A cidade de Goiânia tem sido objeto de estudo de arquitetos, historiadores, geógrafos, sociólogos, antropólogos et al. O estudo de cidades tem se ampliado nas últimas décadas. Para mim, essa necessidade de estudar as cidades é algo semelhante à necessidade de decifração da antiga esfinge. O “decifra-me ou devoro-te” antigo tem renascido como um novo enigma para que se reconfigure a condição humana. Assim como no oitocentos o domínio sobre a natureza se configurava como condição indispensável para a constituição da cultura, atualmente, o que me parece, é que o domínio dessa “segunda natureza”, a cidade, torna-se indispensável para que se reconfigure uma nova condição humana.
O volume de estudos crescentes sobre as cidades, teria, portanto, como pano de fundo, o descortinamento dessa nova condição humana. Dessa nova condição urbana. Somente nos últimos três anos, pude adquirir cinco livros que publicam estudos sobre Goiânia, além de dezenas e dezenas de artigos científicos, dissertações e teses. Vou aqui tecer alguns comentários sobre o livro Goiânia: uma concepção urbana, moderna e contemporânea – um certo olhar de Celina Manso. Presumo ser imprescindível não perder de vista, ainda que de soslaio, essa obra que a meu ver sublima algumas questões a respeito de cidades planejadas.
Trata-se de uma obra referencial para aqueles que pretendem iniciar um estudo que leve em consideração as histórias de vida como determinantes para a concretização da realidade. Dessa forma, Celina mostra diversos pontos das tramas que teceram as cortinas dos atos de constituição de uma modernidade no Centro Oeste, ao restituir, “remexendo arquivos, selecionando inúmeros trabalhos e obras significativas elaborados ao longo de aproximadamente seis décadas (de 1930 1990)”, caracteres que configuram a historicidade dos atos dos atores da urbanística.
O “certo olhar” de Celina detecta fatos vividos pelos principais atores da concepção urbanística de Goiânia, Godoy e Correia Lima. Deixa evidente que a compreensão desses fatos vividos pelos atores em questão constituem fragmentos imprescindíveis de uma compreensão sobre a concepção da cidade como modernidade materializada, ao desfiar biografias plenas de conceitos modernos, iluministas, racionalizantes. Nesse ponto, sem que haja uma filiação explícita às historiografias feitas por Bernard Le Petit e Keith Jenks, Celina pontua elementos de História Urbana e História Cultural. Quando esse “certo olhar” visualiza a história da cidade juntamente com a história dos autores da cidade, de maneira híbrida, podemos conjecturar e testemunhar a fundação de elementos de um urbanismo mais humanístico e subjetivo eqüitativamente a um urbanismo racionalista e objetivista.
Nesse “certo olhar” há também um cunho didático ao possibilitar-nos um entendimento histórico de concepções urbanísticas e de atuações de urbanistas famosos mundialmente, como o movimento Beautiful City ou o urbanista Alfred Agache, por exemplo. Sob esse ponto de vista, Celina nos faz ir do local ao global. Do conhecimento dos elementos de constituição de um planejamento tangível aos elementos mais amplos, que, afinal, estão no centro propulsor das ondas de modernização e urbanização. A didática de Celina nos faz entender o local do urbanismo a partir do global urbanístico, porém, o movimento inverso também é possível e proveitoso não apenas para se conhecer os atos que instauraram os eventos passados, mas nos mostram que de certa forma tais atos são os pontos de energia que nos conectam na teia que possibilita concepções urbanas hoje.
Sob o olhar de Celina, é possível conhecer a cidade de Goiânia a partir de sua edificação, ou da constituição de seus edifícios, ou da história que consubstancializa seus personagens, suas concepções urbanas. Contudo, é particularmente regozijante para um arquiteto, constatar que a arquitetura constitui um lugar de fala privilegiado. Que por meio desse lugar de primazia da arquitetura é possível a apropriação de um discurso urbanístico que vai além das duas dimensões das malhas viárias, que esta apropriação arquitetônica está no centro eqüidistante de qualquer outro viés ali imbuído:
“No projeto de Goiânia, os edifícios foram considerados partes fundamentais da cidade, assumindo pelo significado na valorização de seu desenho. A arquitetura dos edifícios procurou superar o dualismo entre plano e projeto, passando a ser a chave de leitura e organização do território. A morfologia urbana moderna, resultante das propostas e intervenções iniciais dos urbanistas para o núcleo inicial da cidade, constitui parte integrante da cultura urbanística, ao mesmo tempo em que retrata o ideário de seus pioneiros” (p. 251).
Esse “certo olhar” arquitetônico constrói uma visão de barroco urbano aplicável nas adequações às intenções do autor dos primeiros traços para uma concepção de cidade. É possível ver que a previsibilidade barroca foi instrumental e providencial para uma determinada configuração moderna, uma concepção morfológica tridimensional que serviria para moldar uma intenção política moderna. Assim nos conecta com os moldes da forma e aos repertórios arquitetônicos que não apenas constitui uma cidade, mas que institui uma modernidade e que funda a identidade urbana que enlaça uma possível identidade para a cidade. Aliás, nesse ponto, Celina nos faz lembrar um outro autor – goianiense –, que transforma a morfologia art déco em bordão para uma identidade de Goiânia (1)
“Attílio procurou criar, com poucos recursos, uma arquitetura que representasse o poder não pela ostentação e monumentalidade, mas por um estilo próprio que não se contrapusesse ao ideário revolucionário nacional e à especificidade (alma) do lugar. Assim, este conjunto de obras goianas assumiu uma forma arquitetônica diferenciada, se comparando a outras obras em estilo Art Déco produzidas em outros lugares. Pode-se dizer que assumiram um ar de goianidadem ou, para ser mais precisa, um ar goianiense, identidade que se encontrava em plena formação nos anos 30” (p. 158).
O objeto central de análise é o Plano de Urbanização de Goiânia. Para a análise de tal objeto é que converge a sua visão arquitetônica. O lugar central que ocupa a arquitetura na compreensão do Plano de Goiânia vai além de uma simples análise documental, não pretende também constituir uma teoria morfológica que caracterize um campo de conhecimento à parte. É sim uma análise da aplicação dos diversos conhecimentos urbanísticos-morfológicos-arquitetônicos de que dispunham os autores do Plano. Contudo, tal análise, acompanhada de retrospectos da história da arquitetura e do urbanismo que corroboram para o delineamento do traçado e da paisagem que tomava forma, é também acompanhada de registros e comentários de fatos que envolvem a construção da cidade.
“Nessa época, a Seção de Construção já relatava a conclusão dos primeiros dez prédios todos edificados na Rua 20 e destinados aos funcionários e ao jardim-de-infância. Por ser a primeira rua de Goiânia, foram nela instalados provisoriamente a sede do governo, a Secretaria-Geral, o Escritório Central das Obras e a Diretoria Geral da Fazenda. Esta, por ser muito grande, teve de ocupar duas casas, uma das quais foi destinada à Seção de Terras. (...) A Seção de Arquitetura , por sua vez, no relatório sobre as obras de 1936, confirmou ter executado 270 projetos de construções, além de numerosos estudos e desenhos, 73 dos quais referentes a casas particulares. (...) Neste período, observa-se a construção dos demais edifícios públicos, além do palácio e da secretaria-geral, localizados na grande Praça Cívica, no Setor Central” (pp. 195 e 199).
Assim, o “certo olhar” de Celina é um olhar sobre a cidade de forma arquitetônica e urbanística, mas é também sobre as pessoas que viabilizam a cidade – “devo confessar o meu entusiasmo ao me envolver nesse reprojetar e reconstruir Goiânia” (p. 259) –, e, sobretudo, sobre o tempo que constitui e dá sentido às ações das pessoas e à materialização dos objetos físicos. É um “olhar” que ao mesmo tempo em que constitui uma análise, constitui também uma narrativa e uma interpretação, não é mera descrição. De certa forma introjeta o elemento pelo qual a arquitetura não subsiste, a beleza, a beleza do tempo, ao mesmo tempo, a beleza das formas. Há realmente uma preocupação de humanização do urbano, de perceber falas, datar nascimentos e mortes, narrar conflitos e limitações humanas.
Com um “certo olhar” Celina introduz um urbanismo que queremos e almejamos. Algo que vá além de dados analíticos e práticas descritivas. Algo que considere os prazeres e aflições humanas, algo que reconstrua a condição humana no mundo urbano de excessos, ambigüidades, ambivalências, violências, insensibilidades e insensatezes. Algo que restabeleça a medida do homem, medida que vá além aparência detectada pela visão. Algo que extravase os olhares dos viventes da cidade e constitua um urbanismo de cidade vivente.
notas1
UNES, Wolney. Identidade Art Déco de Goiânia. Goiânia, Editora UFG, 2001.
sobre o autorWilton Medeiros é arquiteto, doutorando em História na Universidade Federal de Goiânia – UFG