No Brasil a cultura indígena sempre foi vista como ponto de origem para a criação de nossa identidade nacional, e com isso a figura da pessoa indígena sempre foi apresentada como “primeiro brasileiro”. A problemática dessa forma de compreensão é que mesmo que os povos indígenas tenham sido os primeiros ocupantes do nosso território, sua imagem e cultura não podem ser entendidas como algo não processual e cristalizado no tempo (1). Além de todo o massacre sofrido pelos povos nativos há de maneira consonante um massacre simbólico, que busca cada vez mais o apagamento de tradições e identidades indígenas, tratando a cultura indígena como uma cultura morta que deve ser exposta em museus como souvenir de um passado colonial.
Porém, indo contra o pensamento da sociedade ocidental, que aceita apenas culturas e formas de organização com estruturas similares às suas, a cultura e identidade indígenas estão vivas e resistindo até os dias de hoje. A adaptabilidade não é um privilégio da cultura ocidental, as culturas indígenas também são capazes de se adaptarem a novas realidades e condições de vida. Isso faz parte de um processo de transfiguração étnica (2), isto é, a defesa dos povos indígenas contra ação da sociedade ocidental, para não serem assimilados ou destruídos.
As terras indígenas são porções do território nacional, que após processo legal de demarcação se tornam um bem da União, são habitadas por uma ou mais comunidades indígenas onde nelas podem exercer atividades produtivas, religiosas e culturais. É importante pontuar que terra indígena se configura como um título burocrático que formaliza perante a legislação áreas de vivência de comunidades indígenas, mas nem todas as áreas ocupadas por comunidades indígenas são terras indígenas, para isso elas precisam passar pelo processo burocrático de demarcação.
A demarcação de terras indígenas é de suma importância para os povos originários, pois garante um espaço para manutenção do modo de vida, cultura, produção, cosmologia e ritualística indígenas. E assegurar esses espaços é uma ótima ferramenta contra a política assimilacionista que os indígenas estão submetidos desde a chegada dos portugueses. Pela forte relação com recursos naturais, as terras indígenas geralmente são demarcadas em áreas rurais, muitas vezes até isoladas, o que dificulta o acesso das comunidades à serviços de saúde, trabalho, escola, comercialização de artesanato, e principalmente na troca cultural com a sociedade. Estabelecer locais isolados para comunidades indígenas é uma forma de exercer controle sobre eles, e também prejudicar a interação com outros povos (isolados em outras áreas) e assim reduzir seu potencial associativo, o que enfraquece a criação de movimentos de luta e engajamento. Além disso, a imobilização de comunidades indígenas em áreas rurais, acaba, por muitas vezes, transformando-as em mão-de-obra mais barata e afastando-as dos centros urbanos e das tomadas de decisões, reduzindo dessa maneira o exercício da sua cidadania.
Histórico
O casarão histórico localizado na rua Mata Machado número 126 no bairro Maracanã, na Zona Norte do Rio de Janeiro, se relaciona com a causa indígena desde 1910, quando foi sede de órgãos de proteção e integração indígena. Em 2006, após anos de abandono, a área passou a ser ocupada por um grupo de indígenas que já se reunia e organizava um movimento desde 2004, em defesa dos indígenas que habitavam a cidade do Rio de Janeiro, dando início à Aldeia Marakanã. E mesmo com muitas tentativas de diálogo com o poder público, e investidas para sua desocupação, a Aldeia Marakanã continua a funcionar como um polo agregador e espaço de organização e visibilidade para a causa indígena dentro da esfera urbana, promovendo um grande trabalho de conscientização popular à medida que aproxima sua cultura e forma de organização para os cariocas.
Comunidade
A comunidade da Aldeia Marakanã reúne diversas etnias como os Guaranis do estado do Rio de Janeiro, Guajajara, Krikati e Tembé do Maranhão, Apurinã do Amazonas, Pataxó da Bahia, Karajá de Goiás, Kaiapó do Pará, Krahô de Minas Gerais, Tabajara do Ceará, Tucano do Amazonas e Xukuru-Kariri de Alagoas, além de etnias de outros países, se consolidando como um espaço indígena pluriétnico com estrutura social horizontal. Além disso, a comunidade é bem diversa, contemplando pessoas em situações sociais e faixa etária distintas.
Metodologia
Como primeira etapa metodológica a reunião de dados e informações ajudou a fomentar as direções teóricas para o trabalho, e através dela foi possível reconhecer a necessidade da inserção do campo da antropologia para os avanços na pesquisa. Devido à pandemia de Covid-19 e como forma de proteção da comunidade, as visitas à aldeia foram feitas de modo espaçado, com frequência de uma vez por semana e só iniciaram após a vacinação da comunidade e do autor. No entanto, em virtude do avanço da pandemia, as atividades e orientações previstas de modo presencial não puderam seguir, e o caminho adotado foi a participação nos cursos e oficinas oferecidas de modo remoto pela aldeia. Desta forma o lado experimental do trabalho foi desenvolvido por meio da conversa e produções digitais como experimentações na elaboração de estruturas para futuras ocas e confecção de cartazes para divulgação de cursos e oficinas.
As visitas foram muito importantes para compreensão das relações entre a comunidade e o espaço ocupado. De modo a não formalizar e burocratizar a relação do autor durante as visitas, não foram adotadas abordagens nos moldes de entrevistas. As informações obtidas foram colhidas das conversas desenvolvidas e do que foi observado na aldeia, sendo um formato desenvolvido de modo orgânico, gerando uma experiência imersiva e uma apreensão do lugar mais sensível.
Projeto
O programa de necessidades foi desenvolvido e o entendimento das estruturas que contribuirão para a aldeia foi feito por meio da observação das atividades ali desenvolvidas que incluem: práticas sagradas, aulas de línguas, bioconstrução, plantio, tear, artes gráficas, canto, mostra de cinema indígena, rodas de maracá, oficinas de contação de história para crianças, gravação de entrevistas e documentários, e visitação regular de alunos de escolas e universidades. As direções projetuais foram formuladas através da estrutura organizacional e produtiva da aldeia, com o objetivo de manter seus processos pessoais, à medida que propõe estruturas que ofereçam melhores condições para execução das atividades realizadas na aldeia.
Tekohaw Marakanã. A palavra Tekohaw de origem tupi-guarani significa “lugar de vida, lugar onde a vida está”. A partir disso o conceito norteador do projeto é “vida”, como forma de ratificar a cultura indígena como uma cultura viva, que se desenvolve e se mantém até os presentes dias. O partido adotado foi o de mostrar a vida indígena, usando espaços mais abertos, ambientes de usos diversificados e elementos permeáveis.
A técnica construtiva foi um fator muito importante para o desenvolvimento do projeto, de modo a garantir estruturas exequíveis para a comunidade da aldeia e a mescla de técnicas construtivas indígenas com urbanas/contemporâneas. Por se tratar de uma aldeia indígena em contexto urbano, a mistura de materiais naturais como madeira, bambu, terra com materiais industriais como telha metálica, alvenaria, telha plástica, entre outros, foi imprescindível visto que muitos dos materiais naturais não estão em abundância no local.
Materiais
Os materiais usados no projeto tiveram como premissa básica o baixo custo e uma boa qualidade. Para os pisos internos das estruturas foi escolhido o cimento queimado pela sua fácil manutenção e atender bem as diferentes atividades que os espaços abrigam. Para a pavimentação externa foi escolhida a terra batida para as áreas dos moradores e o pátio pensando nas atividades ritualísticas que exigem pisar no solo com os pés descalços. Também foram escolhidos caminhos de brita e dormentes de madeira, e placas intertravadas modeladas no local, pensando numa boa absorção de água da chuva. Para a estrutura dos ambientes foi escolhido o bambu por ser um material que pode ser colhido na aldeia e ter alta resistência, além de ser um material muito utilizado por diversas etnias, trazendo para o projeto técnicas construtivas ancestrais. Para as coberturas a telha ecológica substitui a tradicional piaçava, por esta ser um recurso pouco encontrado no local e seu risco de incêndio.
Muros
Atualmente toda a área da aldeia é fechada por cercas, grades e muros feitos de materiais, em sua grande parte, improvisados. Para o projeto foi pensado um limite que ao mesmo tempo que garantisse a proteção da aldeia (ponto muito enfatizado pela comunidade) também mantivesse a relação com seu entorno e apresentasse o trabalho ali desenvolvido. A estratégia adotada foi a criação de uma meia parede em alvenaria que ganha altura por meio de uma cerca de bambu que possibilita uma permeabilidade visual e garante a conexão com o exterior. Seguindo com o muro/cerca há uma camada de arbustos gerando um afastamento que na face voltada para a rua Mata Machado se alterna com bancos sinuosos.
Casarão
Devido seu estado de conservação atual, as atividades da aldeia se concentram fora do casarão, e entendendo a situação atual da comunidade, sua relação com o local e as implicações necessárias para reforma do edifício o presente projeto focou apenas em quais atividades poderiam ser desenvolvidas dentro do casarão, sendo elas as atividades institucionalizadas e digitais tais como acervo de documentos, ações de cidadania, acervo e midiateca.
Pátio
Principal ponto de encontro e articulador dos espaços das aldeia, o pátio é o centro do projeto, servindo como organizador espacial e distribuidor de fluxos. Um espaço polivalente que abriga atividades de lazer, cultura e rituais, pensado como um grande círculo vazio a ser preenchido pelas pessoas e suas ações. Como forma de enfatizar essa centralidade vazia a cobertura circular emoldura o chão batido de terra (vista superior), ao mesmo tempo que emoldura o céu e seus astros (sol e lua).
Assembleia
A aldeia recebe muitos eventos de grande porte que atraem muitas pessoas, sendo eles fóruns, reuniões, palestras, cursos, shows etc. Para isso foi pensado um espaço grande e coberto que possa abrigar essas atividades em dias de muito sol ou chuvosos. Esse local também pode funcionar como uma sala de aula (exterior) para os muitos cursos oferecidos pela Universidade Indígena da Aldeia Marakanã. Como forma de otimizar os deslocamentos e aproximar das áreas da aldeia com maior número de pessoas, foi pensando junto à estrutura da assembleia um bloco de banheiros. Esse bloco de banheiro é dividido em três unidades, sendo as duas unidades das extremidades os banheiros masculino e feminino, e o banheiro do meio para a família.
Oficina
A aldeia é construída pela sua comunidade, com isso, um espaço voltado para produção, depósito de materiais e depósito de ferramentas foi fundamental. Além de servir como oficina para construção da aldeia, ela também funciona como espaço para os workshops de produção de tijolos, mobiliários, artesanatos etc. No projeto o espaço da oficina foi pensado de modo prático como um ambiente com área coberta para separação de materiais e processos em menor escala, mas que possa se ampliar (área descoberta) para atividades maiores que mobilizem mais recursos e pessoas.
Cozinha
A cozinha manteve o layout existente da aldeia, pois funcionava muito bem para as atividades ali desenvolvidas. A principal mudança, no entanto, foi na área do fogão-à-lenha, que antes ficava em uma cabine fechada por conta da fumaça, mas agora com uma chaminé, pode ficar aberto a cozinha e participar da área social. De modo a contribuir para a subsistência da aldeia também foi pensada uma estante na cozinha para exposição de artesanatos e objetos, servindo como um expositor. Além das refeições, a cozinha da aldeia é um espaço de encontro e socialização, com isso no projeto foi incluída uma área externa que possa expandir esse caráter e receber mais pessoas.
Banheiro
Aproveitando parte da estrutura existente, o banheiro teve apenas uma alteração de layout, de modo a comportar melhor uma cabine PNE. A forma é bem simples com um telhado em duas águas, feito de telha ecológica ondulada que segue até suas paredes laterais. Nas duas laterais há um rasgo de luz feito com telha plástica ondulada translúcida, para iluminar o ambiente e também, em dias de chuva, poder ver a chuva escorrendo pelo material, trazendo uma conexão com a água. Essa conexão com a água também se dá pelo uso de um tanque no lugar de um lavatório, como tem muitas crianças de colo na aldeia, o lavatório também pode servir como uma banheira para o banho dessas crianças.
Dormitório visitantes
Além das famílias que moram na aldeia, alguns visitantes e colaboradores passam as noites lá. Assim como uma casa com quarto de hóspedes, a aldeia também precisa de um espaço que possa acolher seus amigos e familiares. O dormitório também é utilizado para indígenas recém chegados na cidade e que ainda não possuem lugar para ficar, necessitando de um lugar seguro até se estabilizarem. Além disso, o espaço oferece a possibilidade de uma experiência imersiva na cultura indígena, sendo um forte aliado na sua disseminação e tendo apoio do forte apelo turístico do entorno da aldeia.
Fonte de pedras/chuveirão
Uma grande diferença entre as aldeias em contextos rurais é que no ambiente urbano, a conexão com elementos naturais nem sempre é facilitada. No caso da Aldeia Marakanã a relação com a água, embora próxima de dois rios (Rio Maracanã e Rio Joana), é bem limitada, tendo que se deslocar para outras áreas da cidade em busca de cachoeiras, praias e lagos. Como forma de amenizar essa situação, mesmo que em uma escala menor, e no intuito de aproximar o elemento da água de seus moradores foi pensada uma estrutura que apresente um lado contemplativo (fonte de pedras) e também um lado recreativo (chuveirão), mas que não precise muita manutenção e muitos recursos.
Praças
Há muitas crianças na aldeia e por isso, ao longo do projeto foram pensando praças próximas às áreas de estar. As brincadeiras das crianças ocupam todo o território da aldeia e vão continuar assim, no entanto a criação de um espaço pensado exclusivamente para elas, amplia sua noção de pertencimento e participação na comunidade. A construção e manutenção/ ampliação dessas praças pode ser feita pela comunidade, com brinquedos produzidos com materiais reutilizados como pneus, e tendo a participação das crianças na construção e proposição de novos brinquedos.
notas
NE — Este projeto foi originalmente apresentado por ocasião do trabalho de conclusão de curso entregue em dezembro de 2021 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação dos professores doutores João Flavio Araújo Folly e Niuxa Dias Drago.
1
CALEFFI, Paula. O que é ser índio hoje? A questão indígena na América Latina/Brasil no início do século 21. Dialogos Latinoamericanos, v. 7, Aarhus, 2003, p. 20–42.
2
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas o Brasil moderno. São Paulo, Global, 2017.
ficha técnica
projeto
Aldeia Marakanã. A construção de uma aldeia indígena urbana
local
Rio de Janeiro RJ Brasil
ano
2022
arquitetura
Arquiteto Gustavo Lennon (autor); arquitetos João Flavio Araújo Folly e Niuxa Dias Drago (orientadores)