O centenário de Lúcio Costa (1902-1998) e os 80 anos da Semana de Arte Moderna foram comemorados à exaustão este ano. Mas nenhum livro ou exposição falou tão profundamente das relações entre o arquiteto modernista e os "jovens rebeldes" do Municipal de São Paulo quanto a tese de doutorado "Lúcio Costa, Modernidade e Tradição – Montagem Discursiva da Arquitetura Moderna Brasileira".
Defendida pelo arquiteto e historiador Abilio Guerra na Unicamp, a tese será lançada em forma de livro no ano que vem pela Romano Guerra Editora, dentro da coleção "Olhar Arquitetônico". O texto mostra de que forma a idéia que temos hoje sobre a arquitetura moderna brasileira, reverenciada no mundo todo principalmente por causa da obra de Oscar Niemeyer, é herança dos ideais de intelectuais como Oswald e Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Raul Bopp e outros.
O livro de Guerra vai arrematar as dezenas de homenagens a Costa, que começaram em março com a exposição "Lúcio Costa 1902-2002, o Recado dos Papéis", no Rio, e continuarão no mês que vem com eventos na França e no Equador. Nos próximos dias, a editora José Olympio lança "Arquitetura", um livro escrito pelo arquiteto após encomenda do Ministério da Educação e Cultura (MEC) nos anos 80. É a primeira vez que esses artigos de Lúcio Costa estarão disponíveis para o público em geral e não somente para professores da rede pública de ensino.
"Lúcio Costa construiu um discurso sobre a arquitetura moderna brasileira semelhante ao da Semana de 22", afirma Guerra. Sua tese mostra a ambivalência do legado de Lúcio Costa, que deixou não só o Plano Piloto de Brasília e parte da autoria do edifício do Ministério da Educação e Saúde (1937), no Rio, mas também inúmeros conceitos arquitetônicos e textos sobre a cultura nacional. "O discurso de Costa era mais culturalista do que arquitetônico", diz o autor. "O que ele fez, de maneira inteligente, foi dar um caráter nacional à nossa arquitetura moderna, que nada mais era do que uma arquitetura internacionalizante", continua.
É nesse ponto que surge a ligação com os modernistas de 22. Segundo o historiador, eles eram pautados ao mesmo tempo por uma renovação importada da Europa e por um regionalismo, que significava um grito de emancipação em relação à dominação cultural dos pólos principais. "Esse paradoxo continua na obra de Lúcio Costa. Ele foi um moderno tardio. Só se interessou pela arquitetura moderna após ter uma decepção com o neoclassicismo, que não dava conta de revigorar os valores da arquitetura colonial", afirma o historiador. "Ele queria uma arquitetura moderna que se vinculasse aos padrões coloniais, assim como os modernistas tinham valores passadistas."
Lúcio Costa demonstrou inúmeras vezes grande apreço pela obra de Aleijadinho. Tanto que, a partir de 1938, logo após a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), do qual era membro técnico, foi um grande incentivador dos estudos feitos sobre o arquiteto e escultor, até então ilustre desconhecido da cultura nacional – não fosse, e não é coincidência, um texto escrito por Mário de Andrade sobre ele nos anos 20.
Lúcio Costa escreveu sobre o mestre de Vila Rica algumas vezes – um dos textos está no livro "Arquitetura" – e procurou, na arquitetura moderna desenvolvida por aqui nos anos 30 e 40, uma expressão que trouxesse de volta a genialidade de Antônio Francisco Lisboa. "Aí é que surge uma idéia completamente fictícia, na minha opinião", observa Guerra. "Lúcio Costa construiu a idéia de que a obra de Oscar Niemeyer era a expressão do 'gênio nacional', que se manifestava pela segunda vez, tendo sido a primeira na obra de Aleijadinho", explica o autor.
Dessa maneira, observa, mais uma vez Costa adotava uma postura semelhante à dos modernistas, uma vez que a arquitetura moderna brasileira era, para ele, fruto da influência do arquiteto suíco-francês Le Corbusier (um valor importado) em fusão com o "gênio nacional" (regional). A proposição levou a várias discussões na época. A mais famosa foi em 1948, entre Costa e o crítico de arte e arquitetura Geraldo Ferraz. Opondo-se à opinião de Ferraz, Costa defendia que só a partir de Niemeyer começou a ser desenvolvida uma arquitetura moderna genuinamente brasileira – sendo o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, sua maior expressão -, enquanto obras de arquitetos como Warchavchik (que fez a primeira casa modernista) e Flávio de Carvalho não passavam de um modernismo importado, "feito no Brasil" e não "brasileiro". "Acredito que Lúcio Costa tenha concebido essa idéia por uma questão ideológica", diz Abilio Guerra. "Ao ligar a obra de Niemeyer à tradição, ele criou uma legitimação para a arquitetura moderna. Mas essa arquitetura não precisava dessa legitimação, pois a linguagem de Niemeyer é muito própria e seria reconhecida pelo mundo de toda forma", continua o arquiteto. "A preocupação de Niemeyer é com as curvas e a elasticidade do concreto e não com a tradição colonial", enfatiza.
As ligações entre Lúcio Costa e os modernistas não ficaram apenas nas semelhanças ideológicas. "É preciso lembrar que tanto Lúcio quanto Mário de Andrade eram funcionários públicos de carreira", ressalta Guerra. "Mário foi chamado para trabalhar no Rio por um ano durante o Estado Novo. E foi o grande ideólogo do Sphan. Embora o diretor fosse Rodrigo Melo Franco, foi Mário quem escreveu a carta programa da instituição, com a qual Lúcio Costa contribuiu intensamente", conta.
Além disso, alguns atos dos modernistas de 22 contribuíram indiretamente para a formação da arquitetura moderna brasileira propagada por Lúcio Costa. Retomando a tradição colonial dos viajantes, o grupo modernista promoveu algumas visitas de europeus ao país, como do futurista Marinetti e do poeta Blaise Cendrars. Foi Cendrars quem escreveu a Le Corbusier, então ícone da arquitetura moderna, sobre a intenção, por parte do governo brasileiro, de construir uma capital no centro do país – "A construção de Brasília, que não tinha esse nome, estava prevista já na Constituição Republicana", explica Guerra.
Assim, a primeira visita de Le Corbusier ao país foi em 1929, a convite de Paulo Prado, ninguém menos que o principal patrocinador da Semana de Arte Moderna de 22 e grande mecenas dos modernistas e amigo de Mário de Andrade. "Le Corbusier voltou ao país em 1936, para auxiliar Lúcio Costa e Niemeyer (que trabalhava no escritório de Costa) no projeto do Ministério da Saúde", conta Guerra. "A influência dele sobre a nossa arquitetura moderna foi muito grande e acho até que, injustamente, foi diminuída na história", observa o arquiteto. "Sua terceira visita ao Brasil foi um tanto melancólica, já que foi para visitar Brasília, a qual sonhou construir por toda a vida."
Embora faça, nas entrelinhas, uma crítica ao discurso construído por Lúcio Costa sobre a arquitetura brasileira – que não diz respeito apenas a Niemeyer, mas influenciou também a visão sobre obras de arquitetos como Oswaldo Bratke, Affonso Eduardo Reidy e Rino Levi -, Guerra não lhe tira todo o mérito. "Trata-se de um discurso operativo. Ele criou um olhar sobre o Brasil. Surgiu em uma circunstância histórica que foi, na verdade, uma necessidade de vários países periféricos: de encontrar uma autonomia cultural", encerra.
[texto originalmente publicado no Jornal Valor, São Paulo, ano III, nº 114, 20, 21 e 22 set. 2002, p 4-5. Reprodução proibida]
sobre o autor
Renata Saraiva é jornalista e historiadora. Escreve no caderno de cultura do Jornal Valor Econômico, onde é também chefe de reportagem. Foi chefe de reportagem do Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, de 1996 e 2000.