Recentemente chegou-me às mãos um pequeno livro, muito simpático, com as conferências ministradas pelo eminente arquiteto valenciano Santiago Calatrava no MIT, Massachussets, em 1997, e somente agora traduzido para a língua portuguesa pela escritora Lya Luft para a Gustavo Gilli (nós brasileiros bem sabemos da importância desta editora para os títulos sobre arquitetura).
Como parte de um programa mais ambicioso do MIT contra a ubiqüidade, pelo que parece, em que caíram os discursos que insistem na separação entre arquitetura e engenharia ou entre arte e ciência, essas ‘conferências’ se articulam na forma de três depoimentos, do próprio Calatrava, recolhidos em três dias, feitos por intermédio de uma linguagem despretensiosa, embora, muitas vezes, inevitavelmente técnica, sobre algumas de suas principais obras. E não é de todo redundante lembrar que Calatrava é autor de projetos emblemáticos para a arquitetura da segunda metade do século XX, como a Ponte Alamillo, em Sevilha, construída para a Exposição Universal de 1992, a Ponte Campo Volantín, em Bilbao, a Estação Ferroviária Stadelhofen de Zurique, entre outros.
Declara, portanto, de início, a necessidade de se compreender a arquitetura como um processo material capaz de suportar formas variadas. Formigó (material) e hormigón (concreto) fazem confluir, por intermédio da língua espanhola, forma e material, ou representam ‘o material ao qual se pode dar forma’, como diz. A força da gravidade, o peso e o contra-peso, a tensão e a compressão, são suficientes para transformar um ‘simples brinquedo’ em uma máquina: a engenhoca estando a serviço da expressão. E não é demeritório o emprego, aqui, da palavra engenhoca, pois o arquiteto relata algumas vezes em seu texto de que modo por detrás desses brinquedos, ensaios ou maquetes, pode-se encontrar ‘muita complexidade’.
Na seqüência, os depoimentos circunscrevem lugares-comuns, em que, formal, Calatrava imbrica-se com categorias caras ao programa lecorbusiano: em primeiro lugar, as ‘idéias’ emergindo a partir do desenho, não um qualquer, mas aquele que vitruvianamente esboça a figura humana. Em segundo lugar, a reconciliação entre arte e ciência, pois a arquitetura irmana-se com a engenharia na busca de solução de problemas de expressão: alegoricamente, o arquiteto permite-se representar como um chef ao misturar em sua cozinha os ingredientes da ‘arte da arquitetura’ e da ‘arte da engenharia’. Finalmente, há nos depoimentos o elogio à observação da natureza, que é tópica antiga para a arquitetura enquanto prescrição. Para Calatrava, no entanto, a observação se dá a partir de um olho que pensa, como o olho-juiz de Rafael, e que homologicamente acha-se como forma para a cobertura da Estação Ferroviária de Stadelhofen.
Ainda na chave das homologias entre formas naturais e arquitetônicas, Calatrava propõe pilares-espinhas (que lembram as torsões de figuras de Michelangelo) depondo sobre a importância do conhecimento por parte do arquiteto da anatomia humana. Nesse sentido, o arquiteto pode ser relacionado ao assim chamado gosto clássico, mesmo porque mantém em seu horizonte também aqueles esquemas de representação artística que se hegemonizaram historicamente pela cultura ocidental. Além disso, Calatrava hierarquiza a arquitetura sobre o urbanismo, porque acredita que pela intervenção com ‘obras públicas’ – pontes, praças e estações – se pode ‘regenerar’ as áreas deterioradas que estão à sua volta.
A arquitetura desenvolve-se como um processo eminentemente racional, embora nela se reserve um lugar especial para o exercício da fantasia e da imaginação. Confirma-o o projeto para o Armazém Ernstings em Coesfeld, Alemanha, por exemplo, no qual o corpo do edifício alude ao de uma baleia ou peixe agigantado, os seus portões transformados em escamas que refletem a luz do sol. Aqui, Calatrava refere explicitamente desenho contido em O Pequeno Príncipe, de St. Exupéry, refazendo-o: a cobra que engoliu o elefante.
No limite, a presença do lúdico faz a sua arquitetura transitar pelo território da escultura numa escala, contudo, que ainda pertence à arquitetura. Neste território ambíguo (entre escultura e arquitetura), mas pleno de possibilidades contingentes para a construção em grande escala, Calatrava propõe para a sua obra movimento, pelo que uma escultura sua, feita para o jardim do Museu de Arte Moderna de Nova York, é cinética, mimetizando o salgueiro, que está ao seu lado, ao sabor do vento.
Por fim, há que se observar algo que perpassa os três depoimentos de Calatrava aos estudantes: a consideração e o respeito à natureza e à tradição ocupam o lugar que poderia estar reservado ao elogio exacerbado do novo. É exemplar, neste sentido, a descrição de seu projeto de conclusão para a Catedral Saint John the Divine, em Nova York, no qual retoma e aceita o esquema da figura humana inscrita na cruz latina como indicativo também da consciência que deveria acompanhar o trabalho de todo arquiteto, mesmo o contemporâneo. Finalizamos com a sua sentença: ‘o corpo humano é um templo’.
sobre o autor
Luiz Armando Bagolin é professor de Estética da FAAP/SP e de história da arte e arquitetura da PUC/Poços de Caldas