europa de navio, para passar seis meses na Inglaterra, observando os esforços de reconstrução pós-Segunda Guerra Mundial em Londres, Bath, Cardiff e Liverpool. Quando voltou ao Rio em 1945, sua primeira iniciativa foi elaborar um plano no âmbito do Departamento de Estradas e Obras para fornecer habitação para funcionários municipais. Nesse sentido, Portinho fundou e tornou-se diretora do Departamento de Habitação Popular – DHP, nomeando Reidy, seu sócio, como arquiteto-chefe. O objetivo de Portinho era combater os problemas habitacionais do Rio de Janeiro causados por uma população em expansão. Na década de 1940, a população do Rio tinha atingido 1,5 milhão (quase o dobro de 1920) e, de acordo com o censo de 1948, nove por cento da população vivia em comunidades não planejadas, conhecidas como favelas (7). Sob o regime de Vargas, o Brasil passou por um período de industrialização e crescimento econômico, o que naturalmente provocou um aumento da população nos centros urbanos, particularmente no Rio, a capital do país na época. Com falta de opções, o segmento mais pobre da população foi obrigado a encontrar suas próprias soluções habitacionais, o que resultou em áreas superpovoadas e loteamentos ilegais ou ocupação de lotes. O prefeito do Rio, Henrique Dodsworth, propôs contornar a questão simplesmente demolindo as favelas e deslocando os moradores para unidades habitacionais presumivelmente 'temporárias' em Parques do Proletariado, enquanto moradias mais permanentes eram construídas. Mas a moradia permanente nunca aconteceu. A crise habitacional foi abordada no primeiro Congresso Brasileiro de Arquitetos realizado em São Paulo, em 1945. Concluiu-se que era necessária a produção de moradias para servir à população de baixa renda; tinha que ser projetada como habitação multifamiliar alugada, em vez do sistema consolidado, baseado na propriedade unifamiliar, para reduzir o custo de construção de cada unidade (8).

Portinho acreditava que a moradia deveria ser oferecida como um serviço público básico que iria revolucionar a educação do trabalhador brasileiro (9). A habitação social era o veículo perfeito para transmitir os princípios do modernismo. Ela acreditava que a aplicação da máxima de Le Corbusier, "uma casa é uma máquina para viver", poderia levar a uma transformação completa da sociedade (10). Foi ela que tentou popularizar essas ideias no Brasil. Na Revista Municipal de Engenharia, publicou um artigo fazendo referência direta a Le Corbusier: "É hora de oferecer ao homem [do século 20], na idade da máquina [...] habitação digna de sua era. Uma máquina para viver, bem montada e organizada, que lhe permita recuperar aquela coisa inestimável, que hoje está quase perdida, que é a liberdade individual. Construiremos o abrigo do homem como se constrói o automóvel ou o vagão do trem. Vamos adaptar a moradia à economia moderna". Fiel às suas crenças sufragistas, ela também queria que a casa moderna libertasse as mulheres das obrigações do trabalho doméstico, para que elas pudessem ingressar na força de trabalho profissional. Na habitação social, ela via a possibilidade de introduzir novos hábitos e um modo de vida moderno, que mudaria fundamentalmente as condições de vida dos trabalhadores e corrigiria as injustiças sociais do país.

Como diretora do Departamento de Habitação Popular – DHP, ela planejava construir um complexo habitacional multifamiliar em cada bairro do Rio. Portinho defendia unidades de bairro com moradias públicas alugadas, próximas dos locais de trabalho e dos serviços sociais, médicos e educacionais. Em referência aos princípios defendidos por Le Corbusier, acreditava que a possibilidade de viver perto do trabalho reduziria a distância e o tempo de deslocamento e liberaria mais tempo para o lazer, a socialização e os esportes, promovendo assim um estilo de vida saudável. Ao final, Portinho conseguiu construir apenas quatro complexos habitacionais: Gávea (também projetado por Reidy), Vila Isabel, Paquetá e Pedregulho, que foi de longe o mais ambicioso. Nenhum dos projetos foi concluído de acordo com o projeto original, indicando as dificuldades causadas pelas condições desafiadoras dos canteiros de obras e os custos do projeto. Para difundir os princípios do modernismo brasileiro para o maior número de pessoas, o DHP também iria trabalhar na concepção de casas unifamiliares modelo para o público. As casas adotaram plantas eficientes e dispositivos de proteção solar, como brise-soleil ou cobogós (blocos vazados de alvenaria que filtram a passagem de luz e ar). Uma parte substancial dos subúrbios do Rio foi construída usando essas plantas de habitação distribuídas gratuitamente por Portinho (11).

É importante destacar os projetos de habitação de interesse social que precederam Portinho. Embora muitas vezes negligenciada pela história da arquitetura moderna no Brasil, houve uma produção habitacional significativa patrocinada pelo governo federal e construída entre 1930 e 1950. Como foi discutido anteriormente, os projetos de construção eram usados pelos políticos brasileiros como uma oportunidade para aumentar sua popularidade, e assim a arquitetura serviu para promover o espírito de modernização do país. Os projetos de moradia patrocinados pelo Estado foram viabilizados pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários – IAPI. O IAPI projetou trinta e seis complexos habitacionais, totalizando 142 mil unidades em treze estados brasileiros. Alinhado com a missão de Portinho, o IAPI buscava a criação de unidades de aluguel em blocos habitacionais com acesso a equipamentos comunitários, como uma alternativa mais acessível e sustentável para casas unifamiliares. O IAPI introduziu uma mudança, da separação clara entre espaço público e privado, para uma abordagem mais integrada, em que os aspectos da vida englobavam uma gama de serviços coletivos e espaços compartilhados (12). Desta forma, o projeto de habitação social integrava a arquitetura ao planejamento urbano.

Os complexos habitacionais do IAPI foram projetados por muitos arquitetos brasileiros talentosos, incluindo Paulo Antunes Ribeiro, M. M. Roberto, Eduardo Kneese de Mello e Hélio Uchoa Cavalcanti. O Conjunto Residencial Realengo, projetado por Carlos Frederico Ferreira e construído em 1939 no Rio, foi considerado o primeiro projeto de habitação moderna construído no Brasil em grande escala. Ele incluiu duas mil unidades projetadas por meio de um sistema de padronização para facilitar e limitar o tempo de construção. E assim, a arquitetura moderna, com sua ênfase na economia, racionalidade e produção em massa, tornou-se o estilo lógico para representar a habitação social brasileira. Em Realengo, como em muitas outras cidades, os blocos habitacionais do IAPI destacaram-se da paisagem urbana de edificações baixas como uma visão esperançosa dos ideais modernistas a que aspirava a sua arquitetura. Um dos conjuntos habitacionais mais significativos foi a Várzea do Carmo, projetado por Attílio Correa Lima em 1942. Foi planejado com economia e densidade máximas para viabilizar moradias de baixa renda no centro de São Paulo. Devido à falta de pesquisas, e sua exclusão por historiadores da arquitetura, como Yves Bruand, a produção habitacional do IAPI muitas vezes não é mencionada como um importante precursor do complexo Pedregulho e da obra de Portinho. Embora não tão ambiciosos formalmente, os complexos do IAPI espalharam as sementes do modernismo brasileiro e, por serem amplamente disseminados, deixaram uma marca duradoura na paisagem urbana.

Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho), Rio de Janeiro RJ Brasil, 1947. Arquitetos Affonso Eduardo Reidy e Carmen Portinho
Foto Cesar Barreto

Pedregulho (1948-1954)

"Se quisermos dar [arquitetura] ao conteúdo humano que lhe falta, devemos participar da luta política".
Oscar Niemeyer

Pedregulho simbolizava uma promessa de progresso. Sua arquitetura esperava gerar transformação social e se tornar a solução para o problema das favelas. O projeto não foi prejudicado pelas mesmas limitações econômicas dos projetos do IAPI; Portinho teve a oportunidade de apresentar uma visão muito mais ousada. E foi o que ela fez. O Pedregulho, em homenagem ao morro em que foi construído, está localizado na zona norte do Rio de Janeiro, em São Cristóvão. Originalmente um abrigo da família real portuguesa no século 19, foi uma das primeiras áreas a ser ocupada na região. Na década de 1920, a área foi zoneada para uso residencial e industrial e tornou-se um bairro da classe trabalhadora com uma população principalmente abrigada em casas precárias e favelas. Isso ainda ocorre hoje. A propriedade tem cinquenta mil metros quadrados e está assentada sobre uma mudança de nível de cinquenta metros. O sinuoso Bloco A abraça a paisagem, empoleirado no topo do morro para aproveitar a vista e captar a brisa. A forma curvada apresenta uma mudança ousada da rigidez do modernismo europeu e sugere um novo estilo carioca, único na paisagem do Rio.

O Bloco A contém 522 unidades, com uma gama de equipamentos e serviços coletivos destinados a atender aos funcionários municipais de baixa renda. Por exemplo, o motorista do prefeito ou um funcionário do zoológico. Portinho selecionou os moradores com a ajuda de assistentes sociais do DHP; o aluguel era deduzido do salário que recebiam do Estado. Assim como os projetos do IAPI, os apartamentos eram alugados e o prédio era propriedade do governo, que era responsável por sua manutenção.

Pedregulho, como muitos projetos do IAPI, promoveu um modelo de alta densidade e vida mínima, de acordo com os preceitos do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – Ciam. Portinho explica bem claramente a ideia inicial do projeto: "A origem do Pedregulho começou em 1945, quando regressei de Inglaterra (13), onde colaborei com arquitetos e engenheiros britânicos nas suas cidades no final da Segunda Guerra Mundial. [...] O primeiro projeto seria a construção de blocos habitacionais [...] destinados a moradores de baixa renda residentes, principalmente, perto dos seus locais de trabalho (14). E assim, eles economizariam tempo e dinheiro, que seriam de outra forma gastos em transporte. Devem ser moradias dignas, com respeito ao trabalhador, com todas as comodidades da vida moderna, e com integração às artes" Para Portinho, a moradia funcionaria idealmente como um condensador social e, desta forma, Pedregulho foi e continua a ser, uma conquista singular. Portinho definiu o programa do conjunto, incorporando todos os elementos necessários de um bairro: escola, mercado, lavanderia, centro de saúde, piscina, academia, quadra esportiva, parque infantil, clube social e creche. Com todos estes serviços por perto, as mulheres poderiam finalmente ter um alívio nas suas responsabilidades domésticas. A lavanderia comunitária inicialmente enfrentou resistência dos moradores, pois muitos não queriam que os funcionários da lavanderia vissem suas roupas velhas ou desgastadas. Foi implementado um sistema anônimo de marcação de roupas, e a própria Portinho enviava suas roupas para serem lavadas lá, mas a ideia nunca foi adiante. Portinho acreditava que os moradores precisavam aprender a viver nessas moradias modernas, usar os recursos comunitários oferecidos e promover um espírito de unidade (15).

O layout da planta é projetado para incentivar a máxima interação social. O acesso ao edifício é colocado no terceiro andar, o nível médio, permitindo a circulação vertical sem a necessidade de um elevador. O terceiro andar é projetado como uma rua suspensa aberta e é onde estavam localizadas uma pequena creche e salas comunitárias. O primeiro e segundo andares contêm unidades de eficiência para casais sem filhos, enquanto os andares superiores contêm apartamentos duplex com unidades de dois, três ou quatro dormitórios. O acesso aos apartamentos duplex no quarto e no sexto andar é feito por meio de corredores margeados por cobogós, que proporcionam ventilação e sombra. Em fotografias publicadas, os corredores aparecem banhados em luz solar, ventilados e filtrados por meio dos blocos geométricos vazados de alvenaria; elas mostram vasos de plantas ou cadeiras, pessoas sentadas e conversando, e crianças brincando.

O projeto distingue-se dos projetos habitacionais que antecederam a sua integração de estratégias sociais e urbanas com as artes, uma ideia muito importante para Portinho. Pedregulho encarna os ideais modernistas brasileiros de plasticidade, e fusão de arte e arquitetura. A curva arrebatadora do telhado do ginásio enquadra as formas gestuais em azulejo azul e branco de Portinari; as paredes exteriores do nível térreo da escola são decoradas com azulejos de mosaico na composição caprichosa de Burle Marx de abstrações de pessoas e cores; azulejos de Anísio Medeiros decoram a clínica. Burle Marx também projetou o paisagismo que envolve todo o complexo.

Junto com a escala de ambição deste projeto, surgiram também muitas dificuldades. O projeto começou em 1946, e a construção dois anos depois. Portinho sequenciou a construção para começar com as comodidades comunitárias para garantir que fossem construídas. A escola, o centro de saúde, a lavanderia, a piscina, bem como os blocos residenciais B1 e B2 foram inaugurados em 1950-1951. O sinuoso Bloco A permaneceu em construção, experimentando atrasos devido aos custos crescentes e dificuldades de construção, e foi inaugurado apenas no início dos anos 1960. Reidy era contencioso e teve vários embates com o prefeito Mendes de Moraes, mas Portinho era uma presença constante, desempenhando o papel de diplomata, navegando pelas diferentes administrações, indiferentes ou hostis ao projeto. Portinho também supervisionou a construção e, mais decisivamente, usou sua influência política para obter os recursos necessários para a conclusão do projeto. Portinho e Reidy compartilhavam uma ideia utópica, mas sem sua dedicação a essa visão e sua agilidade social para contornar a burocracia, o complexo Pedregulho não teria sido possível (16). "O sonho e a realidade caminharam lado a lado", escreveu Portinho (17).

Considerações

Pedregulho representa o fim do rico período de inovação da habitação social brasileira. Quando o Bloco A foi ocupado, Portinho e a sua equipe tinham sido demitidos e o DHP extinto, e juntamente com ele, a visão de uma comunidade de bairro autônoma. Os edifícios permaneceram sob propriedade da cidade, mas muitas das complexas tarefas de manutenção do edifício foram delegadas para os moradores. Os aluguéis foram fixados em trinta por cento dos salários dos moradores, mas o modelo entrou em colapso após o Golpe Militar em 1964, já que a nova administração, mais conservadora, não queria mais investir em projetos de habitação social (18). Com a transferência da capital brasileira para Brasília em 1960, o Rio de Janeiro experimentou um declínio em sua influência política e poder de gastos. Pedregulho também sofreu um declínio gradual com a infraestrutura negligenciada e decadente, e apropriação indevida pelos moradores. Os cariocas criticaram o projeto por suas despesas e complexidade. Lara argumenta que o fracasso final do Pedregulho foi sua incapacidade de ser replicado, pois permaneceu como um estudo de caso isolado, incapaz de fazer uma contribuição significativa para o crescimento urbano intenso (19).

Mas embora o projeto tenha falhado em sua replicação física, ele mais do que compensou em sua disseminação de ideias, tanto no Brasil quanto no exterior. O projeto ganhou o primeiro prêmio na Bienal de Arquitetura em São Paulo em 1951, e recebeu elogios de Walter Gropius e Max Bill, que preferiram as conquistas sociais de Reidy em vez da "gratuidade formal de Niemeyer." Le Corbusier visitou o projeto em sua terceira viagem ao Brasil em 1961 (20), e elogiou Portinho, afirmando: "Fiquei surpreso; eu nunca tive a oportunidade de realizar um trabalho tão completo, de acordo com meus próprios princípios, como você fez” (21)”. Foi somente quando o projeto recebeu aclamação internacional, e foi elogiado por seu domínio formal e por lidar com a habitação pública de uma forma tão sensivelmente alinhada com a agenda modernista, que se tornou aceito pelos brasileiros. Com o tempo, os moradores também se afeiçoaram ao edifício, apropriando-se amorosamente dele, tornando o complexo habitacional seu. Em 2005, um plano estratégico para a restauração do Bloco A foi executado pelo escritório de Alfredo Britto. A restauração começou em 2010 e foi concluída em 2015.

Embora o brilho do Pedregulho nunca tenha sido replicado, o projeto aponta para o gênio de Portinho e chama atenção para suas ideias visionárias. O objetivo de Portinho era criar estruturas sociais e eliminar uma forma conservadora de viver em prol de um modelo comunitário e, em certo sentido, ela foi bem sucedida. A fama de Pedregulho espalhou a esperança de seus ideais utópicos. Mesmo que a visão final de Portinho de um novo modelo de habitação social não pudesse ser repetida, a mensagem de vida coletiva do Pedregulho é importante e não deve ser subestimada (22). Os projetos do DHP eram muito mais ambiciosos e mais caros do que os do IAPI, mas ambos desempenharam um papel importante na solidificação do modernismo brasileiro, não apenas na forma, mas em sua ideologia. Como um governo de direita volta a ocupar o poder no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, e o país se sente mais fragmentado do que nunca, é importante lembrar de pessoas que poderiam imaginar uma forma de viver em unidade, coexistindo com os vizinhos, com a paisagem, e com a arte. Lúcio Costa reconhece que pode parecer ilógico que o município se permita o luxo de construir um projeto tão ambicioso, dada a extensão da crise habitacional do Rio, mas diz que os recursos públicos não foram gastos em vão. O projeto de Portinho para o Pedregulho, como um símbolo duradouro de esperança, humaniza a questão da moradia e nos mostra como a classe trabalhadora poderia viver.

Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho), Rio de Janeiro RJ Brasil, 1947. Arquitetos Affonso Eduardo Reidy e Carmen Portinho
Foto Leonardo Finotti

notas

NE – Este trabalho foi originalmente publicado na Plat 9.0 Commit, em 15 de fevereiro de 2020.

1
MARTINEZ, Zaida Muxi. Mulheres nos bairros modernos: Margarete Schütte-Lihotzky; Jakoba Mulder, Lotte Stam-Beese; e Carmen Portinho. Docomomo 51, 2014, p. 78.

2
VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Volume 6. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1942, p. 99-100.

3
BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna e a produção de habitação social no Brasil (1930-64). Praxis: Journal of Writing + Building, n. 3: Housing Tactics, Boston, 2001, p. 108. Traduzido por Wilson Loria Dias e Irina Verona.

4
Reidy foi sócio de Portinho durante trinta anos, até morrer. Eles compartilharam duas casas que projetaram e construíram juntos. Eles nunca se casaram.

5
Lúcio Costa conheceu Le Corbusier enquanto assistia às reuniões do Ciam em 1934.

6
BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna e a produção de habitação social no Brasil (1930-64) (op. cit.), p. 108. Traduzido por Wilson Loria Dias e Irina Verona.

7
NOBRE, Ana Luiza. Carmen Portinho: o moderno em construção. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999, p. 42.

8
Idem, ibidem, p. 43.

9
BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna e a produção de habitação social no Brasil (1930-64) (op. cit.), p. 108. Traduzido por Wilson Loria Dias e Irina Verona.

10
PORTINHO, Carmen. Revista Municipal de Engenharia, jan. 1942.

11
NOBRE, Ana Luiza. Op. cit., p. 47.

12
BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna e a produção de habitação social no Brasil (1930-64) (op. cit.), p. 108. Traduzido por Wilson Loria Dias e Irina Verona.

13
BONDUKI, Nabil (org.). Affonso Eduardo Reidy. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2000, p. 82.

14
Pedregulho foi construído quase coincidente com a Unité d'Habitacion (1947-52) de Le Corbusier.

15
NASCIMENTO, Flavia. O mito da vida moderna: a trajetória do desenvolvimento habitacional Pedregulho, no Rio de Janeiro. Revisão Habitações e Assentamentos Tradicionais 24, n. 1, 2012, p. 85.

16
BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna e a produção de habitação social no Brasil (1930-64) (op. cit.), p. 111. Traduzido por Wilson Loria Dias e Irina Verona.

17
NOBRE, Ana Luiza. Op. cit., p. 62.

18
LARA, Fernando Luiz. Utopias Incompletas: Desigualdades Embutidas na Arquitetura Moderna Brasileira. Pesquisa Arquitetônica Trimestral 15, n. 2, 2011, p. 136.

19
LARA, Fernando Luiz. A Ascensão da Arquitetura Modernista Popular no Brasil. Gainesville, University Press of Florida, 2008.

20
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981.

21
PORTINHO, Carmen. Depoimento a Lauro Cavalcanti. CAVALCANTI, Lauro. Casa para o povo. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1987, p. 72.

22
BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna e a produção de habitação social no Brasil (1930-64) (op. cit.), p. 114. Traduzido por Wilson Loria Dias e Irina Verona.

comments

240.02 arquitetura moderna
abstracts
how to quote

languages

original: português

source

share

240

240.01 institucional

Remodelación del Mercado del Ninot

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided