A freguesia cresceu com desconhecido dinamismo na arrastada sociedade do extremo sul luso-americano. Em 1814, apenas dois anos após sua fundação oficial, ela possuía já dois mil e quinhentos habitantes.
A impressionante população escravizada – que superou habitualmente os moradores livres – devia-se à dinâmica produção de couros e carne salgada que se organizara na margem direita do vizinho arroio Pelotas, antes mesmo da fundação oficial da aglomeração.
Tão forte era a dependência urbana à produção charqueada que muito logo o pequeno centro perdeu a piedosa denominação inicial de São Francisco de Paula, superada pelo peso do nome do curso d’água às margens do qual se construía incessantemente sua fortuna – Pelotas.
Pérola negra
Mas, como definir esse centro surgido poderosamente do nada, nos plainos do litoral sul-rio-grandense, próximo às margens da Laguna dos Patos, a poucas horas de vela da barra de Rio Grande, o único portal marítimo do Rio Grande do Sul?
Os solares, casarões e sobrados que apenas a decadência econômica do meridião sulino poupou à impiedosa destruição que se abateu e se abate sobre Porto Alegre registram indiscutivelmente a suntuosidade do centro urbano que, no oitocentos, encontrava-se entre as principais metrópoles do Brasil.
Luxo, esplendor, magnificência são substantivações que se enluvam com naturalidade a Pelotas, então valiosa pérola negra sul-brasileira, hoje ainda reconhecida como sede de um dos mais ricos e homogêneos acervos arquitetônicos neoclássicos do Brasil.
Sinuoso arroio
Em 1992, a arquiteta Ester J. B. Gutierrez, professora do curso de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas, concluiu dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS sobre a arquitetura das charqueadas pelotenses. Tivemos o privilégio de acompanhar e orientar essa valiosa investigação.
Entre as revelações de sua pesquisa encontravam-se a intensa ocupação na construção civil, no inverno, dos trabalhadores da charqueadas, e a invariável presença nos saladeiros de olarias, possivelmente também muito ativas durante o interregno produtivo charqueador.
Em 1993, o trabalho foi publicado pela EdiUFpel, em associação com a Livraria Mundial, sob o título Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. O rápido esgotamento dessa primeira edição apenas reafirmou a qualidade de conteúdo, a elegância do texto, a pertinência temática.
O campo e a cidade
A visão de mundo, as opções epistemológicas, a vocação regional, o caminho trilhado, etc. levaram a que, ao empreender seu doutoramento, Ester Gutierrez procurasse responder a pergunta do poeta alemão indignado com a falta de registro sobre os construtores anônimos das riquezas dos campos e cidades do mundo. Ou seja. – Quem foram os construtores das portas, dos muros e das maravilhas de Tebas, cidade cantada na Antiguidade pelo fausto e poder?
Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888), que temos o privilégio de apresentar, constitui a publicação, praticamente sem retoques, da tese de doutoramento defendida e aprovada, com grau máximo, na PUCRS, em 26 de novembro de 1999. Tivemos o prazer de participar da banca e acompanhar a produção desse trabalho dirigido pela mão segura da dra. Núncia Santoro de Constatino.
As qualidades do presente trabalho são múltiplas. Em 550 páginas de texto e ilustrações, propõe uma quase história geral de Pelotas, de sua fundação à abolição da escravatura. Uma leitura, é bom ressaltar, que jamais se restringe à esfera política da cidade, ainda que esse domínio seja igualmente abordado exaustivamente.
Passado e presente
Com sensibilidade, Ester Gutierrez apresenta as determinações artísticas, culturais, econômicas, políticas e sociais essenciais que embalaram a fundação e o desenvolvimento de Pelotas. Démarche desenvolvida a partir do olhar do historiador que, ao fusionar-se à visão espacial e material do arquiteto e urbanista, facilita interpretação histórica global do fenômeno citadino.
Como não podia deixar de ser, alguns dos grandes protagonistas dessa narrativa são as ruas, as praças, as pontes, os edifícios públicos e privados de Pelotas que o leitor pode acompanhar nos seus nascimentos, fortalecimentos, pujança, até a Abolição, em 1888. Os que conhecem a cidade deliciam-se, os que jamais cruzaram suas ruas certamente por ela se apaixonarão.
A biblioteca e o mercado público; o paço municipal e o teatro; o espaço de sacrifício de homens e animais são alguns dos múltiplos temas-espaços recuperados do passado através da informação documental, quando já desaparecidos, ou devolvidos ao contexto de sua construção e uso original, quando ainda plena ou parcialmente presentes.
O trabalhador direto
Ester Gutierrez contribui igualmente para o enriquecimento da história da casa brasileira, sobretudo quando aborda e detalha, nos edifícios privados e públicos, a forma de viver e de dominar das poderosas elites pelotenses, congelada principalmente na ornamentação pretensiosa e elegante das fachadas neo-clássicas e nos programas de necessidades das moradias senhoriais.
Já contamos com exaustiva informação sobre o imenso peso do cativo nos trabalhos e nos serviços públicos e privados urbanos. Sabemos que, através do Brasil, as cidades da Colônia e do Império funcionavam essencialmente apoiadas nas costas largas do trabalhador escravizado. A bibliografia sobre essa questão é vastíssima.
Porém, é escassa a informação sobre o papel do cativo na construção civil, nas diversas regiões do Brasil negreiro, ainda que saibamos, a partir de informações gerais, que também nesse domínio ele ocupou posição fundamental. É quase total a indigência do conhecimento historiográfico sobre essa realidade no que ser refere ao Sul.
O pródigo e o avaro
O arquiteto e historiador Günter Weimer procurou superar esse grave hiato através de exaustivo levantamento de anúncios de venda, compra e fuga de cativos, que resultou em valiosa contribuição para a historiografia da escravidão sulina – O trabalho escravo no RS [Porto Alegre: Sagra, Editora da UFRGS, 1991].
Ainda que a fonte analisada exaustivamente se tenha mostrado particularmente pródiga em informações sobre o trabalho escravo urbano, ela foi bastante avara no relativo ao trabalhador servil na construção civil, principal escopo daquela pesquisa.
Baseamos nosso estudo O cativo e o sobrado: arquitetura urbana erudita no Brasil escravista: o caso gaúcho [Passo Fundo: EdiUPF, 2001] sobretudo nas posturas municipais e nos relatos de viajantes. A rica informação permitida por essa documentação sobre a escravidão nas cidades também pouco revelou sobre o trabalhador na construção civil, em senso estrito.
Precisar e iluminar
No sexto e último capítulo – “A mão-de-obra” –, Ester Gutierrez enfrenta a mesma questão apoiada sobretudo nos livros de enterramentos e de movimento de internos da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Associados à ampla e variada documentação primária percorrida, eles forneceram abundante informação sobre o trabalha cativo na construção civil em Pelotas. Assim, o enigma começou a ser solucionado.
O painel traçado por Ester Gutierrez sobre os agentes diretos do processo construtivo na cidade de Pelotas constitui indiscutivelmente momento de singular valor de Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888), ao precisar o conhecimento até então impreciso e iluminar obscuros e ignorados desvãos daquela realidade.
Os resultados aos quais a autora chega reafirmam a importância do cativo na construção civil, enquanto registram o amplo espaço de atuação dos trabalhadores livres, sobretudo após o fim do tráfico transatlântico, em 1850, que encareceu sobremaneira a mão de obra servil, exportada abundantemente para o centro-sul cafeeiro. Fenômeno também ainda não elucidado por nossa historiografia.
Melhor pagos, menos duros
Porém, a existência registrada por Ester Gutierrez de trabalhadores alemães, espanhóis, estadunidenses, franceses, ingleses, italianos, prussianos, uruguaios, etc., labutando lado a lado de africanos e afro-descendentes livres e escravizados, não registra em nenhum caso inesperada vigência de democracia racial e social na construção civil pelotense. Diversos outros estudos já reafirmaram as duras relações entre escravizadores e escravizados nesse município, tradicional palco da resistência do cativo.
Ester Gutierrez esclarece que os trabalhos mais duros do oleiro e do pedreiro correspondiam sobremaneira aos afro-descendentes cativos e livres, enquanto os portugueses trabalhavam preferencialmente como carpinteiros; os alemães e franceses, como ferreiros, e os italianos, como pintores e pedreiros. Os serviços mais especializados eram logicamente melhor remunerados.
Uma das surpresas de Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888) é a rica discrição das difíceis condições gerais de vida dos trabalhadores livres manuais, semi-manuais e intelectuais estrangeiros ocupados na construção civil.
O peso da escravidão
Mesmo os trabalhadores “eruditos” das obras civis – arquitetos, agrimensores, engenheiros, topógrafos, etc. –, quase todos estrangeiros chegados como “militares, mercenários e colonos” ao Brasil, eram obrigados, quando doentes, a recorrer aos serviços gratuitos das instituições de misericórdia, incapazes de sustentarem-se na adversidade.
Os baixos salários e os eventuais longos tempos de desocupação dos trabalhadores livres constituíam certamente tributo pago permanente ao escravismo. Ester Gutierrez apresenta-nos uma outra comprovação de que a ordem negreira dominante submetia com algemas invisíveis, apenas mais leves, também os trabalhadores livres, privilegiando somente a escravistas e negreiros.
No relativo ao trabalho na construção civil, Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888) conclui-se com a reafirmação de que também no sul do Brasil, ao fecharem-se à noite, as portas de Tebas mantinham fora dos seus acolhedores muros, em forma total, os trabalhadores servis e, em forma parcial, os operários livres que forcejavam, todos, duramente, em construção e reconstrução jamais interrompidas.
[opresente texto é o Prefácio do livro Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888), de Ester Judite Bendjouya Gutierrez, Pelotas: ed. UFPel, 2004.]
sobre o autor Mário Maestri é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, RS. Graduado, mestre e doutor em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica