Há algumas experiências arquitetônicas inovadoras nos nossos países vizinhos, que conhecemos pouco, mas nenhuma é tão impactante e polêmica quanto aquela que se desenvolve em El Alto, na Bolívia, uma das cidades mais altas do mundo. É muito interessante porque ela está associada à formação de uma elite burguesa, dentro de uma das comunidades mais marginalizadas do país, os aymaras, e está impregnada de memórias e simbolismos culturais.
El Alto é a segunda maior cidade da Bolívia com um milhão de habitantes, que só perde para Santa Cruz que tem 1,5 milhões. Mas ao contrário desta última é uma cidade pobre de economia informal. Ela nasceu em 1905 de um acampamento à margem da ferrovia que ligava o Lago Titicaca ao porto de Arica, no Chile, mas só começou a crescer em 1925 com a criação de uma base área, que depois se transformaria em um aeroporto internacional. El Alto explode demograficamente nos anos 1950 devido ao afluxo de pessoal do campo em decorrência da reforma agrária de 1952 e instalação rede de abastecimento de água. Em 1985 ela se tornou independente de La Paz.
Plana e quadriculada, situada no Altiplano Boliviano, a uma altura de 4.150 m sobre o nível do mar, com temperatura média anual de 8ºC, e mínima de -4ºC, sua população é formada por 76% de “aymaras”, 15% de mestiços ou “cholos” e 9% de “quéchuas”. Até meados da década de 2000 ela era uma favela barrenta de alvenarias não rebocadas de adobe ou de blocos cerâmicos (1). Ainda hoje seu grande motor é a maior feira do país, onde se negociam de tudo, de origem legal e ilegal, inclusive carros, eletrônicos chineses, amuletos, ervas e defumadores.
A essa atividade se juntaram indústrias de confecções, produtos alimentícios e serviços, especialmente ligados à construção civil e a importação de produtos chineses, o que fomentou a formação de uma burguesia aymara. Essa economia tradicional foi reforçada pela mineração e a exploração do gás no Altiplano, iniciada na década de 1990. Em 2003 ocorreu a Guerra do Gás ligada à disputa sobre a construção de um gasoduto para o Pacífico o que abriu caminho para a eleição de Evo Morales, em 2005, que daria força às comunidades indígenas e transformaria La Paz com uma rede de funiculares.
Coincidentemente neste ano um engenheiro formado em La Paz em 1986, de origem aymara, Freddy Mamani Silvestre, filho de um pedreiro e servente aos 14 anos, construiu o seu primeiro edifício em El Alto. Ele, que cursou arquitetura, mas não concluiu, queria criar uma obra que expressasse sua origem e vai buscar isso nos desenhos geométricos simétricos do sítio arqueológico de Tiwanaku, uma cultura que antecedeu os Incas em mil anos. Como eles eram esculpidos e não tinham cor, Mamani, cujo nome é de uma ave que era adorada pelos tiwanakus, incorporou à sua arquitetura as cores brilhantes dos têxteis artesanais e saias rodadas das mulheres aymaras e quéchuas. O sucesso dessa arquitetura foi estrondoso e seu criador a batizou de “arquitetura neo-andina”.
Seus primeiros edifícios apresentam fachadas planas com tratamento gráfico geométrico, com símbolos como os três degraus da pirâmide Pumapumku e a cruz andina, e cores fortes, já nos edifícios seguintes, em especial em construções em esquinas, ele dá um tratamento tridimensional que lembra curiosamente transformers. Em seus interiores há grandes salões com mezaninos, extravagantes e luxuosos, que lembram os dos palácios barrocos.
Sua clientela é de novos ricos que formam a nova burguesia aymara. São mineiros, importadores da China, comerciantes, transportadores, donos de restaurantes. A arquitetura neo-andina reflete seus gostos e fantasias. Mamani criou também uma tipologia arquitetônica especial, que passou a ser conhecida como “cholet”, fusão dos termos “chalet” e “cholo” ou mestiça. Denominação que ele não gosta por achar pejorativa.
Um cholet é uma edificação de quatro a sete andares, muitas vezes edificadas por etapas, em um terreno de cerca de 600m². O térreo tem uso comercial e o acesso ao primeiro andar, que é um grande salão de eventos: casamentos, aniversários e extravagantes “quinceañeras”, ou festas de debutantes de quinze anos. O segundo e demais andares são apartamentos para os filhos do dono e excepcionalmente quadras de esportes e até piscinas. O último pavimento é a casa do dono, com suítes, tetos que muitas vezes imitam pagodes da China, que alguns visitam com frequência, jardins e terraços com vista panorâmica. Um projeto em grande parte progressivo e coletivo.
Alguns desses apartamentos chegam a valer 600 mil a um milhão de dólares. O próprio Freddy Mamani em entrevista declarou: “Na cultura andina dizemos que tudo tem vida [...] também nossos edifícios têm que ter vida. O que isso significa? Que tem que gerar dinheiro”.
Sua arquitetura viralizou em El Alto. Ele tem cerca de 200 obras, a maioria em El Alto, feitas em 18 anos. Como Gaudí que marcou a paisagem de Barcelona e Niemeyer a de Brasília, Mamani mudou a paisagem barrenta de El Alto, onde reside. Apesar de polémico, ele é reconhecido unanimemente como o criador da arquitetura neo-andina, que está se alastrando por toda a Bolívia, inclusive por arquitetos como Santos Churata e começa a se reproduzir em outros países andinos.
O primeiro estudo sobre sua obra foi de autoria da arquiteta italiana Elisabetta Andreoli e da artista plástica Lygia D’Andrea no livro Arquitectura andina de Bolivia: la obra de Freddy Mamani Silvestre e foi lançado numa exposição no Museu de Arte de La Paz, em 2012 (2). Sua obra é objeto de teses acadêmicas nos EUA e na Europa e já foi exposta na Fundação Cartier, de Paris, e no museu Metropolitan, de Nova York. Para alguns acadêmicos eruditos essa é uma arquitetura kitsch, mas para outros ela revela uma cosmovisão ancestral andina e é um ato simbólico de decolonização. Eu acho que essa arquitetura se insere em um movimento cultural andino mais amplo e poderia classificá-la como realismo mágico arquitetônico.
Que este movimento de inovação nativista sirva de estímulo à revisão crítica da nossa atual arquitetura corporativa e habitacional burguesa, formada por cristaleiras monocromáticas espelhosas, inadequadas ao nosso clima e à luz tropical, papel carbono da arquitetura primeiro mundista nortenha, consumista e neocolonialista.
notas
1
Sobre El Alto na Bolívia, ver: ORTIZ, Victor Hugo Limpias. Cidade de El Alto: uma aproximação à arquitetura e ao urbanismo da nova metrópole altiplânica. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 022.04, Vitruvius, mar. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.022/801>.
2
ANDREOLI, Elisabetta; D’ANDREA, Ligia. Arquitectura andina de Bolivia: la obra de Freddy Mamani Silvestre. El Alto, Gobierno Autónomo Municipal, 2014.
sobre o autor
Paulo Ormindo de Azevedo é arquiteto, doutor pela Universidade de Roma, La Sapienza, em preservação de monumentos e sítios. Professor Titular da UFBA, Consultor da Unesco para a América Latina e África Lusófona e membro da Academia de Letras da Bahia. Foi membro fundador do CAU/BR e presidente do IAB-BA. Autor de projetos, livros e artigos técnicos e jornalísticos sobre Arquitetura e Urbanismo. Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade.
sobre a fotógrafa
Anita Saavedra Omiste é arquiteta formada pela Universidad Mayor de San Andrés de La Paz, Bolívia. Tem título de doutor em restauração de monumentos e sítios históricos da Universidade de Roma, Itália, La Sapienza. Trabalhou como restauradora para o IPHAN no Piauí e Ceará e para o Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, IPAC-BA.