O mapeamento do espaço urbano é realizado por seus usuários no corpo-a-corpo do cotidiano: viadutos conduzem a áreas distantes de automóvel ou criam zonas inóspitas para pedestres; edifícios admirados ou ignorados permanecem ou desaparecem; áreas “marginais” são objeto de ação diversa, favelas são removidas, casarios são recuperados. Transformações, que longe de serem aleatórias, são reveladoras das lógicas conflitivas que dão forma às cidades, dos processos de urbanização.
Mas isso não é tudo. O urbanismo – nos ensinou Françoise Choay há algumas décadas – é distinto da urbanização. Se esta crava no espaço todos os impasses sociais, urbanism, termo cunhado em 1911 em francês, com sentido muito próximo ao que Idelfonso Cerda – o engenheiro reformador de Barcelona – denominava urbanización em 1867, é uma disciplina com pretensões científicas e terapêuticas, que se desdobra em teoria e ações. No Brasil, ainda que tenha sido tardia a implantação da disciplina urbanismo nos cursos de arquitetura, nossas cidades foram palco de experimentações e planos diversos.
A gênese e os desdobramentos desse campo do conhecimento no Rio de Janeiro no século XX, por meio de depoimentos de participantes, aprendizes e espectadores: este é o objetivo desse livro, produto da atividade diligente do Centro de Pesquisa e Documentação de História contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), que traz um tema de extrema relevância e atualidade intelectual e política.
Essa história lembrada, em diversos momentos de modo passional, parcial e partidário, traduz para o leitor os marcos do espaço urbano da segunda capital do país, o que inclui os impasses do debate carioca após construção de Brasília, cidade planejada por si só um capítulo do urbanismo brasileiro e internacional.
Por sua abrangência e pela variedade dos depoimentos, o livro pode receber leituras diversas e suscitar questões de ordem variada, acendendo zonas descobertas à espera de investigação. Uma delas seria o papel das mulheres no debate urbanístico, nos bastidores das realizações e a influência de um feminismo à soviética em alguns projetos. Não por acaso, é evidente o número de menções à engenheira Carmen Portinho, que no pós-guerra foi diretora do Departamento de Habitação Popular da prefeitura do Rio. Os relatos, intencionalmente ou não, também lançam luz aos conflitos internos da chamada escola carioca, especialmente a partir do destaque obtido por Oscar Niemeyer. Temos ainda um único depoimento que traz a discussão sobre o patrimônio histórico no Rio e os planos contemporâneos de revitalização, e o tema “patrimônio” surge tão de contrabando como sempre esteve no planejamento, desde a influente – sobretudo no Brasil – “Carta de Atenas”, documento de princípios do Congresso Internacional da Arquitetura Moderna de 1933. Outro aspecto interessante é a ausência presente de Lúcio Costa: à exceção do depoimento de Francisco de Mello Franco sobre o plano para a Barra da Tijuca, são outros os personagens lembrados, mas Costa está presente nas entrelinhas de quase todos os depoimentos.
As questões são de ordem diversa, mas gostaria de concentrar a apresentação do livro mantendo o foco em um tema recorrente nos vários depoimentos e que talvez – junto com a circulação de pessoas, veículos e fluidos – tenha sido o grande tema do urbanismo do século XX: a habitação.
O livro abre com depoimentos sobre Affonso Eduardo Reidy, autor do projeto do emblemático conjunto residencial conhecido como Pedregulho. O leitor que assistiu Central do Brasil, de Walter Salles Jr. lembra-se das cenas da captura do garoto Josué em meio à serpenteante rua interna desse edifício, onde a dramaticidade era acentuada pela luz intermitente dos blocos vazados e por sua explícita decadência. Assim como o filme e seus personagens, a história-memória do urbanismo carioca inicia seu drama nesse edifício-manifesto e chega ao conjunto habitacional com casinhas idênticas a perder de vista, carentes de projeto e excessivas em seus determinantes políticos imediatos. Casinhas idênticas às mostradas no início do outro sucesso do cinema nacional, Cidade de Deus, onde meninos ensaiam sua sociabilidade fundadora em meio a um conjunto habitacional monótono, regular e a léguas da urbanidade, e que viria a tornar-se um espaço sitiado.
Os depoimentos versam sobre Reidy e o emblemático Pedregulho, mas também sobre conjuntos que trouxeram populações removidas como a Vila Kennedy, do mesmo período e conduzido pela mesma política pública de Carlos Lacerda. A Vila Kennedy é lembrada pela depoente Sandra Cavalcanti – memória vivida pela direita, um dos depoimentos mais impressionantes do conjunto – como um acerto e Cidade de Deus, desviado de seus objetivos originais. como um equívoco que perdeu o controle.
E dos conjuntos passamos às favelas que foram objeto de estudos sociológicos e antropológicos até o recente-favela bairro. Diversos depoimentos vinculam a origem desta política de Luis Paulo Conde a realizações de trinta anos atrás, seja às intervenções do período Lacerda, ou a toda escola de urbanismo antropológico de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, na qual destaca-se a urbanização da favela Brás de Pina com participação da população residente. Ainda que os relatos enfatizem a aversão de Carlos Nelson a influências intelectuais como Manuel Castells, essa “antropologização” do debate urbanístico também não é prerrogativa nossa, pois começou a se delinear nos Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna (CIAM) do pós-guerra, tendo atingido seu ápice, inclusive em popularidade, em 1961 com a publicação do livro Morte e vida nas grandes cidades, da jornalista canadense Jane Jacobs. Este sim, objeto de admiração do arquiteto antropólogo, aluno de Anthony Leeds e orientando de Gilberto Velho.
Como os depoimentos não falam em uníssono, mesclando pontos de vista que por geração, profissão ou afiliação política e estética são conflitantes, temos como resultado não uma genealogia de soluções, mas de problemas que, uma que não foram sequer de longe resolvidos no Brasil, merecem essa reflexão.
Se o leitor, como usuário do espaço urbano ganha muito ao identificar as razões dos marcos e obstáculos que pontuam seu cotidiano, o leitor estudioso do tema passa a querer mais e mais: que o CPDOC (ou outro centro de pesquisa) colha mais memórias das nossas cidades: de Palmas a Ouro Preto, do Padre Lebret a Jaime Lerner, há muito que se ouvir e indagar.
[resenha originalmente publicada no “Jornal de Resenhas”, Folha de S. Paulo, Edição 27.002, Sábado, 08/03/2003]
sobre o autor
Silvana Rubino é antropóloga, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas e do Departamento de História, IFCH-Unicamp