A Rota do São Benedito é uma experiência de turismo comunitário criada a muitas mãos a partir de memórias coletivas sobre o bairro São Benedito em Vitória. Se constitui como um circuito histórico-cultural que amplifica vozes e leva narrativas visuais e auditivas para a paisagem do bairro.

O bairro São Benedito surgiu no início da década de 1960, reduto de uma das últimas ocupações da capital, Vitória. Faz parte do Território do Bem, denominação adotada pelos moradores para designar uma região do centro do Município, composta por nove comunidades que juntos somam 32 mil habitantes (10% da população de Vitória). Por ser um dos morros mais altos da cidade, o acesso era difícil e os primeiros moradores vindos do Norte do estado, sobretudo do território quilombola Sapê do Norte, encontraram grandes desafios para se estabelecer. Durante anos o bairro foi formado por barracos de tábua e sapé. Foi na década de 1970 que começaram a ocorrer melhorias, com a implantação de energia elétrica e o abastecimento parcial de água.

Rota do São Benedito: mapa com os pontos de interesse identificados por moradores por meio do Inventário participativo "Nossa história, nosso bem!", idealizado pelas organizações Ateliê de Ideias e Fórum Bem Maior
Imagem divulgação [Acervo Cidade Quintal]

Segundo o morador Maurílio de Araújo: "Quando a gente começou não tinha condição. Nós abrimos esse chão aí cavando no enxadão, picareta, clareando com lampião de querosene. Foi muita luta para abrir essa estrada e chegar carro aqui em cima”.

O inventário participativo Nossa história, nosso bem! é uma pesquisa documental que apresenta informações transmitidas pelos moradores sobre os marcos associados às transformações urbanas, desafios vivenciados desde as primeiras ocupações e as histórias de vida que fazem deste território um lugar para ser visitado. O inventário foi um dos principais documentos que nortearam a configuração de um roteiro formado por oito pontos, que na rota se configuram como paradas para conhecer e vivenciar cada narrativa.

Rota do São Benedito, fachada do Bar do Senhor Manoel, Vitória ES. Arquitetos Juliana Lisboa e Renato Pontello / Cidade Quintal
Foto Thais Gobbo

O senhor Maurílio de Araújo, um dos fundadores do bairro, relembra a história do Bar Correspondências, um dos pontos de parada da rota. Conta que o bar, onde hoje funciona a mercearia UaiMart, além de vender de tudo, tornou-se um logradouro conhecido, cujo número 220 era utilizado pela comunidade. Na época, não havia números formalizados nas casas e este era utilizado pelos moradores para receber cartas do correio, que ficavam guardadas em uma caixa de sapato, sobre o balcão do bar. Somente em 2011, com o programa Endereço Cidadão, os moradores puderam receber suas correspondências em casa.

A proposta de turismo comunitário nasce de lideranças da comunidade do São Benedito, que antes da consolidação desse percurso de experiências, já acumulava repertório a partir de visitações pontuais de grupos interessados no passeio para avistar o Mirante do Farol. A Cidade Quintal, foi a responsável pelo projeto e execução que formalizou o percurso a partir do agenciamento espacial que culminou em mudanças na paisagem do bairro. O grupo foi convidado pela organização Ateliê de Ideias, que desde 2002 desenvolve projetos voltados para o desenvolvimento socioeconômico do território, incluindo a implantação do Banco Bem, um banco comunitário que potencializa o comércio local por meio de uma moeda social.

A experiência contempla a criação e execução de um áudio-tour, da qualificação de fachadas com murais, sinalização e mobiliário, desenvolvidos a partir de metodologias participativas da Cidade Quintal.

A Rota do São Benedito é uma iniciativa do projeto Economia do Bem, realizado pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público — Oscip Ateliê de Ideias, com recursos da Prefeitura de Vitória, através de Edital do FMPC/Semcid/Procon/Gerência de Qualificação do Trabalhador.

A experiência ao longo da rota

Os pontos de interesse principais que receberam intervenções foram uma praça, um centro comunitário, uma igreja, três casas, um comércio, um banco comunitário e um mirante onde está situado um farol ativo da marinha, que oferece uma vista panorâmica da Grande Vitória.

Esses oito pontos receberam narrativas visuais e auditivas situadas nas fachadas ou pisos. Outros dez comércios, localizados entre os pontos principais, tiveram suas fachadas requalificadas.

A praça do bairro é o ponto de encontro de visitantes, onde se observa o movimento do comércio local, e onde está situada a sinalização informativa com um mapa e a primeira narrativa da rota. De lá até o alto do Mirante do Farol, o visitante caminha em grupo por uma hora ao lado de um monitor local e realiza paradas para observar os murais, escutar histórias disponíveis em placas sinalizadas ou comprar um artesanato no comércio local. Após o trecho mais íngreme, que inclui uma pequena trilha na mata, chega ao Mirante, onde pode contemplar a vista sentado sobre um mobiliário feito com resíduo plástico coletado no bairro. Após um tempo de contemplação, retorna por outro caminho para o ponto inicial e segue para a última parada, o Banco Bem.

O desenho participativo: do projeto à execução

Foram seis meses de desenvolvimento até a inauguração final. Na fase inicial as reuniões aconteceram no Banco Bem, com ampla participação de moradores, comerciantes, lideranças comunitárias e religiosas, não só do São Benedito, como de bairros vizinhos que constituem o Território do Bem.

Os principais eixos do projeto da Rota foram:

• Criar representações visuais e auditivas para as fachadas, que dessem expressão para as narrativas mapeadas no inventário, para serem comunicadas nas fachadas ao longo do trajeto. Esta operação se constitui como um áudio tour guiado por monitores locais.
• Desenvolver a identidade visual da Rota e sua aplicação na paleta de cores e elementos das fachadas, na sinalização e no site informativo.
• Co-criar o desenho da experiência na rota de turismo comunitário, compreendendo mecanismos de acesso (físicos e virtuais), caminhabilidade, treinamento de monitores locais e comerciantes, entre outros.
• Desenvolver o projeto de forma participativa em seus diferentes estágios, a partir da mediação na escala comunitária.

Durante a pesquisa e estruturação, além do inventário Nossa história, nosso bem, outros documentos, pesquisas acadêmicas, conteúdos audiovisuais, ajudaram a formar as primeiras ideias sobre o roteiro, ainda assim não havia imagens correspondentes a todos os pontos. Nesse período, as reuniões foram importantes para a compreensão de como cada ponto seria representado. Moradores antigos presentes ajudaram a reconstituir memórias visuais sobre como eram os espaços, suas características, cores e mobiliários, como por exemplo para a elaboração do antigo Bar do senhor Manoel, ou como era a cena exata e as pessoas presentes no dia da procissão que trouxe a imagem do São Benedito — que até hoje está situada na Igreja.

Conforme o projeto foi ganhando forma, os momentos participativos aconteciam em grupos focais e os resultados parciais em reuniões abertas com ampla mobilização local.

A identidade visual da rota foi criada em parceria com o pintor letrista, morador do São Benedito, conhecido pelo senhor Almeida, autor das pinturas de fachadas de muitos comércios do território, como igrejas, açougues, padarias e afins. A designação do nome "Rota do São Benedito — turismo comunitário" foi um passo importante na consolidação do percurso. A partir dele, a identidade é formada por letras vernaculares, compostas por arranjos que dialogam com a geografia do roteiro, marcada por uma subida progressiva. Elementos gráficos, ícones, números e paleta de cores criados auxiliaram na aplicação das fachadas e da sinalização, gerando uma coesão visual ao longo do trajeto.

Em cada fachada as cores e grafismos foram usados para destacar elementos arquitetônicos existentes, redefinir informações importantes, como os nomes dos comércios e números das casas, e abrir áreas específicas para desenhos murais, que, como janelas temporais, levaram para a paisagem as histórias narradas.

Produção de mobiliário a partir de resíduos coletados na comunidade: tampinhas plásticas; material triturado; processo de produção de ripas no laboratório de prototipação da Cidade Quintal e mobiliário instalado ao lado do Farol do São Benedito
Foto divulgação [Acervo Cidade Quintal]

Uma ação que movimentou o bairro e gerou efeitos no médio prazo, foi a campanha para doação de resíduo plástico, para ser usado no mobiliário. Coletores de tampinhas plásticas foram instalados em comércios e escolas, o que proporcionou aderência de crianças e engajou moradores a partir de um simples gesto. Com o resíduo coletado, foi feito o processamento no laboratório de reciclagem plástica da Cidade Quintal, que desenvolveu placas para a montagem de um banco e parte da sinalização.

Durante a execução das pinturas, participaram três jovens pintores locais, que futuramente se habilitaram para atuar como monitores nas visitas. O artista Thiago Balbino foi convidado a integrar o processo de criação do ponto 04 — Dona Nailma, moradora homenageada com quem o artista compartilha sua ancestralidade, oriunda do território quilombola do Sapê do Norte.

O roteiro dos áudios foi co-criado com Luara Zucolotto, professora de uma escola pública situada no território e também realizadora do projeto Audiotour Ficcional na Cidade.

Ativação e desdobramentos

A Rota do São Benedito foi inaugurada em maio de 2022, com a participação da equipe do projeto, parceiros, lideranças comunitárias, moradores, jornalistas, grupos culturais e outros estiveram juntos em um cortejo com a Banda de Congo Amores da Lua.

Por meio da Organização Social Ateliê de Ideias, foi realizada a formação de monitores turísticos locais, que acompanham os visitantes e trazem mais informações sobre o bairro e o percurso. As recomendações, agendamentos e informações completas sobre a Rota do São Benedito podem ser encontradas no site oficial do projeto.

Após a finalização desse processo, a Cidade Quintal desenvolveu a qualificação de dez fachadas de comércios em pontos próximos do trajeto da rota. Além disso, foi formalizada uma parceria com o curso de Design da Universidade Federal do Espírito Santo, que tem dado continuidade ao processo de apoio ao empreendedor local, com ofertas de serviços de design gráfico e melhorias nos pontos comerciais.

Outro desdobramento deu-se no carnaval de 2023, quando a Escola Pega no Samba, situada no Território do Bem, levou para a avenida o samba-enredo "Era só mais um cria" e representou a Rota do São Benedito em um dos seus carros alegóricos. As pinturas foram realizadas pelo grupo Cidade Quintal e também houve a participação de lideranças comunitárias como destaques em um dos carros. A Escola foi campeã e promovida para o Grupo Especial.

A Rota do São Benedito é um dos trabalhos mais importantes realizados pela Cidade Quintal, pelo potencial que oferece como catalisador de mudanças positivas. Isso se dá no campo simbólico da disputa de narrativas que os moradores do São Benedito vivenciam enquanto comunidade periférica, uma vez que o bairro decide abrir as portas para mostrar todo seu potencial e ser reconhecido por isso, não só por narrativas de violência e abandono. Em segundo lugar no campo da economia local, ao fortalecer o pequeno comércio e os jovens em processo de formação profissional, aproximando-o das propostas para a rota e mostrando novas possibilidades de crescimento.

ficha técnica

projeto
Rota do São Benedito

local
Vitória ES

ano
2022

área
1.850 metros lineares

tempo médio de visitação
3 horas

design e arquitetura
Juliana Lisboa e Renato Pontello (coordenação geral) / Cidade Quintal

curadoria de conteúdo e pesquisa
Giselle Soares

criação dos murais
Juliana Lisboa, Renato Pontello e Iara Ribeiro

mobilização comunitária
Valmir Dantas, Cosme Santos e Denise Biscotto (Ateliê de Ideias)

produção executiva do audiotour
Alegria Falconi

roteiro do audiotour
Luara Zucolotto

captação, voz e edição
Bruno Hanstenreiter

execução do mobiliário e sinalização
Iara Ribeiro, Alegria Falconi, Renato Pontello, Juliana Lisboa e Henrique HP

execução da pintura mural
Ed Brown, Juliana Almeida, Walas Ferreira Maria, Cristina Vieira, Juliano Balbino, Renato Pontello e Thiago Balbino (artista convidado)

assistente de produção
Jamile Marriel

letrista local
Senhor Almeida e Pedreiro Nedilson

fotografia
Thais Gobbo e Andie Freitas

web design
Lutthyerre Mateus e Felipe Araújo